segunda-feira, 14 de outubro de 2019

Coringa - somos todos insanos em potencial (contém spoilers)


     Diversas análises psicológicas de "Coringa" foram feitas. Gostaria de apenas pontuar certos aspectos que, no meu ponto de vista, marcaram o filme, foram pontos-chave para seu entendimento. 
     É interessante como estão surgindo filmes em que os vilões de tempos atrás agora são justificados em sua integridade, acrescentados de uma biografia que contextualiza suas maldades. Nessa leva estão "Malévola", "Esquadrão Suicida" e "Venom". Isso pode estar denunciando uma movimentação incomum na psique objetiva mundial em relação a conteúdos sombrios inconscientes. Filmes como "A Bela e a Fera", bem mais antigos, já apontavam para essa dinâmica em estágio nascente. Uma certa valorização da sombra, que pode ser salutar se for aceita conscientemente, sem que necessariamente se concorde com as atitudes correspondentes. Os conteúdos sombrios precisam ser aceitos, ter a oportunidade de se expressar, de se fazer conhecer pelo ego, e depois serem confrontados com os valores conscientes do indivíduo, que este de certa forma "diga" à sombra que existem sentimentos, valores humanos, que devem ser respeitados. Isso equilibra a psique e mantém sua integridade.
     Arthur Fleck é o Coringa. Em inglês fleck significa os substantivos mancha, nódoa, mas também o verbo pintar, salpicar e manchar. Assim, Coringa é uma espécie de mancha ou nódoa da sociedade. Ainda assim, uma sociedade que seja completa não pode abrir mão da sua loucura, a contraparte da racionalidade, da estabilidade e da estrutura, pois ela fornece a desorganização necessária - o caos - para que o criativo possa surgir e ter seu lugar.
     É interessante como Arthur Fleck confessou à assistente social que "durante toda sua vida não sabia se existia de verdade". Isso é muito comum nas pessoas que costumam negar seus conteúdos psíquicos originais e espontâneos (pensamentos, sentimentos, sensações e fantasias). Essa negação se baseia no que a pessoa percebeu que a família e a sociedade valoriza e despreza. Percepção essa que pode estar em muitos aspectos baseada em fatos reais, mas também, por outro lado, em concepções distorcidas da realidade e de si mesmas. É comum que, iniciada uma psicoterapia, percebam o quanto são reais, que "ganham existência" quando podem compartilhar seus sentimentos genuínos com as pessoas. Algumas sentem como se pudessem "apalpar" seu próprio eu, como se este ganhasse alguma substância que antes não possuía. 
     Mas o que acontece com Coringa é que ele vai surgindo, vai brotando aos poucos da trama, revelando seu estado, semelhante ao que ocorre com Norton no filme "Clube da Luta". Arthur usa uma máscara (persona) rígida, a de palhaço, para sempre mostrar um sorriso. Sua profissão é rir e fazer rir. Apenas a alegria, as risadas, podiam se manifestar, ao modo do filme "Divertida Mente", que personificou Alegria, Tristeza, Medo, Raiva e Nojinho na mente de uma menina. Não sabendo como se expressar autenticamente, como se fazer presente para se sentir existente, acaba recorrendo ao assassinato dos três agressores no metrô. Antes de ser um assassinato, os tiros são atos de revolta, de "explosão" contra ações que não respeitam limites, que ferem os mais fracos e não aceitam as diferenças. A violência neste caso, assim como nos casos de homens agressivos física e verbalmente com as esposas, é expressa devido ao indivíduo não encontrar outra maneira de exteriorizá-las. Antes de executar os agressores externos, sua máscara o agredia internamente, sufocando-o. Quando os mata, um ato equivalente é efetuado contra as forças repressoras internas, que agora foram para o "além" interno, o inconsciente. Arthur muda: deixa conteúdos que antes eram inconscientes entrarem, fazerem parte do seu ego. De gentil, tímido e receptivo, agora passa a ser violento e bem mais sensual. O que facilita essa espécie de conversão é ele parar de tomar os remédios psiquiátricos, que impediam a manifestação dos sintomas e retinham os conteúdos sombrios.
     Então surge a imagem interna correspondente à vizinha com que se encontrou no elevador. Por um bom tempo ela o acompanha e tem uma atitude receptiva para com ele. Isso acontece provavelmente por ele se mostrar mais acolhedor em relação às forças antes inconscientes. Elas ganham realidade. Com isso ele adota cabelos verdes no lugar da peruca e o próprio nariz, mais originais do que os do palhaço.
     Interessante é que Arthur, no programa de TV, faz uma crítica lúcida à realidade de Gotham. Não fossem os atos extremamente violentos poderia se dizer que ele havia se curado quase completamente. Coringa torna-se um líder da multidão, pois representa os elementos mais espontâneos, originais e indigentes de atenção da psique da coletividade.
     Segundo o Dicionário Michaelis online, Coringa (Curinga) pode ter várias interpretações, essencialmente a de indivíduo ou elemento que pode exercer funções variadas ou mudar de valor conforme a situação, seja no papel de ator, jogador, carta de baralho ou caractere (o asterisco, p. ex.). E Coringa, surpreendentemente, se torna um agente dos anseios do povo de Gotham, o que nem mesmo ele esperava. Mundialmente, o filme também faz muito sucesso, o que talvez não ocorresse tempos atrás. Talvez o mundo esteja bem mais receptivo a figuras de vilões, enquanto representantes do inconsciente coletivo. Aceitar que figuras como essa surjam do nosso interior não é perigoso, se se mantiver uma distância crítica em relação ao que elas possam originar em nós. O risco é que as pessoas as reprimam ou se identifiquem com elas, o que foi exemplificado no filme. O maior perigo é o homem não se conhecer, não aceitar a realidade do seu ser, como é. Ele pode até não concordar e se recusar a agir de acordo, mas tem que lidar com as expressões involuntárias do seu ser, para não se haver com manifestações irresponsáveis e impensadas como as do filme. Doenças, conflitos e morte é o mínimo que pode resultar daí. Saibamos viver a partir de dentro lá fora.

Leia mais a respeito: "A origem e a natureza do Eu" - "A origem do Eu", "A solidão e o trabalho com o inconsciente", "O pensamento positivo e a auto-ajuda", "Como integrar o seu dragão", "Gita - uma análise do 'Eu Sou'", "Alice no inconsciente coletivo", "Imaginação ativa ou terapia com o Sr. Inconsciente", "Os três níveis de consciência", "O belo, o feio, Deus e o preconceito", "Gita - uma análise do Eu Sou".

4 comentários:

  1. Excelente texto. O Coringa ainda ressalta que a sociedade quer que pessoas com algum problema mental se enquadrem no perfil delas, ou seja, que estas pessoas reprimam o seu eu verdadeiro em busca de um padrão que não é o delas. O filme é mais um retrato da nossa sociedade, e acerta em cheio ao mostrar uma crítica implícita sobre como nos comportamos mediante a determinadas situações. Outro detalhe interessante, no filme mostra que o Coringa imaginou inúmeros momentos com a sua vizinha e com o apresentador logo no início do filme, o que pode nos dar o seguinte questionamento: será que o Coringa imaginou tudo isto?

    - Diógenes.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. A fantasia com o apresentador pode refletir a ânsia dele por ser aceito por um pai - este que foi eleito pela mãe, que ele depois rejeita assim que percebe que espécie de mãe a sua foi. Sobre a vizinha, eu a citei no texto.

      Excluir
  2. Este comentário foi removido pelo autor.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Acho que "aceitar" a sombra passa uma ideia de integração. Nesse caso vejo mais como uma predominância da sombra. Um ego mal estruturado (e aqui entra inclusive a pressão do ambiente e do entorno relacional) que aos poucos foi sendo dominado à medida que a sombra foi sendo confrontada...

      Excluir

Se quiser comentar, discutir ou colocar sua dúvida, faça-o aqui.