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sexta-feira, 23 de novembro de 2018

Ancestralidade ausente e a popularidade dos mortos-vivos


     Um antigo nome atribuído aos ancestrais é "mortos vivos", isto é, aqueles que nos precedem na entrada ao mundo dos mortos e que de alguma forma permanecem vivos também. Existe uma antiga ideia de que o mundo diário dos fatos repousa sobre um mundo invisível do qual todos os fatos emergem. O mundo real com suas sérias leis e guerras intermináveis é menos real do que aquele que existe por trás dele, a fonte invisível de tudo o que vem parecer sólido e real. Esse mundo por trás do mundo tenta aflorar onde quer que o véu entre eles se torna mais sutil. A tristeza "afina" esse véu, assim como torna bela qualquer coisa que libere ideias e fantasias autênticas (MEAD, 2006, p. 365-6).
     Talvez a atração que a população mundial possui sobre a literatura ou sobre filmes de cinema e seriados com a temática "mortos-vivos" advenha do desprezo contemporâneo pelo tema "morte". A morte está bem mais higiênica - os funerais não ocorrem mais na casa do morto, de onde este sai ainda vivo para nunca mais voltar. Eles vão dos hospitais para as funerárias e destas para os cemitérios. Luto? Não existe mais tempo para o luto. Para certas pessoas, durar mais de um mês pode ser sinal de depressão ou transtorno pior.
     Esse mundo invisível a que o autor faz referência pode ser acessado facilmente por meio da própria psique e da imaginação. Tudo o que percebemos (e o mundo não pode existir para nós se nosso cérebro não o interpretar de acordo com a coletividade) repousa sobre as atividades psíquicas, esse mundo invisível. A tristeza recolhe nossa atenção para dentro e nos faz voltar a atenção para valores que nos eram invisíveis, e que estavam mortos para nós. Só então percebemos o quanto ainda estão vivos e clamando por atenção. O mundo dos mortos está mais vivo do que parece. 
      Os antigos estavam certos ao cultuar os mortos, pois simbolicamente voltavam a atenção para temas importantes e necessários, como a morte e o mundo invisível, subjetivo, oculto de todos - o inconsciente. Essa reverência fazia o papel da atenção psicológica que hoje aprendemos a aplicar em nós, sobre os assuntos urgentes, que muitas vezes tomam a forma de sintomas corporais.
     Os mortos-vivos veem nos aterrorizar na TV e no cinema. Esse símbolo torna explícito o que achamos ridículo: que algo morto possa se mover e andar sedento por matéria viva. Sim, a morte quer reviver, quer fazer parte da nossa vida, quer nos chamar a atenção sobre ela. Que saibamos dar o devido valor a esse chamado, interpretar corretamente o que parece nos importunar, pois somos matéria viva, e tudo o que faz parte de nós - desprezado ou não, vive e insiste em aparecer, apesar de podermos querê-lo morto. Que aprendamos a viver valorizando a morte e os mortos.
     Quando uma cultura nega a presença da morte na vida, ela perde a sabedoria deste ventre mais escuro. Nesta perda, ela tende a cortar o cuidado da mãe pessoal e forçar para a biologia o que viveria mais miticamente. A cultura que recusa considerar a morte, logo vem a saber menos da vida; o que começa como negação da morte, torna-se negação da vida. (MEAD, 2006, p. 109)


REFERÊNCIAS

MEAD, Michael J. The water of life: initiation and the tempering of the soul. Seatle: Greenfire Press, 2006.

sexta-feira, 25 de março de 2016

Renascimento sensorial: um novo nome para uma antiga arte



     Gostaria, primeiro, de remeter o leitor à matéria do artigo "Renascimento sensorial - o novo Santo Graal da psicologia". Nela, em resumo, a pessoa é levada a aprender como prestar atenção nos sintomas corporais do seu transtorno de humor, durante um momento. Com isso, as emoções "negativas" passam, e o indivíduo pode retomar sua interação com as situações problemáticas sem respostas emocionais exacerbadas. Nas palavras de Pascale Senk, autora do texto:
Conseguir permanecer neste estado de “não-ação" do qual falam muitas tradições espirituais, especialmente as asiáticas como o budismo, o taoísmo e o zen. Tornar-se um observador dos grandes fluxos de energia que passam pelo corpo, sem se opor a eles. «O que Luc Nicon descobriu e formalizou na fórmula  do “renascimento sensorial” está hoje no cerne das terapias mais inovadoras do momento", avalia a Dra. Christine Barois. Terapias comportamentais e cognitivas, meditação da atenção plena, EMDR (EMDR: Eye Movement Desensitization and Reprocessing), terapia da aceitação, etc. 
Esses métodos também colocam muita ênfase no conceito de formação e fortalecimento da atenção. Quanto mais os praticarmos, mais fácil se tornará sua prática, e mais gratificantes os resultados.
     Portanto, a técnica não é nova, os iogues e budistas que o digam. Por outro lado, o processo e o resultado não é diferente do que ocorre ao cliente de um bom analista. Na análise, conduzida por profissional competente, o indivíduo é conduzido a questionar seus pensamentos, crenças e valores, é induzido a consultar os próprios sentimentos, sensações, ideias e criatividade acerca de seus problemas pessoais, ficando independente da opinião de outras pessoas, e aprendendo a gerir a própria vida. Com o tempo, o analisando fica "afiado" em analisar os diversos acontecimentos, uma vez que se submeteu à análise de sua própria personalidade, tornando-se muito mais objetivo - subentendendo-se aí o significado de "menos envolvido emocionalmente".


     Entretanto, nesses dias de valorização dos processos rápidos, certeiros e efêmeros, e de pouco dinheiro, "dar o bolo pronto", fornecer o "peixe", ao invés da vara de pescar, é mais lucrativo. É difícil encontrar alguém disposto a passar mais de um ano em análise, uma vez por semana, cinquenta minutos em um dia. Mas posso garantir que esse tempo mínimo que alguém pode dedicar a si mesmo por semana pode mudar uma vida inteira. É o melhor investimento que alguém pode fazer a si mesmo, porque vai reverberar em todas as situações da vida. O resultado? Muito mais espontaneidade e liberdade, energia de sobra para muitos outros projetos - e não para remoer toda espécie de fantasia - facilidade de análise, criatividade, dinamismo, etc.
     Mas não percebamos nesse uso frenético do tempo apenas malefícios. Uma vez nomeado, esse processo de "renascimento sensorial" pode ser aplicado com mais eficácia na psicoterapia dos consultórios, muito mais na modalidade "breve", para minorar o sofrimento do cliente com mais eficácia e agilidade. Sua intervenção pontual será sempre aconselhada. Tudo o que vem a somar é benéfico.

sábado, 18 de abril de 2015

O casamento na atualidade

    Há milênios o casamento era um negócio onde as mulheres eram compradas e vendidas. Na realeza e nas famílias muito ricas chegava a ser quase uma transação semelhante à do gado. Portanto, não era importante a psicologia do indivíduo: seus interesses, desejos, ideias, crenças, etc. Representava uma instituição coletiva, e assim também era o relacionamento conjugal. Formava a interação entre dois papéis sociais - o marido e a esposa, e o casal era valorizado na medida em que podia e sabia como sustentar essas personas ou máscaras (JUNG, 2014).
    Entretanto, com a evolução do pensamento e a aquisição de certa cultura, o indivíduo foi enfatizado: agora seus desejos e direitos são levados em consideração. A psicologia surgiu para entender o sujeito e, por extensão, a sociedade. Ela se tornou necessária para possibilitar a adaptação e o ajuste, muitas vezes fino, entre dois ou mais indivíduos, e destes consigo mesmos. Não tínhamos um relacionamento individual, mas coletivo, o que só mudou com o surgimento do amor romântico ou paixão (Ibidem).
    O grande problema atual é o embate sobre o que se espera que o casamento seja, enquanto instituição coletiva, adequada à sociedade, e o que desejamos dele: um relacionamento individual, muito difícil de se criar dentro do casamento. A convivência apenas ao nível da persona, dos papéis, não é suficiente. Deve haver uma relação individual, sem a qual não existe o ajuste ou adaptação individual. O marido e a esposa apenas cumprem seu papel respeitável e esperado, por meio de princípios muitas vezes estreitamente associados à religião. A direção do casamento, como instituição coletiva, e a de uma empresa, não difere muito, já que ambos são geridos por contratos, com papéis bem definidos. Porém, cada um dos cônjuges é uma pessoa particular, com o qual se deve ter um relacionamento particular (Ibidem).
    Na relação conjugal coletiva costuma imperar a identificação projetiva (ou participation mystique), isto é, cada um dos parceiros projeta no outro uma parte da sua personalidade e o vivencia como se fosse o conteúdo da projeção. Desse modo, cada um dispõe de um meio inconsciente para controlar o outro de acordo com o ponto de vista interno. Assim, um cria a condição do outro e conclui as decisões do outro, dependendo deste para se tornar o que é (SAMUELS, 2003). Após algum tempo de convivência, as pessoas se influenciam reciprocamente, um assimila o outro e ambos se tornam semelhantes. Ocorre que esta identidade e fusão é um grande obstáculo ao relacionamento individual. Pois, se são idênticos, não existe relacionamento, já que este só ocorre entre pessoas diferentes, isto é, separadas psiquicamente. Uma vez que essa identificação projetiva é a situação habitual no casamento, principalmente quando os cônjuges são jovens, uma relação individual é impossível (JUNG, 2014).
    Se ambos escondem segredos um do outro, admiti-los pode ajudar a estabelecer um relacionamento individual. Se não existem segredos, então nada pode protegê-los da participation mystique. Neste caso, nada demais ocorre no casamento, que fica sem tempero, sem emoção (Ibidem). 
    Portanto, ao que tudo indica, o relacionamento individual dentro do casamento depende da sinceridade de ambos os cônjuges. Sinceridade no sentido da revelação explícita, de um para o outro, de quem se é realmente, sem máscaras, sem segredos. O caso alegado acima, onde em um casamento não existe segredo parece partir do pressuposto de que o marido e a mulher não têm consciência de seus seres genuínos, autênticos. Por isso eles acabam por concluir que não possuem nenhuma confidência a fazer. No entanto, até a sinceridade extrema pode trabalhar para a ausência de diferenças, uma vez que não haveria qualquer reserva, podendo isso ocasionar um controle de um dos cônjuges sobre o outro. O confidente pode se ofender com a franqueza ingênua, usando a revelação contra o outro, criticando-o ou reclamando, se esforçando para que ele se encaixe dentro dos moldes da persona conjugal. Isso levaria o casamento ao patamar coletivo, da mesma forma como este pode entediar e levar à confissão individual. Por isso, a posição ideal é o trabalho da consciência individual, que procurará a adaptação ao momento vivido, com atenção, sem se desbancar para um dos extremos, pois estes se tornam hábitos e, por conseguinte, inconsciência do próprio comportamento.
    Parece-me que a insistência e a resistência ao casamento homossexual decorre desse mesmo embate entre casamento como instituição individual versus coletiva. Este serve à sociedade, à tradição, à persona; aquele, aos sujeitos tais quais são, com suas características e objetivos pessoais em primeiro plano. No âmbito da sociedade, podemos considerar essa oposição como um sintoma do que acontece ao nível da psique do indivíduo: o que era encoberto vem à tona, como ocorre a um segredo. Se esse segredo não é compartilhado e difundido, sem aberraçoes extremas, é claro, a convivência se torna monótona. O ser espontâneo, a verdade e o novo são reprimidos para que uma máscara possa encobri-los. Não existe vida nisso, mas sim uma dramatização, um fingimento - a morte em vida. A existência não se renova, mas definha no choro contido. Então os mesmos sintomas que assediam o indivíduo nessas mesmas condições, tomam conta da sociedade como um todo: homicídios (repressão), falta de educaçao (inconsciência), violência (depressão), insegurança, miséria (falta de criatividade), protestos (ansiedade), etc. Um projeta no outro e na massa a carência, o buraco interno. A coletividade em geral só estará em harmonia na medida em que seus indivíduos estejam mais ou menos centrados.
A psicologia do indivíduo corresponde à psicologia das nações. As nações fazem exatamente o que cada um faz individualmente; e do modo como o indivíduo age, a nação também agirá. Somente com a transformação da atitude do indivíduo é que começará a transformar-se a psicologia da nação. Até hoje, os grandes problemas da humanidade nunca foram resolvidos por decretos coletivos, mas somente pela renovação da atitude do indivíduo. (JUNG, 1987b, prefácio)




REFERÊNCIAS


JUNG, Carl G. Psicologia do inconsciente. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 1987b. v. VII/1.
JUNG, Carl G. Seminários sobre análise de sonhos. Petrópolis: Vozes, 2014, p. 78-80.
SAMUELS, Andrew. Dicionário crítico de análise junguiana. Edição Eletrônica, 2003 Andrew Samuels/Rubedo. Disponível em: <http://www.rubedo.psc.br/dicjung/listaver.htm> Acesso em: 14 out. 2010, 22:49:00.

domingo, 28 de dezembro de 2014

Extinção ou renovação de valores?

     Ouve-se tanto falar em quebra ou destruição de valores e extinção de instituições – entre elas, a família, considerada por muitos uma das mais importantes. Mas será que tudo isso não é parte de um processo maior de renovação de valores e de instituições? Renovação porque, a princípio, tudo o que termina e é extinto, deve ou pode ser suplantado por outros processos ou estruturas. É claro que o curso dessas mudanças normalmente é muito doloroso, mas é justamente como ocorre em nossas próprias vidas. É uma reflexão apropriada para este final de ano.
     Eliade (2010, p. 105-107) relata uma crise no Egito de 2.200 a 2.050 a.C. que o sacudiu com uma grave guerra civil, a divisão em dois reinos e o desmoronamento do Estado. Ao final da crise houve um verdadeiro renascimento. Invoco esse acontecimento remoto para lembrar como esses processos ocorrem desde sempre. A residência real foi ameaçada de ser demolida, os túmulos das pirâmides foram pilhados, as províncias e os templos já não pagavam impostos... Com o vandalismo, destruía-se os túmulos dos ancestrais e se transportava as pedras para os próprios túmulos. Inúmeros mortos eram sepultados no rio. O faraó não era mais o “filho de Deus”.
     Um texto comovente da época, “O debate sobre o suicídio”, é um diálogo entre um homem atormentado pelo desespero e sua alma (bâ). “A quem eu falaria hoje? Os irmãos são maus, os companheiros de ontem não se amam. … Os corações são ávidos: cada qual deseja os bens do seu vizinho. … Já não existem justos. O país está abandonado aos que cultivam iniquidades. … O pecado que paira sobre a Terra não tem fim.” Mirce Eliade alega que textos como esse representavam mais que testemunhos de uma grande crise: ilustravam  a tendência do espírito religioso egípcio de ampliar-se, de conceder importância à “pessoa humana como réplica virtual do modelo exemplar, a pessoa do faraó” (ELIADE, 2010, p. 107). Por fim, após muito tempo, o faraó perdeu seu poder para que houvesse a concessão de relativa autoridade a cada indivíduo em particular. O que houve no Egito reflete um processo que ocorre até hoje: a marcha das mudanças, a renovação da vida que carrega consigo a “morte” de valores tradicionais. O que não dizer das variadas denúncias de corrupção que ocorrem hoje no Brasil, além da crise de valores que impera no mundo todo?
     A psicologia pode ter uma resposta para essas questões.

As pessoas não percebem que as nossas ideias gerais, nossas teorias gerais, são baseadas em princípios que já não estão mais vivos; pois elas não são ideias modernas. Muitas pessoas estão começando a lutar contra nossas instituições, porque eles não podem mais acreditar nos princípios por eles defendidos, por isso surgem os estados de agitação em toda a parte. Nossa moralidade é ainda baseada em suposições medievais. Gostaríamos de admitir que não acreditamos mais no fogo do inferno, mas o fato é que não temos outra base para a nossa moralidade, exceto a ideia do fogo do inferno. (JUNG, 2014, p. 194)
     Jung afirmou isso em 1929, mas sua constatação ainda é válida há mais de 80 anos!
     Por outro lado, o mesmo autor afirma que a palavra moral não possui um significado definitivo, já que é relativa. Em certas sociedades, por exemplo, era moral sacrificar crianças, torturar, comprar e vender escravos. Embora a associemos à ideia do bem e do mal, deve-se ter em mente que ela tem um significado relativo e não absoluto (JUNG, 2014, p. 195).
     Acontece que os símbolos religiosos que imperavam algum tempo atrás perderam sua energia. Já não estão vivos na psique da maioria das pessoas. O “Céu” e o “Inferno” medievais já não convencem. E aqui no Brasil o investimento simbólico na autoridade está se esgotando rapidamente, como já ocorreu em muitos outros países. Tende-se a compreendê-la como uma servidora do povo e não o contrário. Infelizmente, devemos ficar na expectativa de assistir ao nascimento do próximo símbolo que mobilizará as pessoas nesse novo tempo. Talvez isso ocorra ainda em muitas décadas, mas é certo que acontecerá como sucedeu em muitas outras épocas e povos. 



Referências
ELIADE, Mircea. História das crenças e das ideias religiosas: da idade da pedra aos mistérios de Eleusis. Rio de Janeiro: Zahar, 2010. vol. I.
JUNG, Carl Gustav. Seminários sobre análise de sonhos. Petrópolis: Vozes, 2014.

domingo, 25 de maio de 2014

Do instinto ao querer; do desejo à vontade

     A energia psíquica se manifesta através da vitalidade e da mobilidade que os conteúdos psíquicos possuem, o que podemos perceber através da introspecção. Um pensamento que persiste, uma música que ouvimos "na cabeça" o dia todo, um sentimento que ocorre por alguém, uma atração, a curiosidade, e muitos outros, são expressões do dinamismo da energia psíquica passando por essas manifestações. Assim como deduzimos que há uma energia elétrica “percorrendo” um aparelho que se movimenta, e que está ligado a uma tomada, o mesmo ocorre na psique. Ora, a maioria dos fenômenos psíquicos são inconscientes, e muitos deles advém dos instintos.
A arte ajudou o homem a
abstrair do concreto
     No homem primitivo a energia psíquica se expressava principalmente através dos instintos e ele não tinha energia disponível para fazer o que queria, mas apenas o que desejava. Por isso, não tinha nenhum domínio sobre si mesmo. Fazia o que seus instintos demandavam. Entretanto, na medida em que começou a dispor de tempo livre, principalmente após a descoberta do fogo e do seu transporte para as cavernas, passou a se expressar de forma artística à noite e na escuridão de sua habitação. Era nesse tempo ocioso, quando não podia se dedicar à caça, é que iniciou a arte. Essa expressão ajudou-o a se conscientizar de conteúdos psíquicos antes encobertos: seu temor e terror perante forças desconhecidas, sejam animais ou meteorológicas. Começou também a usar da magia, pois havia correspondência entre o que expressava nas paredes ou em outros materiais (madeira, pedra, barro, etc.) e os animais e objetos naturais que encontrava. Passou a se relacionar com essas correspondências como uma forma de preparação para a ação efetiva. Se iria caçar, ilustrava a caça ou fazia um boneco do animal e o "matava", etc. E isso realmente mobilizava sua energia instintiva para a ação que desejava. Ele tinha medo do javali, mas enfrentá-lo simbolicamente ajudava-o a ousar um pouco mais. 
     Gerações e gerações se passaram com a repetição desses rituais até que o homem desenvolvesse a abstração a um nível de poder se planejar antes, apenas mentalmente, para executar o que queria. A energia psíquica instintiva foi, gradativamente, através desses rituais mágicos, tornada disponível para a vontade, para o eu, aquele que antes precisava de ritualizar. Se hoje em dia o homem pode fazer não apenas o que deseja, mas também o que deve e o que quer, é porque conseguiu maior domínio de seus instintos. Conseguiu drenar energia dos instintos conscientizando as fantasias inconscientes a um alto nível de emprego.
     Quando se fala sobre as fantasias das quais se sente muita vergonha, ou medo, ou qualquer outro sentimento perturbador, como ocorre na arteterapia ou na psicoterapia em geral, ocorre sua objetivação, pois são lançadas para fora. Então pode-se percebê-las exteriormente, podendo-se observar os detalhes, analisá-las melhor e sob os mais variados aspectos: localização na folha, as cores, os traços, etc. Fazendo isso, elas se tornam conscientes, e trazem para a consciência o seu sentido inconsciente. Desse modo, consegue-se "tomar" a energia contida nessas fantasias. O eu passa a contextualizar seu sentido dentro de seu próprio repertório, como algo seu. Tanto isso ocorre, que agora o eu pode fazer o que antes não conseguia: se comportar de nova maneira frente a uma pessoa difícil, dominar-se frente a um estímulo que antes incitava desejos indomáveis, encarar com nova atitude os mesmos desafios, etc. Isso tudo indica um nível mais alto de emprego da energia psíquica do que ocorria anteriormente.
     Por isso pode-se afirmar que o homem que não consegue transformar seus instintos ou desejos em vontade, no sentido de alcançar um domínio crescente sobre si mesmo, deixa de humanizar-se, ou até de igualar-se aos animais no equilíbrio que estes possuem para com os próprios instintos. Torna-se menos que um animal, pois até estes sabem tomar atitudes apropriadas às diversas situações, sem ter que pensar a respeito. A violência desenfreada do homem é tudo, menos humana: é “subanimal”.

domingo, 26 de janeiro de 2014

A raiz do preconceito

     Um livro1 me chamou a atenção para o que seria, segundo o autor, a base do preconceito. Ele cita Hillman, o qual afirma que a supremacia da cor branca, chamada por ele de "supremacia branca", tem origem no fanatismo étnico, que é difícil de mudar, pois a "superioridade" da brancura é arquetípica. Algo é arquetípico quando está ligado aos fundamentos psicológicos da espécie humana como um todo, da mesma forma como o estão as religiões e suas concepções, os mitos e os instintos humanos. Os arquétipos são a base, o princípio da psique humana. Hillman demonstrou, por meio de estudos etnográficos sobre a África, que não só os brancos, mas também os negros possuem uma tendência a considerar as cores branca e negra como superior (boa) e inferior (ruim), respectivamente. O crítico cultural Todorov, também citado, liga o racismo ao simbolismo universal: "pares como preto/branco, luz/trevas, dia/noite parecem existir e funcionar em todas as culturas, sendo o primeiro termo de cada par geralmente o preferido".
     Na minha prática clínica, assim como na vida pessoal, já observei que os sonhos que trazem pessoas, animais e objetos negros geralmente diziam respeito a conteúdos que eram obscuros e inconscientes. É fato, por exemplo, que sonhos cuja trama se passa à noite, normalmente são mais difíceis de entender e trabalhar, pois remetem a uma condição mais confusa, vaga e "escura" para o sonhador. Realmente, não há como escapar do sentido simbólico dessas cores. A escuridão é negra, e um ser humano imerso na noite escura se sente completamente desorientado e passível de tropeçar e se ferir. O branco está relacionado, em geral, à pureza, à paz, à claridade, à luz, etc. A literatura universal e as obras poéticas são ricas de alusões, associações e valores em relação às duas cores.
     Então, os autores citados se perguntam porque o racismo resiste obstinadamente aos esforços políticos para sua erradicação. Sua resposta é que existe, neste caso, uma projeção dos valores arquetípicos da cor sobre as respectivas pessoas. Os racistas seriam pessoas literalistas que confundem a realidade física com a simbologia da cor, aplicando a oposição das cores preta/branca para fins preconceituosos. A solução de Hillman para amenizar o racismo é desliteralizá-lo ou perceber as cores como símbolos não aplicáveis às pessoas.
     Erich Fromm2 afirmou que a linguagem simbólica expressa experiências íntimas, pensamentos e sentimentos como se fossem fatos do mundo exterior. "A linguagem simbólica é uma língua onde o mundo exterior é um símbolo do mundo interior, um símbolo de nossas almas e de nossas mentes." Por isso os poetas, dentre os maiores usuários da linguagem simbólica, usam metáforas, isto é, transformam uma árvore, um clima, um membro do corpo, ou qualquer outra coisa, em símbolos de conteúdos interiores. Os povos do passado tinham os mitos e os sonhos entre as mais significativas expressões do espírito humano: não entendê-los tocava as raias do analfabetismo. Entretanto, o analfabetismo simbólico hoje em dia é muito mais comum do que imaginamos. Logo, aqueles que percebem a vida e o mundo de forma literal, tendem a perceber a pessoa negra da mesma forma como o faz com a noite, a escuridão, o abismo, e tantos outros fenômenos associados à cor negra. Seguindo esse raciocínio, aqueles que exercitam a linguagem simbólica mais frequentemente, pelo menos de maneira geral, seriam menos propícios a atitudes preconceituosas ou literalistas, pois podem mais perfeitamente diferenciar a pessoa do símbolo, o homem da cor.
     O livro mencionado no início deste texto trata brevemente sobre essa questão. Penso que o primeiro passo para amenização do preconceito em geral, e do racismo em particular, seja, como ocorre atualmente no Brasil e em outros países, provocar um repúdio generalizado com a divulgação de casos verídicos e a punição correspondente e o tratamento do assunto em novelas, filmes e outras mídias. Mas o aspecto educativo, levando-se em conta o ponto de vista simbólico do racismo, vai mais fundo.
     O homem moderno desaprendeu a linguagem simbólica e, tal como as pessoas que sofrem transtornos psicóticos, percebe a realidade de forma por demais literal, o que prejudica a interpretação mais acertada dos fatos. Atualmente, a decadência dos valores interiores aponta para a doença coletiva do homem contemporâneo: a fragmentação, o individualismo, a corrosão do coração que poderia uni-lo ao outro. O homem estaria vivendo um momento psicótico que percebe os símbolos como coisas, e não as coisas como símbolos, vê o que está lá fora como outro e não como símbolo de si mesmo. O simbolismo é uma linguagem natural, e enquanto o homem não se voltar à sua natureza interna, permanecerá sem raízes e se sentirá desagregado, seja internamente, seja socialmente.
1 - YOUNG-EISENDRATH, Polly. DAWSON, Terence. (Org.) Compêndio da Cambridge sobre Jung. São Paulo: Madras, 2011, p. 186.
2 - FROMM, Erich. A linguagem esquecida. Rio de Janeiro: Zahar, 1966, p. 14.