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domingo, 14 de agosto de 2016

O belo, o feio, Deus e o preconceito

Lucius transformado em burro, o que
é analisado na obra de Von Franz.
     Em sua obra “O asno de ouro”, Von Franz (2014, p. 180 a 184) traz diversas reflexões e fatos importantes, dentre eles, a relação entre o preconceito, a estética e a religião. A conexão é interessante porque nos ajuda a perceber como um aparente preconceito religioso na verdade encobre um profundo ensinamento psicológico que pode nos ajudar a desconsiderar ainda mais determinadas intolerâncias.
     Infelizmente, o homem tem identificado os valores mais sublimes à beleza, o que ocasionou um esteticismo que não se adapta à vida, uma vez que esta abarca sempre a soma de tudo o que existe, que se nos apresenta. A beleza eterna não existe na natureza. Sempre encontramos pinceladas de estranheza e horror, do mesmo modo que em nossas vidas. A vida é bela, mas também igualmente ordinária e desagradável; abrange aspectos totalmente opostos. No entanto, a perseguição exclusiva da beleza, ainda que na sua forma mais elevada, produz uma inflação, uma atitude irrealista que seduz o indivíduo a consegui-la a qualquer preço, em detrimento do seu oposto. Inflação é um fenômeno psicológico que ocorre quando um indivíduo se identifica com algo que não corresponde à sua própria realidade e dimensão. Então ele se acha muito maior ou muito diminuído em relação às outras pessoas. O termo advém do fato que certas pessoas sentem necessidade de se incharem, de se inflar, como que de ar, para parecerem maiores que a noção diminuída que possuem de sua própria imagem.
Os chineses, devido a sua alta cultura e gosto refinado, sempre estiveram ameaçados pelo esteticismo. Entretanto, eles desenvolveram um comportamento compensatório, um verdadeiro truque que é, contudo, bastante significativo. Nas áureas épocas Han, Soung e Ming, quando os majestosos trabalhos de arte foram executados, sempre que um artesão produzia um vasilhame de cerâmica ou um vaso de bronze, ele propositadamente, deixava um pequeno defeito. Poderia ser uma leve indentação ou mesmo a inclusão de um colorimento inadequado, apenas para evitar que a peça ficasse perfeita. Qualquer coisa que seja perfeita é imperfeita, num sentido mais profundo do termo, uma vez que os opostos não são incluídos. Mas os próprios chineses também veneravam bastante a beleza. Nós ainda identificamos nossos valores mais sublimes com os nossos valores estéticos. Uma mudança se mostra evidente, contudo, na arte moderna. Hoje, a arte quer destruir um falso esteticismo e mostrar a verdade nua e crua do ser humano como ele é. (Ibid., p. 183 a 184)
     Essa prevenção chinesa, porém, não é mera superstição. Constitui a realização de uma prática para que se lembrem que a beleza não pertence de modo algum ao homem ou a qualquer indivíduo. Ela é divina, e assim deve permanecer. O homem deve reconhecer que a simples ideia de que pode permanecer sempre belo é morte estar morto em vida. Isso ficou bem explícito nesta análise de filme: “Dorian Grey e a sombra na atualidade”. Para maior compreensão, vamos analisar a seguinte passagem bíblica:
Ovelha pronta a ser sacrificada a Deus.
21 Se ele tiver algum defeito — se for manco ou cego, ou tiver algum outro defeito grave —, não o sacrificarás a Iahweh teu Deus. (BÍBLIA, Deuteronômio, 15)
     O presente versículo descreve como deve ser o animal prestes a ser sacrificado a Jeová. Não pode ser manco ou cego ou ter algum outro defeito grave. É óbvio que, se não fosse por essa observação, o devoto sacrificaria os animais defeituosos ou mais feios para ficar com os mais bonitos e saudáveis. 
     Algo semelhante ocorreu com Zeus, quando Prometeu, desejando beneficiar os homens, dividiu um boi em duas porções: uma com carnes e entranhas, coberta com o couro do animal, e outra, apenas com ossos, coberta pela sua gordura, levando-as para que o deus escolhesse a que melhor o servisse. Zeus escolheu a segunda e, vendo que havia sido enganado, tirou o fogo dos homens, em sua ira.
     Nesses casos, percebe-se que não haveria sacrifício algum. Ocorreria tão somente uma autopromoção do ego do suposto devoto, no primeiro caso, e, coletivamente, do homem, no segundo. Porém, para os desavisados isso pode parecer que as divindades possuem preferência pelo belo. Nada mais longe da verdade. Trata-se de uma prevenção, um aviso de que a perfeição e a beleza pertencem ao transcendente, ao divino, como quer que ele se expresse, e não ao homem. Assim, este deve sacrificá-las, desfazer-se e livrar-se do que mais o atrai, e ficar com o imperfeito e defeituoso. Assim ele poderá aceitar-se como humano que é, com suas limitações, sem maiores pretensões. E, fazendo isso, pode desenvolver-se e alcançar maior plenitude. Um conto do ciclo do Rei Arthur ilustra muito bem o que aqui é expresso. 
     O rei Arthur se encontrava com jovens cavaleiros caçando na floresta, quando abateu um cervo. Ao preparar a presa, um cavaleiro desconhecido, armado e poderoso o confrontou, dizendo que o rei o afrontava há muito tempo e por isso o ameaçou de morte imediata. O monarca alegou se encontrar desarmado e a honra cavalheiresca obrigou o estranho a propor outro compromisso. No mesmo dia do ano seguinte o rei compareceria novamente desarmado com a resposta ao seguinte enigma: “O que uma mulher mais deseja no mundo?”. Sir Gawain se inteirou do ocorrido e propôs que ambos saíssem em direções diferentes perguntando  a todos os homens e mulheres sobre o enigma, anotando as respostas. O total das respostas totalizou um livro. Mas o rei, não satisfeito, ainda queria mais, apesar de faltar apenas um mês. Se aventurou na floresta, onde encontrou a bruxa mais feia já vista por olhos humanos: rosto vermelho, nariz destilando muco, grande boca, dentes amarelos pendendo-lhe sobre o lábio, pescoço comprido e grosso e pesados seios dependurados (ZIMMER, 2005).
O casamento de Sir Gawaine. 
Não obstante, o horror de sua aparência não está apenas na fealdade de seus traços, em seus olhos grandes, estrábicos e avermelhados vê-se uma sombra aterrorizante de medo sofrimento. Ela se oferece para dar a Arthur a resposta certa que salvará sua vida, sob a condição de um cavaleiro de sua corte tornar-se seu marido naquele dia. Transpassado pelo terror, Arthur se recusa, mas Gawaine se oferece para o medonho sacrifício. De volta à presença do cavaleiro demoníaco que está prestes a cortar-lhe a cabeça e levá-la para Morgan Le Fay, Arthur redime-se dando a resposta certa: o que as mulheres mais querem é sua soberania diante dos homens. Depois, é celebrado o casamento entre Gawaine e o hediondo ser. Toda a corte está compadecida de sua terrível sina. Quando os noivos ficam a sós na câmara nupcial, a noiva exige ser beijada. Apesar de sua repugnância, Gawaine consegue cumprir a exigência. Nesse momento, a aparência da noiva se transforma e então Gawaine tem nos braços a mais linda virgem que já se viu na vida. Ela lhe revela que, com seu ato de nobreza, ele a havia libertado de um encantamento, mas não inteiramente, pois, durante metade do tempo, ela ainda precisa revestir-se daquela forma terrível. Ele pode escolher a parte do dia em que ela deve ser feia e estúpida; se prefere tolerar a vergonha diante da corte ou a repugnância à noite, em seus momentos de intimidade. Gawaine prefere não fazer esta escolha e deixa que ela decida, desejoso de consentir com a preferência da esposa. Ao entregar-lhe desse modo sua soberania, o feitiço é quebrado por completo, e daí em diante ela aparece como a linda donzela que é, dia e noite. (WHITMONT, 1991, p. 189) [Clique aqui para acessar um álbum com fotos no Facebook que descreve o conto]. 
     Ora, é aceitando-se como é que o homem pode crescer. É a partir do que é, de sua natureza mais autêntica, que forma a base e os degraus da ascensão, que o indivíduo pode progredir para um nível mais alto de ser. Se ele nega quem é, nega também a matéria-prima do seu trabalho pessoal. Como poderá o oleiro moldar seus vasos negando a argila com que suja suas mãos? Mal sabe o homem moderno que, para alcançar a perfeição, é preciso aceitar-se inteiro, sem rejeição. E só isso já constitui obra de uma vida inteira. O preconceito, infelizmente, é o maior sinal de que o homem está muito longe de si mesmo, quanto mais da perfeição.


REFERÊNCIAS

VON FRANZ, Marie-Louise. O asno de ouro: o romance de Lúcio Apuleio na perspectiva da psicologia analítica junguiana.  1. ed. Petrópolis: Vozes, 2014.
WHITMONT, Edward C. O retorno da deusa. 1. ed. São Paulo: Summus, 1991.
ZIMMER, Heinrich. A conquista psicológica do mal. 2. ed. São Paulo: Palas Athena, 2005.

segunda-feira, 25 de abril de 2016

Os três níveis de consciência

Diagrama do Tai-Chi chinês, representando a integração das polaridades Yin/Yang.
Créditos: facebook.com/vozesdobrasilmpbOficial/
     Os dois primeiros círculos apontam para um primitivo estágio de consciência, onde a realidade está dividida em simples opostos: o lado do bem e o lado do mal. Não existe nenhum movimento dos pontos, indicando que o indivíduo tem uma estrutura praticamente estática, inerte, empedrada. Nessa fase, a percepção da realidade só comporta dualidades - "ou estão do meu lado ou são meus inimigos", "se isso não é mau, é bom", "gosto do mocinho e odeio o bandido", etc. A personalidade é inflexível e as pessoas desse nível, difíceis de lidar. Estão identificadas com uma parte ou com a outra. "Sou assim!", e ponto final. Não há consideração pelo ponto de vista do outro. Dependendo do lado, são consideradas superficialmente bons cidadãos ou malfeitores pela sociedade.
     O par de desenhos seguinte retrata um nível intermediário de consciência, em que há a percepção de que, dependendo da perspectiva, algo considerado em geral mal, possui também aspectos bons. Ou que nada é puramente prejudicial, nem tão somente virtuoso. Aqui existe movimento nas duas "gotas", que aparentam um girino, isto é, um ser vivo, com dinamismo orgânico. A perspectiva estática dualista é lançada por terra. O indivíduo percebe que é uma mistura de defeitos e virtudes, e que é incapaz de determinar, em um certo momento, em dada condição, qual parte irá prevalecer. Existe mais flexibilidade com relação ao que se pode ser, de acordo com o que a situação exigir. Admite-se amar também os defeitos alheios. Mas a atividade dos "pingos" ainda é separada. Ora percebe-se o mal em si, ora no outro; se se nota que tem um lado positivo, não é possível a mesma observação, no mesmo instante, no outro. Estabelece-se o conflito: para que eu seja considerado bom, o outro tem que ser mal. Por isso, em uma discussão é quase impossível se sair da defensiva - ou me considero justo e o outro culpado ou vice-versa, sentindo-me confortável ou não.
     O desenho unificado configura um dinamismo e a ausência de conteúdos estagnados e separados. É um estágio avançado de consciência porque engloba todos os outros e vai além. Se existe conflito, este se configura apenas com o(s) outro(s), que não possui(em) a perspectiva total. Vivencia-se a dualidade em si e no outro, simultânea e ativamente. Existe aqui a flexibilidade e a inflexibilidade, assim como vários outros pares de opostos, conjugados de maneira temperada, de acordo com a vontade do sujeito. Mas "vontade" aqui é mais que um mero anseio do Eu, pois engloba que o indivíduo faça também aquilo que não é ou seria sua escolha no momento devido à compreensão de que também percebe a verdade oposta dentro de si.
     É preciso pontuar que nenhum desses estágios ocorre de forma estanque no ser humano. Do mesmo modo que a última figura contém todas as outras, as fases anteriores ocorrem ainda de maneira mais ou menos fortuita e momentânea no terceiro nível, prevalecendo aquele que tiver sido mais desenvolvido. Por vezes, um sujeito no primeiro estágio de consciência pode ter um insight instantâneo do que seja viver no terceiro, e isso pode ser a chave para iniciar uma grande mudança de vida. Do mesmo modo, um indivíduo relativamente realizado pode de repente "surtar", caindo rapidamente no primeiro ou segundo nível, para seu sofrimento.
     Se a figura completa do Tai-Chi for imaginada girando, nota-se que os dois pequenos anéis no interior do Yin e do Yang formarão cada qual um círculo e se manifestará um centro que se aplicará aos dois. Na figura sem movimento esse centro não se revela, apenas na dinâmica da vida, nesta em que há continuamente a alternância de estados, humores e situações. Assim é a totalidade humana, gerenciada a partir do centro imóvel e imutável, que se expressa nas mudanças de estados psíquicos. A psicologia chama a esse centro de Si-mesmo.
     Para a filosofia chinesa as mudanças prevalecem sobre as oposições. Não existe juízo de valor - um lado ser superior ao outro. Yin não é mal, nem Yang o bem. E assim é se se pensar na interação e alternância dessas oposições como vida. O primeiro "evoca a ideia de tempo frio e encoberto, e aplica-se ao que é interior, enquanto o termo Yang sugere a ideia de exposição ao Sol e de calor. Em outros termos, Yang e Yin indicam aspectos concretos e antitéticos do tempo. [...] O mundo representa, pois, 'uma totalidade de ordem cíclica, constituída pela conjugação de duas manifestações alternativas e complementares'" (ELIADE, 2011, p. 26). 
     Em um pequeno tratado está escrito: "Um (aspecto) yin, um (aspecto) yang, eis aí o tao". Ou seja, o tao, traduzido aqui como "vida", comporta dois aspectos opostos que se alternam. Esse vocábulo quer dizer também "caminho", evocando a imagem de uma trilha a seguir, a ideia de direção de conduta, de regra moral, e, por fim, a arte de pôr em comunicação o Céu e a Terra (Ibid. p. 27).
     Portanto, não se deve abrir mão da vida em favor de estados estáticos de prazer, nem de dor, no caso dos masoquistas, por mais difícil que isso possa parecer. Isso não é vida, mas morte em vida. Vida é movimento, é alternância, é mutação. O sofrimento e as doenças mentais advém de querermos impor a permanência de estados inconstantes, enquanto que permanente só pode ser nossa contemplação de sua passagem na nossa caminhada. E é claro que em grande parte não temos consciência dessa autoimposição, pois a incorporamos culturalmente. Se nos acostumarmos a tomar posição no centro, poderemos contemplar a totalidade dos processos vitais sem angústia. Neste caso alcança-se o verdadeiro estado de felicidade, pois nos colocamos no rumo do sentido, sob a direção do centro da personalidade.
     (NOTA: A leitura que faço do Tai-Chi é simbólica e aplica-se à psique humana, não se vinculando a nenhuma pesquisa científica.)

REFERÊNCIAS

ELIADE, Mircea. História das crenças e das ideias religiosas: de Gautama Buda ao triunfo do Cristianismo. Rio de Janeiro: Zahar, 2011. vol. II.

sexta-feira, 25 de março de 2016

Renascimento sensorial: um novo nome para uma antiga arte



     Gostaria, primeiro, de remeter o leitor à matéria do artigo "Renascimento sensorial - o novo Santo Graal da psicologia". Nela, em resumo, a pessoa é levada a aprender como prestar atenção nos sintomas corporais do seu transtorno de humor, durante um momento. Com isso, as emoções "negativas" passam, e o indivíduo pode retomar sua interação com as situações problemáticas sem respostas emocionais exacerbadas. Nas palavras de Pascale Senk, autora do texto:
Conseguir permanecer neste estado de “não-ação" do qual falam muitas tradições espirituais, especialmente as asiáticas como o budismo, o taoísmo e o zen. Tornar-se um observador dos grandes fluxos de energia que passam pelo corpo, sem se opor a eles. «O que Luc Nicon descobriu e formalizou na fórmula  do “renascimento sensorial” está hoje no cerne das terapias mais inovadoras do momento", avalia a Dra. Christine Barois. Terapias comportamentais e cognitivas, meditação da atenção plena, EMDR (EMDR: Eye Movement Desensitization and Reprocessing), terapia da aceitação, etc. 
Esses métodos também colocam muita ênfase no conceito de formação e fortalecimento da atenção. Quanto mais os praticarmos, mais fácil se tornará sua prática, e mais gratificantes os resultados.
     Portanto, a técnica não é nova, os iogues e budistas que o digam. Por outro lado, o processo e o resultado não é diferente do que ocorre ao cliente de um bom analista. Na análise, conduzida por profissional competente, o indivíduo é conduzido a questionar seus pensamentos, crenças e valores, é induzido a consultar os próprios sentimentos, sensações, ideias e criatividade acerca de seus problemas pessoais, ficando independente da opinião de outras pessoas, e aprendendo a gerir a própria vida. Com o tempo, o analisando fica "afiado" em analisar os diversos acontecimentos, uma vez que se submeteu à análise de sua própria personalidade, tornando-se muito mais objetivo - subentendendo-se aí o significado de "menos envolvido emocionalmente".


     Entretanto, nesses dias de valorização dos processos rápidos, certeiros e efêmeros, e de pouco dinheiro, "dar o bolo pronto", fornecer o "peixe", ao invés da vara de pescar, é mais lucrativo. É difícil encontrar alguém disposto a passar mais de um ano em análise, uma vez por semana, cinquenta minutos em um dia. Mas posso garantir que esse tempo mínimo que alguém pode dedicar a si mesmo por semana pode mudar uma vida inteira. É o melhor investimento que alguém pode fazer a si mesmo, porque vai reverberar em todas as situações da vida. O resultado? Muito mais espontaneidade e liberdade, energia de sobra para muitos outros projetos - e não para remoer toda espécie de fantasia - facilidade de análise, criatividade, dinamismo, etc.
     Mas não percebamos nesse uso frenético do tempo apenas malefícios. Uma vez nomeado, esse processo de "renascimento sensorial" pode ser aplicado com mais eficácia na psicoterapia dos consultórios, muito mais na modalidade "breve", para minorar o sofrimento do cliente com mais eficácia e agilidade. Sua intervenção pontual será sempre aconselhada. Tudo o que vem a somar é benéfico.

terça-feira, 9 de junho de 2015

Babadook: a imposição do luto (contém spoilers)

     "The Babadook" (2014) é um filme muito instrutivo psicologicamente e muito rico em símbolos. Se isso não bastasse, foi também considerado um ótimo filme de terror. "William Friedkin, diretor do clássico O Exorcista, classificou o título como a produção mais apavorante que já assistiu" (ROLLING STONE, 2015). Infelizmente, para quem não conhece um pouco de psicologia, seu sentido simbólico pode passar encoberto. Este pequeno texto busca cumprir esta finalidade.
Seis anos já se passaram desde a morte de seu marido, mas Amelia (Essie Davis) ainda não superou a trágica perda. Ela tem um filho pequeno, o rebelde Samuel (Noah Wiseman), e tem dificuldades para amá-lo. O garoto sonha diariamente com um monstro terrível e ao encontrar um livro chamado "The Babadook" reconhece imediatamente seu pesadelo. Certo de que Babadook deseja matá-lo, o menino começa a agir irracionalmente, para desespero de Amélia. (ADORO CINEMA, 2015)
     Babadook encarna o inconsciente de Amelia, que procura de todos os modos reprimir a lembrança do trágico acidente de carro em que o marido a levava para a maternidade para dar à luz a Samuel. Qualquer possível menção à lembrança do marido é evitada e/ou negada por Amelia, até mesmo chamar Sam de "garoto", o que o ex-marido fazia. Ela não supera os estágios iniciais do luto, a negação e a raiva (KUBLER-ROSS, 1996). Sam, por sua vez, sofre com a inadmissão da mãe, e passa a ter pesadelos e medos inexplicáveis, além de amedrontar parentes e colegas. Isso se deve a que a psique da criança, antes da puberdade, é dotada de um Eu apenas embrionário, ainda incapaz de afirmar sua personalidade. Contudo, somos tentados e considerá-las, muitas vezes, esquisitas, cabeçudas e difíceis de educar, como se tivessem vontade própria. Puro engano. Nesses casos deve-se examinar o ambiente doméstico e o relacionamento dos pais, nos quais encontramos, geralmente, as verdadeiras razões das dificuldades dos filhos. O comportamento perturbador das crianças é muito mais reflexo das influências incômodas e embaraçosas dos pais (JUNG, 1986).
     O filho passa à mãe o livro de Babadook, que tem mensagens como: "uma vez que você ver o que está embaixo, vai desejar estar morto" e "deixe-me entrar". Ora, o inconsciente normalmente é retratado como a parte da personalidade que vive "embaixo", isto é, abaixo do nível da consciência, como se fosse uma espécie de porão. E ela guarda as posses do falecido justo em um porão, as quais não deixa Sam ter acesso. Nas palavras deste, a mãe não o deixa ter um pai, mesmo que morto. Além disso, Amelia parece evitar também qualquer referência a sexo e ao amor compartilhado. Também parece perceber os gestos carinhosos do filho como sexuais, mesmo quando este está dormindo e recosta em seu corpo. Então afasta-se prontamente. Amelia sofre de insônia, e não é por acaso, pois precisa estar acordada e vigilante o tempo inteiro para evitar qualquer menção ou lembrança interna aos problemas que nega veementemente. Mas, como é muito comum nesses casos, ela não tem consciência nem de que nega esses assuntos. Não mencionar ou falar sobre o falecido é, para Amelia, seguir em frente com a vida. De fato, esse seria um bom indício de que conseguiu superar a morte do ente querido, se a menção a ele não a irritasse tanto. Quem supera uma perda e não a expõe, provavelmente o faz porque o fato já não possui a intensidade afetiva quanto tinha à época dos acontecimentos. Porém, para que isso ocorra, é necessário conviver com eles.
     Entretanto, assim que o filho começa a ser discriminado claramente na escola e pelos parentes, a situação se desestabiliza. Então Sam fica desobediente e agressivo. O livro de Babadook surge e fornece a ela um meio simbólico para expressar conteúdos do seu inconsciente, até então fortemente represados. O estado psíquico de Amelia, antes vigorosamente controlado, se desequilibra, em meio à instabilidade da iluminação e aos ruídos, ao que tudo indica autônomos, produzidos no ambiente. O episódio em que Sam empurra a prima da casa da árvore, quando esta expressava às claras o que sua mãe ocultava, denota seu tormento frente à situação psíquica insuportável. Ao tentar se justificar, e a mãe tentar controlá-lo, passa por uma convulsão. Samuel é medicado e, agora, só a mãe deverá lidar com sua repressão ao luto, às reais emoções que a perseguem, encarnados por Babadook.
... fechada à realidade interior
     O livro, depois de destruído, reaparece com outra frase: "Vou fazer uma aposta com você. Quanto mais negar, mais forte eu fico". Nesse ponto, o inconsciente de Amelia encontra-se muito carregado de energia psíquica. Manter os sentimentos e as emoções do luto separados do seu Eu serviu apenas para fornecer mais autonomia a eles, mais independência em relação às rédeas que quer firmar. "Você começa a mudar quando eu entro. O Babadook cresce sob a sua pele. Venha! Venha ver o que está embaixo!". O símbolo do senhor negro, de cartola, mostra que ela primeiro matará o cachorro, depois sufocará o filho, e por último suicidará. Babadook, a figura do falecido que a abraça e os insetos que a perseguem, é como se fossem a morte em pessoa que vem buscá-la por não admitir sua existência. Influências regressivas que a atraem para o que ela rejeita, e que ficam mais fortes com a aproximação do aniversário do sétimo ano do filho. Ele mostra que ela nutre sentimentos hostis em relação ao cão que fareja o porão, ao filho que confronta sua cegueira interna e a si mesma. Ele é o inconsciente que finalmente se apossa de sua personalidade para cometer atos impensáveis. Ao negarmos o que se encontra em nosso interior, o separamos de nós, provendo-o de vida independente de nossa vontade. Nós nos tornamos como uma casa à disposição de forças que agora nos são desconhecidas, porque não admitidas. E ao não reconhecê-las, corremos o risco de não perceber que passamos a atuar como elas, que nos tornamos exatamente o que antes não tolerávamos.
     Sam diz que não quer que a mãe vá embora porque, como as crianças estão em íntimo contato com o inconsciente, sabe que ela aos poucos está partindo para dar lugar à bruxa, à mãe má, que o colocará em perigo. Amelia só recobra a consciência para lutar contra a possessão sombria quando Samuel a acaricia enquanto tentava sufocá-lo. Ela vomita uma massa negra, cena muito semelhante à separação de Peter Park de Venon, em Homem Aranha 3, cuja analogia é muito pertinente. À negação segue a identificação (união), e, então, uma separação (análise) mais saudável. Ao alucinar a morte do marido torna-se possível vivenciar a angústia da perda. Por último, prevalece o instinto materno na batalha contra a força maligna, que agora aloja-se no porão. Curiosamente, quando a mãe surta, o filho volta ao comportamento natural.
     Amelia não se cura como, normalmente, se idealiza uma cura. Pode-se dizer que sua saúde mental é restabelecida na medida em que ela reconhece a realidade do que se encontra em seu interior. Também teve que contar com outra força inconsciente igualmente poderosa: o instinto ou amor materno. O inconsciente teve que gritar, urrar e se impor para ser notado e respeitado. Por isso, e para manter uma boa relação com seu inconsciente, ela deve servi-lo diariamente com um símbolo que representa a morte e, de certa forma, a primeira (e parece que última) vitória desta: vermes extraídos do jardim onde o cão está enterrado. Mãe e filho compartilham da percepção da fera negra, como se esta fosse uma realidade comum a ambos, agora aceita inteiramente, como algo interno que, vivenciado externamente, exige atenção e respeito. Não é permitido a Sam visitar a fera, mas apenas quando for adulto. É a mãe que deve se relacionar com ela, pois é um problema dela. Foi preciso que alucinasse, que saísse de sua realidade, para que atentasse ao avesso do mundo exterior, que muitas pessoas desprezam: o espaço interno.





REFERÊNCIAS

ADORO CINEMA. Disponível em: <http://www.adorocinema.com/filmes/filme-226493>. Acesso em: 7 jun. 2015. 

BABADOOK. Direção: Jennifer Kent. Produção: Jan Chapman. Intérpretes: Essie Davis, Noah Wiseman, Daniel Henshall, e outros. Roteiro: Jennifer Kent. Austrália: Causeway Films
Smoking Gun Productions, 2014. IMDb: 6,9.

JUNG, Carl Gustav. O desenvolvimento da personalidade. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 1986, v. XVII.

KUBLER-ROSS, Elisabeth. Sobre a morte e o morrer: o que os doentes têm para ensinar a médicos, enfermeiras, religiosos e aos próprios parentes. 7. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

ROLLING STONE. Disponível em: <http://rollingstone.uol.com.br/noticia/i-babadooki-entenda-como-uma-diretora-pouco-conhecida-fez-um-dos-filmes-mais-assustadores-em-anos>. Acesso em: 7 jun. 2015.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

A solidão e o trabalho com o inconsciente

     A solidão pode ser classificada em física, mental e espiritual. A primeira consiste em simplesmente retirar-se para uma floresta ou lugar deserto e não contar com a presença de pessoas. A segunda, no fato de não se poder levar em conta a presença dos amigos e familiares no próprio ambiente, ou até mesmo um estranho, para compartilhar um sofrimento, uma dor pessoal. A pessoa sente-se sozinha. A solidão espiritual é normalmente buscada por pessoas que procuram uma espiritualidade mais elevada, tais como monges e eremitas. Interessante é que nas tradições de muitos povos constam vários procedimentos de cautela com relação a pessoas que ficaram isoladas durante algum tempo. Qual seria a razão? (VON FRANZ, 1985, p. 194).
     Ocorre que, no dia a dia, as pessoas usam sua energia (a libido) disponível em suas relações com o meio ambiente. Na solidão essa energia, uma vez não empregada, é represada internamente e ativa o inconsciente, reforçando-o. A solidão pode fazer com que o indivíduo tenha seu inconsciente ativado, o que pode ocasionar a possessão por forças nocivas, ou encontre uma realização interior maior. Entretanto, mesmo neste último caso, a tendência é que, de início, haja sempre uma espécie de “possessão pelo mal”. Os que procuravam a santidade no passado inicialmente eram atacados por “demônios”, já que a energia disponibilizada pela solidão ativa primeiro os complexos autônomos do inconsciente. Assim que estes são resolvidos os frutos da solidão passam a ser positivos. Isso fica bem explícito nos diversos contos e casos expostos por Marie Louise Von-Franz (1985, p. 194-195), donde foi extraída a maior parte do presente texto.
     A própria autora, motivada por Jung, descreve como fez um experimento consigo mesma, se fechando em uma cabana nas montanhas, na neve. Uma típica introvertida, de início Von Franz (1985, p. 195) se sentiu muito feliz, se ocupando o dia inteiro com a cozinha e com o que iria comer no dia seguinte, o que evitou seu maior contato com o inconsciente. Além disso, ela esquiava, ia uma vez ao dia a uma vila para comprar pão e leite e travar certo contato com as pessoas, o que anulava o efeito do isolamento. Ela então decidiu reforçá-lo: passou a ingerir comida enlatada para não ir à vila, deixou de esquiar e passou a cozinhar rapidamente comidas “sem graça”, como macarrão e algo assim, de modo a não gastar sua energia. O tempo começou a se arrastar  muito lentamente, e cada minuto se tornou uma eternidade. A situação foi piorando, mas ela aguentou.
Comecei a imaginar que assaltantes costumavam entrar em tais cabanas, principalmente prisioneiros fugitivos à procura de armas ou roupas civis, caso ainda estivessem com o uniforme listrado. Essa fantasia tomou conta de mim por completo e, sem perceber que era justamente isso o que procurava, fiquei tomada pelo pânico. Peguei o machado de cortar lenha, coloquei-o ao lado da cama e fiquei acordada, tentando decidir se teria coragem de golpear tal homem na cabeça, se ele aparecesse, e, assim, não consegui dormir. Aí tive que ir ao banheiro que ficava fora, na floresta coberta de neve, e no meio da noite vesti as calças de esqui e saí pelo escuro. De repente algo caiu atrás de mim, saí correndo, caí de cara na neve e voltei ofegante. Daí percebi que era apenas um pouco de neve que tinha caído de uma árvore, mas com o coração aos pulos e o machado ao lado da cama, não consegui dormir. Na manhã seguinte achei que bastava e que devia voltar para casa, […] (VON FRANZ, 1985, p. 196)
Marie Louise Von Franz
     Então, de repente, ela percebeu que esse era o efeito que estava procurando: o inconsciente tinha sido ativado com a energia em excesso, soltando seus demônios... Ela resolveu fazer imaginação ativa (o conceito encontra-se em Vocabulário) com o assaltante, uma interação com essa figura interior através da imaginação, e se sentiu completamente bem e segura. Toda vez que a figura surgia em sua imaginação, Von Franz interagia com ela e a paz voltava. Antes de praticar a imaginação ativa, ela estava a caminho de ser sutilmente possuída.
     Essa experiência a ensinou que a solidão dá vida ao que existe no inconsciente. E se o indivíduo não souber como lidar com esse material, este surgirá primeiro de forma projetada. No seu caso a projeção veio sob a forma da ideia de um criminoso. Mas se ela estivesse em uma civilização que ainda acreditasse em demônios, ela poderia ter pensado que o Curupira havia chegado, dando nome ao conteúdo inconsciente. A maioria das pessoas não é capaz de lidar com situações desse tipo por muito tempo, recorrendo à companhia de outras para se proteger.
     Entretanto, a solidão não apenas constela o mal no interior do indivíduo, como também exteriormente. Quando um indivíduo vive sozinho, distante de uma comunidade humana por muito tempo, as pessoas começam a projetar a sombra delas sobre ele. Mesmo durante viagens prolongadas, quando o laço de afeição e de sentimentos se afrouxa, as pessoas deixadas para trás podem começar a tecer teias das mais incríveis ideias negativas a respeito daquela que as deixou. Porém, quando o que se afastou volta, o contato e o calor humano do momento dissipam essas nuvens de projeção. Assim, quem vive sozinho atrai o mal de sua própria natureza, mas também atrai projeções. Por isso os solitários dão a impressão de serem estranhos e, se ocorre algo desagradável, normalmente se pensava que a culpa era deles. Em tempos antigos isso era muito mais frequente. O estranho era considerado errado e perigoso, trazendo uma atmosfera de doença, de morte e de transtorno nas relações humanas. Por isso era preciso se aproximar dele com várias precauções. Hoje em dia, o indivíduo volta à comunidade e argumenta, se defende ou explica o próprio comportamento, o que dissipa as “nuvens negras”. Mas quando não conseguem compreender alguém, as pessoas projetam seu próprio mal sobre elas (VON FRANZ, 1985, p. 199).
     Entretanto, a ativação do inconsciente não depende apenas do isolamento, seja ele físico, psicológico ou espiritual. Certos processos psicológicos podem ativá-lo, o que produz forte impacto na consciência, fazendo o indivíduo se sentir ameaçado ou, no mínimo, desorientado. Em casos mais graves, o inconsciente pode tomar o lugar da realidade, o que é patológico (JUNG, 1991a, §595).
     Nesse momento, valem algumas reflexões sobre as implicações dos fatos demonstrados até este ponto. Constatou-se que, quando o inconsciente é ativado pelo isolamento, este ocorre dependendo do grau de isolamento e de represamento da energia à disposição do eu. Entretanto, pode-se imaginar que o inconsciente pode ser mais ou menos intensamente ativado a depender do nível de energia que possui, isto é, se ele já possui uma atividade intensa, um isolamento brando ou por pequeno período poderá fazê-lo mais veemente com relativa facilidade. Isso explica porque as crianças, que já possuem um contato mais direto e vigoroso com o inconsciente, são assaltadas por medos despertados por fantasias, quando ficam por pouco tempo sozinhas. Explica também porque adolescentes e mesmo adultos são assaltados por medos inexplicáveis em determinadas épocas, insistindo em dormir com a luz acesa, principalmente sob isolamento. Nessa categoria de medos irracionais pode-se citar os medos de morte, de acidente, de fantasmas, de criminosos, de manifestações meteorológicas inofensivas, etc.
     Por outro lado, é interessante observar como os indivíduos deprimidos insistem, naturalmente, em permanecer solitários. Essa condição apenas faz aumentar os sentimentos de angústia, medo e tristeza intensos que compõem a depressão. A solidão como que amplifica os sintomas, talvez em uma tentativa de intensificá-los para se fazerem notar pelo sujeito, aumentando a consciência da situação interna. Aliás, muitos psicoterapeutas recorrem a técnicas de amplificação de sintomas com o fito de produzir insights curativos. O exemplo mais claro é Mindell (1989), que pede uma descrição pormenorizada do sintoma e procura produzi-lo no cliente com a manipulação corporal deste pelo terapeuta ou por si mesmo.
     Tudo na vida possui aspectos positivos e negativos, dependendo da situação, do contexto. Não é diferente com a solidão. Se o estado de alguém é desesperador, é terapêutico se buscar a companhia de outras pessoas, embora possa ainda haver exceções. Já se existe a necessidade de autoconhecimento e de mudança, um período mais ou menos longo de solidão pode fazer muito bem. O Zaratustra de Nietzsche (2010) pode fechar aqui com uma boa reflexão:
Solitário, tu segues o caminho que leva a ti próprio! E teu caminho passa diante de ti e de teus sete demônios.
Serás herege para ti mesmo, serás feiticeiro, adivinho, louco, incrédulo, ímpio e malvado.
É mister que queiras consumir-te em tua própria chama. Como renascerias, se ainda não te reduziste em cinzas?
Solitário, segues o caminho do criador: um deus queres criar de teus sete demônios!

domingo, 4 de maio de 2014

A psicologia por trás do Homem-Aranha

     A trilogia do Homem-Aranha, de Sam Raimi, assim como a nova série “O Espetacular Homem-Aranha”, tratam do processo de amadurecimento de Peter Parker, e também da nossa individuação, enquanto heróis da nossa própria vida. O primeiro filme trata da ferida que dá origem ao herói: a culpa pela morte do tio Ben. O segundo sobre a dúvida se ele deve continuar sendo um herói ou não. O terceiro resolve essa dúvida, pois Peter se identifica com seu papel de herói, o que constela sua sombra: Venon, que terá de confrontar para o bem de sua integridade psíquica. A nova série já desloca a ferida do herói para o abandono dos pais, fato que irá repercutir em todos os filmes, principalmente na insegurança e no sentimento de exclusão de Peter. Uma análise mais completa dessa série só será possível ao seu término, para se encadear um filme ao outro e se detectar para onde a aventura está caminhando.
No filme 'O espetacular Homem-Aranha', Peter Parker
ajuda o cientista Curt Connors a elucidar sequência
lógica incompleta há anos.
     Peter, psicologicamente, é um pensador, mas tem que lidar com seus sentimentos, conteúdos opostos às ideias. Enquanto aranha, ele “balança” de um oposto psíquico para outro, a fim de alcançar a condição humana de equilíbrio, sem se identificar com um ou outro, uma vez que ambos fazem parte da vida e da psique. O azul associa-se à tranquilidade, à pureza, à exatidão, ao frio, à imaterialidade e à espiritualidade. O vermelho, se liga à vida, aos instintos, à vigilância, à inquietude. Identificar-se com um deles, sejam eles quais forem, é querer tornar-se um deus, resolver tudo com uma fórmula só, como num “passe de mágica”, o que nos torna impiedosos para com aqueles que se identificam com o lado oposto. Isso é bem ilustrado no Homem-Aranha 3, na forma como é cruel com Mary Jane e seu amigo. Por isso a aranha, que possui oito patas, faz uma mandala no peito do herói, um símbolo de totalidade, de abrangência dos opostos.
     O que ajuda Parker a resistir à tentação a se tornar uma espécie de deus é já ter estado do “outro lado”, já ter sido um fraco, e por isso conhece o valor da força. Ele sofria bullying na faculdade, e é provável que sofrera também nos estágios escolares anteriores. Mas é justamente essa vivência que o impede de cair na tentação do poder, e usá-lo contra os demais. Sua sombra é o herói, o homem poderoso, e sua tarefa é integrá-la à sua vida e tornar-se um homem íntegro.
     No primeiro filme, Peter assume a persona de herói, simbolizada pelo uniforme, e se identifica com ela. No segundo, sente necessidade de reprimir a vida de herói, pois acabou deixando outras necessidades de lado, como a paixão por Mary Jane. Por isso perde seus poderes e fica novamente míope. Mas a chave para saber lidar com a vida de herói e com as necessidades humanas é a disciplina, e não a repressão. Esta é usada devido ao medo de usar compulsivamente seus poderes. Isso só ocorre quando não se está consciente de possuir as qualidades opostas, devido à repressão de uma das polaridades. Porém, o Aranha só vai descobrir isso no 3º filme, quando descobre o quanto pode ser mau.
Os vilões do Homem-Aranha nos quadrinhos.
     Os vilões que o Aranha enfrenta representam obstáculos em sua psique que ele precisa superar. Todos eles podem ser classificados em duas categorias: ou são cientistas, ou são objeto/produtos de estudo científico avançado. De alguma forma estão relacionados à atividade intelectual, e acabam por sucumbir ao poder. Os vilões dos dois primeiros filmes e de “O Espetacular Homem-Aranha” são admiradores da performance intelectual de Peter, como que denunciando o perigo de se fixar apenas em uma função ou qualidade psíquica. As quatro funções psíquicas (pensamento e sentimento, sensação e intuição) são formas de orientação da consciência para adaptação à vida. Elas formam pares em oposição, e não podem se desenvolver sem prejuízo da função oposta, pois uma interfere no funcionamento da outra. Por isso, quando o sentimento se desenvolve, a função intelectual não progride, e vice-versa. As funções que não progridem. alcançam uma feição inferior, primitiva. Caem totalmente ou em parte no inconsciente e a partir daí operam através do indivíduo de forma involuntária, podendo ocasionar acidentes e todo tipo de erro. Isso está explicado de maneira mais extensa na monografia “A intuição e a sensação em dependentes de droga na perspectiva da psicologia analítica”, onde os opostos intuição e sensação são explicados com mais propriedade. Como Peter desenvolveu mais a função pensamento, e é do tipo psicológico intelectual, mas ao mesmo tempo sente necessidade de evoluir seu sentimento, pois percebe que não consegue lidar muito bem com pessoas caras em sua vida. Harry e Marko parecem ser do tipo sentimento, e são os únicos vilões que Peter perdoa.  
   Já os demais (Norman, Otto, Curt e Max) morrem no final, pois representam justamente o uso excessivo do intelecto que precisa findar na vida de Peter. É como se estes fossem personificações de sua função intelectual que precisava de maior objetivação para que ele pudesse percebê-la melhor para se aproximar mais da função oposta.
     A título de conclusão, é pertinente fazer um paralelo das aventuras do Homem-Aranha com a estrutura das sagas dos heróis em geral. O herói quase sempre é engolido pelo monstro na batalha decisiva, o que ocorre com Peter quando é “engolido” pelo Simbionte, que toma seu corpo com o traje negro. Isso ocorre com Jonas, na Bíblia. É no interior da baleia que este começa a ajustar contas com ela, que nada na direção do nascer do sol (JUNG, 1991d, §160). No caso, o Aranha ajustou contas com a sombra coletiva na igreja, e depois ao explodi-la, quando o sol desponta. Só então Peter perdoa o Homem-Areia, uma alusão ao seu renascimento.

(Leia mais a respeito: "A sombra do Homem-Aranha")

domingo, 26 de janeiro de 2014

A raiz do preconceito

     Um livro1 me chamou a atenção para o que seria, segundo o autor, a base do preconceito. Ele cita Hillman, o qual afirma que a supremacia da cor branca, chamada por ele de "supremacia branca", tem origem no fanatismo étnico, que é difícil de mudar, pois a "superioridade" da brancura é arquetípica. Algo é arquetípico quando está ligado aos fundamentos psicológicos da espécie humana como um todo, da mesma forma como o estão as religiões e suas concepções, os mitos e os instintos humanos. Os arquétipos são a base, o princípio da psique humana. Hillman demonstrou, por meio de estudos etnográficos sobre a África, que não só os brancos, mas também os negros possuem uma tendência a considerar as cores branca e negra como superior (boa) e inferior (ruim), respectivamente. O crítico cultural Todorov, também citado, liga o racismo ao simbolismo universal: "pares como preto/branco, luz/trevas, dia/noite parecem existir e funcionar em todas as culturas, sendo o primeiro termo de cada par geralmente o preferido".
     Na minha prática clínica, assim como na vida pessoal, já observei que os sonhos que trazem pessoas, animais e objetos negros geralmente diziam respeito a conteúdos que eram obscuros e inconscientes. É fato, por exemplo, que sonhos cuja trama se passa à noite, normalmente são mais difíceis de entender e trabalhar, pois remetem a uma condição mais confusa, vaga e "escura" para o sonhador. Realmente, não há como escapar do sentido simbólico dessas cores. A escuridão é negra, e um ser humano imerso na noite escura se sente completamente desorientado e passível de tropeçar e se ferir. O branco está relacionado, em geral, à pureza, à paz, à claridade, à luz, etc. A literatura universal e as obras poéticas são ricas de alusões, associações e valores em relação às duas cores.
     Então, os autores citados se perguntam porque o racismo resiste obstinadamente aos esforços políticos para sua erradicação. Sua resposta é que existe, neste caso, uma projeção dos valores arquetípicos da cor sobre as respectivas pessoas. Os racistas seriam pessoas literalistas que confundem a realidade física com a simbologia da cor, aplicando a oposição das cores preta/branca para fins preconceituosos. A solução de Hillman para amenizar o racismo é desliteralizá-lo ou perceber as cores como símbolos não aplicáveis às pessoas.
     Erich Fromm2 afirmou que a linguagem simbólica expressa experiências íntimas, pensamentos e sentimentos como se fossem fatos do mundo exterior. "A linguagem simbólica é uma língua onde o mundo exterior é um símbolo do mundo interior, um símbolo de nossas almas e de nossas mentes." Por isso os poetas, dentre os maiores usuários da linguagem simbólica, usam metáforas, isto é, transformam uma árvore, um clima, um membro do corpo, ou qualquer outra coisa, em símbolos de conteúdos interiores. Os povos do passado tinham os mitos e os sonhos entre as mais significativas expressões do espírito humano: não entendê-los tocava as raias do analfabetismo. Entretanto, o analfabetismo simbólico hoje em dia é muito mais comum do que imaginamos. Logo, aqueles que percebem a vida e o mundo de forma literal, tendem a perceber a pessoa negra da mesma forma como o faz com a noite, a escuridão, o abismo, e tantos outros fenômenos associados à cor negra. Seguindo esse raciocínio, aqueles que exercitam a linguagem simbólica mais frequentemente, pelo menos de maneira geral, seriam menos propícios a atitudes preconceituosas ou literalistas, pois podem mais perfeitamente diferenciar a pessoa do símbolo, o homem da cor.
     O livro mencionado no início deste texto trata brevemente sobre essa questão. Penso que o primeiro passo para amenização do preconceito em geral, e do racismo em particular, seja, como ocorre atualmente no Brasil e em outros países, provocar um repúdio generalizado com a divulgação de casos verídicos e a punição correspondente e o tratamento do assunto em novelas, filmes e outras mídias. Mas o aspecto educativo, levando-se em conta o ponto de vista simbólico do racismo, vai mais fundo.
     O homem moderno desaprendeu a linguagem simbólica e, tal como as pessoas que sofrem transtornos psicóticos, percebe a realidade de forma por demais literal, o que prejudica a interpretação mais acertada dos fatos. Atualmente, a decadência dos valores interiores aponta para a doença coletiva do homem contemporâneo: a fragmentação, o individualismo, a corrosão do coração que poderia uni-lo ao outro. O homem estaria vivendo um momento psicótico que percebe os símbolos como coisas, e não as coisas como símbolos, vê o que está lá fora como outro e não como símbolo de si mesmo. O simbolismo é uma linguagem natural, e enquanto o homem não se voltar à sua natureza interna, permanecerá sem raízes e se sentirá desagregado, seja internamente, seja socialmente.
1 - YOUNG-EISENDRATH, Polly. DAWSON, Terence. (Org.) Compêndio da Cambridge sobre Jung. São Paulo: Madras, 2011, p. 186.
2 - FROMM, Erich. A linguagem esquecida. Rio de Janeiro: Zahar, 1966, p. 14.

sábado, 18 de janeiro de 2014

Nossos conflitos interiores

     Ao contrário do que passa o convívio social, nós não somos apenas uma pessoa. Quem já não teve pensamentos, sentimentos, lembranças e emoções que não queria ter, que limitam nosso bem estar? Quem nunca se arrependeu de agir de certa maneira? Quem não tem ou nunca teve vícios e certos tipos de compulsões? Ora, se fôssemos de fato alguém, seríamos apenas quem somos, mas o fato é que somos várias pessoas, somos alguéns.
     E como temos outros convivendo com o que pensamos ser apenas eu, sempre passamos por conflitos. Queremos ser equilibrados, competentes, pontuais, responsáveis, esforçados, bonitos, fortes, inteligentes, carismáticos... Qualidades dignas de um herói. Queremos ser o herói da nossa vida e de onde vivemos. Mas, para isso, teríamos que ser apenas um. Aliás, o esforço heroico dos mitos e filmes consiste na aventura de se procurar vencer todos os obstáculos e ameaças a essa unidade, tais como o desequilíbrio, a incompetência, o atraso, a preguiça, a feiura, a burrice, etc. Porém, mal sabemos que a unidade que podemos alcançar consiste menos em não ser contraditório do que estar consciente da nossa multiplicidade interior. Quando admitimos que somos vários, damos o primeiro passo para essa mítica e heroica unidade, pois aí podemos perceber os outros em nós e confrontá-los. 
     No livro “Viver a vida não vivida”, Robert A. Johnson (2010, p. 201) afirma existirem dois tipos de opostos: os opostos contraditórios, que podem se cancelar mutuamente – direita/esquerda, embaixo/acima, etc., e os opostos contrários – claro/escuro, saúde/doença, etc. Os primeiros não podem se conciliar, pois a oposição aí é absoluta. Já os contrários comportam aspectos que, apesar de se oporem, se misturam em transição de um para o outro, pois fazem parte de um processo dinâmico, como o dia claro, o nublado, a tempestade e a noite, por exemplo. Johnson menciona a “velha ética” como um sistema de valores que insiste na oposição contraditória do bem e do mal, e não na sua “contrariedade”. Por isso, os valores considerados “maus” são reprimidos logo na origem, na infância, o que também gera o mal humor crônico, resultado do total culto à virtude.
De acordo com o pensamento em branco e preto (opostos contraditórios), precisamos escolher ou isto ou aquilo. Somos tentados a seguir esse tipo de pensamento quando somos confrontados com paradoxos. Mas o paradoxo é um poço artesiano de significado do qual precisamos muito em nosso mundo moderno. A contradição é estática, ao passo que o paradoxo abre espaço para a graça e o mistério. (JOHNSON, 2010, p. 202)
     Abordar o paradoxo, continua o autor, é viver em um nível de consciência mais ampla, aberta para a vida intensa e a liberdade. O sofrimento sempre ocorre quando separamos os opostos. Um exemplo típico é a separação diversão/trabalho. Se apenas queremos nos divertir, consideramo-nos irresponsáveis. Se só trabalhamos, a vida torna-se amarga. Ora, isso ocorre porque, ao separar as qualidades em nós, somos separados com elas, tornamo-nos os próprios opostos, pois identificamo-nos com um e negamos o outro. Entretanto, com o tempo, sem o outro sentimo-nos vazios, pois queremos apenas ser uma parte do todo. Esse “vazio” é justamente a ausência do oposto que reprimimos. E isso me fez lembrar de Lao Tsé em seu livro “Tao te ching”: “Modelai o barro para fazer um jarro. Recortai no espaço vazio das paredes portas e janelas a fim de que um quarto possa ser usado. Dessa forma o ser produz o útil mas é o não-ser que o torna eficaz.” O “não ser” é o que não somos, o que rejeitamos em nós, nossa sombra. É como se precisássemos de um fio, mas só quiséssemos tocar em uma ponta: nunca conseguiremos utilizar o fio todo para não nos aproximar da ponta oposta. Mas só o faremos com sucesso, eficazmente, após aceitarmos as duas pontas. Assim é a vida – nunca conseguiremos lidar com suas diferentes situações, de forma completa e eficaz, se aceitamos só uma parte de nossas ferramentas (os opostos).
     Portanto, o conflito surge da nossa atitude parcial, lateral e unívoca. Queremos que uma parte de nós viva e a outra morra, mas esquecemos que nesta também corre sangue e impulsos nervosos, que também é corpo e alma.


(Leia mais a respeito: "Dorian Gray e a sombra na atualidade")