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domingo, 12 de março de 2017

Orgulho - o desprezo de mim mesmo

     Um dos maiores erros que o ser humano pode cometer, principalmente porque dele decorrem vários outros erros e complicações que podem levar, inclusive, ao fim da espécie, é não se aceitar como é. Não se aceitar, não se amar, promove uma cisão na personalidade. Se rejeito quem sou, logo existem duas personalidades em mim: quem despreza e quem é desprezado. E geralmente utilizamos de um artifício ainda mais ardiloso para não nos encontrarmos interiormente com aquela "persona non grata", pessoa indesejável. Nos recusamos a percebê-la, a escondemos de nós mesmos, fingimos que nunca a conhecemos.
     Ao mesmo tempo que repelimos essa parte sombria, idealizamos quem gostaríamos de ser, almejamos ser quem não somos. Isso se encontra bem expresso na trama da queda de Lúcifer. Este desejava ser como Deus, almejava substituí-lo. Deus percebeu o que ocorria e o expulsou do céu. O mesmo tema se desenrola de novo no Jardim do Éden, com a expulsão do casal primordial por ter caído (isso mesmo!) na tentação de querer ser como Deus, que sabe diferenciar o bem do mal. Este é o conhecido "pecado original". Entretanto, a religião reconhece apenas o aspecto mais superficial, de o homem, inicialmente, querer se igualar ao divino. Psicologicamente, porém, um dos pontos de vista menos explorados é o fato de haver uma recusa do homem e do anjo da luz em se aceitar como são - o início da divisão interna do homem. Assim, de um lado permanece a unidade original, Deus; do outro lado, a parte que é expulsa do paraíso - o homem e Satanás. A unidade, assim, representa o estado inconsciente primitivo e potencial; já a dualidade significa a consciência, o conhecimento do caráter duplo de tudo o que existe: o bem e o mal, o negativo e o positivo, o agradável e o desagradável, etc. A duplicidade aponta para o jogo de luz/sombra, por meio do qual os elementos se tornam perceptíveis. Luz sem sombra ofusca; sombra sem luz, torna tudo obscuro.
     O Diabo é conhecido no meio cristão como o "pai da mentira". Do grego, DIA- (através) + BALLEIN (jogar, lançar, atirar), diaballein ou diabo significaria "jogar através", "lançar através", isto é, dividir, separar, guerrear, conflitar. Logo, essa figura rejeita a unidade, que é divina, considerada "verdade" e de posse do paraíso. Já a palavra "símbolo" deriva de SYN- (junto) + BALLEIN (lançar, jogar, atirar), indicando "o que se lança junto", "jogar junto", com o sentido de comportar, no mínimo, dois elementos diferentes em união. O símbolo possui uma parte clara, conhecida, que é a figura pela qual o percebemos; ao mesmo tempo, contém outra parte, desconhecida, o seu sentido, da qual somos inconscientes. A poesia, os textos religiosos, os mitos, os contos de fada, os sonhos, as visões e as fantasias são repletos de símbolos. Portanto, se o símbolo, pelo menos etimologicamente, se opõe ao Diabo, indicaria este tudo o que é literal, claro e plenamente expresso? Penso que sim.
     O sentido do Diabo seria a tendência que todos temos em nos identificar com apenas um dos extremos, ser parcial, um polo apenas. Não é possível a identificação com os dois aspectos opostos de um mesmo elemento, pois se dou o mesmo valor aos dois lados, é sinal de que me distancio de ambos. Desse modo, não sou possuído pelo vício ou pelo anseio do prazer do objeto ou pessoa. É interessante, nesse sentido, o fato de que os dependentes químicos tendem a perder, com o tempo, a noção da linguagem simbólica, e que, na medida que a recuperam ou a desenvolvem, conseguem se distanciar das drogas. O mesmo é válido para os psicóticos, uma vez que se encontram muito prejudicados em perceber seus conteúdos internos de forma simbólica, o que os leva a tratá-los como literais, isto é, reais, projetando-os no mundo exterior. Esta explanação sobre o símbolo explica porque o desenvolvimento do pensamento científico isoladamente, tal qual é amplamente divulgado hoje em dia, é nocivo psicologicamente. A ciência pode transformar o indivíduo em demônio de si mesmo e de seus semelhantes.
     Com a tentação e a queda do homem veio o trabalho, a dor e a morte. Isso ocorreu porque, para haver trabalho a condição necessária é a oposição de dois polos, uma diferença de potencial: positivo e negativo (corrente elétrica), baixo e alto (caixa d'água), expansão e contração (motor), etc. A dor e a morte acompanham porque, com a identificação a um dos opostos, de tempos em tempos somos levados, involuntariamente, ao polo oposto, pois este aflora assim que a identificação afrouxa. Isto ocorre principalmente quando estamos cansados, estressados ou de alguma maneira incomodados. A força do nosso eu para deixar os conteúdos indesejados à distância diminui. Esses aspectos, então, vêm à tona. Com isso, dolorosa, apesar de temporariamente, mudamos, "morremos" para quem éramos. Assim que nos recuperamos, voltamos novamente à posição anterior, tradicional, segura. Esse processo ocorre continuamente até que aprendamos a nos distanciar dos extremos, alcançando e trilhando o caminho do meio. O Budismo aborda essa questão pela via do desejo: precisamos parar de desejar, uma vez que isso só leva ao sofrimento.
     É curioso que, em geral, associa-se a atitude do Diabo ao orgulho próprio. Seria, portanto, o orgulho uma forma de atitude extrema? Sim, porque o indivíduo prioriza, na imagem de si mesmo, o ideal coletivo ou particular, sem levar em conta sua personalidade total, que comporta também os aspectos opostos. Isso fere a unidade original, a totalidade psíquica, representada por Deus, uma das imagens do arquétipo do Si-mesmo. Ele tenta tomar o todo pela parte, generalizar para si o que é somente uma pequena porção. Isso desequilibra o estado de harmonia psíquica, que pode levar a sérias patologias. A própria Bíblia exemplifica esses casos em um episódio do livro de Daniel (clique aqui para acessar o relato completo), quando Nabucodonosor se ensoberbece, sonha com o prenúncio do próprio episódio psicótico temporário, tem seu sonho corretamente interpretado pelo profeta e depois de um ano volta a se autoengrandecer. Anuncia-se a doença e seu afastamento temporário do reinado, o rei passa a ter comportamentos próprios de animais e, depois de um tempo, volta à razão, atribuindo à grandiosidade antes imputada a si a Deus.
     Diabo, Deus, paraíso, Adão e Eva... mais do que personagens de antigas histórias, verídicas ou não, fazem parte de uma trama que encenamos diariamente. Importa menos se são mitos, ou se, admirados pela origem sagrada, sejam sempre lembrados como imagens perenes do que nos aguarda após a morte. Mais importante é lembrarmo-nos deles como realidades vivas em nós, a quem devemos atentar para não cairmos presas de sofrimentos inconscientes, para não sermos lançados no fogo do inferno de nossas paixões e podermos gozar um pouquinho do céu para, quem sabe um dia, conseguirmos permanecer por mais tempo no paraíso.


REFERÊNCIAS E BIBLIOGRAFIA

BÍBLIA. Português. A Bíblia de Jerusalém. Tradução de Domingos Zamagna. São Paulo: Paulinas, 1985.
EDINGER, Edward F. Ego e arquétipo. 2. ed. São Paulo: Cultrix, 1992.
______. O encontro com o Self. 1. ed. São Paulo: Cultrix, 1991.
JUNG, Carl G. Psicologia e religião. Petrópolis: Vozes, 1978. v. 11/1.

domingo, 5 de março de 2017

Sistemas políticos e coletivos em oposição ao indivíduo

     Segundo Jung, sistemas coletivos como o partido político e o Estado são destrutivos para as relações humanas. Ao mesmo tempo, podem ser facilmente destruídos, na medida em que o indivíduo é inconsciente e incapaz de apreender o crescimento e a fusão das massas. O maior exemplo são os estados totalitários, que minam as relações pessoais por meio do medo e da desconfiança, com o fito de fragmentar a massa e, assim, sufocar a alma humana. "Até mesmo a relação entre pais e filhos, que é a mais íntima e natural, é rompida pelo Estado. Todas as grandes organizações, que perseguem exclusivamente fins materialistas, são as precursoras da massificação." Nem é preciso lembrar que o modelo mais patente dessa afirmativa é a implantação do Comunismo, como ocorreu na história recente. Nesse sistema, o sujeito era separado dos pais, ainda criança, para servir ao Estado.
     Porém, é preocupante o fato de também o Capitalismo servir a fins materialistas e ter um grande papel na massificação humana, com consequências para a perda de valores e até da saúde dos indivíduos. Mas a Ciência é outra instituição que serve, por enquanto, ao isolamento de funções psíquicas muito importantes ao bem-estar do ser humano, tais como o sentimento e a imaginação, devido à ênfase no ponto de vista materialista. Não é o Capitalismo isolado que possui efeitos nocivos, mas seu vínculo à Ciência positivista, a qual tem grande responsabilidade sobre a tecnologia empregada na produção industrial, que ainda ocorre independente de noções éticas ou de valores em relação à sua aplicação.
     A única forma de escapar a essa situação seria o desenvolvimento da consciência individual, que tornaria os sujeitos imunes à sedução das organizações coletivas. Isso ocorreria devido à preservação da alma, da psique, cuja base é o relacionamento humano. Jung fez essa apreciação sob o efeito da vivência da 2ª Guerra Mundial, cujos resultados prejudiciais sobre toda a humanidade perduraria ainda por décadas. A Alemanha sofrera uma psicose de massa, cuja maioria dos cidadãos se recusava insistentemente a admitir seu papel nas ações diretas danosas a outros povos, mesmo anos após a derrota do Führer. Não havia consciência da responsabilidade coletiva como sentimento humano geral, pois apenas "executavam ordens" ou não haviam feito nada pessoalmente prejudicial em consonância aos demais.
     O fato de a psicologia haver surgido aponta para uma reação a uma dinâmica que já se encontrava incipiente no inconsciente coletivo humano. Em certo momento na história, a pessoa real tornou-se um problema, e esta, enquanto indivíduo, se opõe fortemente ao totalitarismo e à massificação.

 
O interesse na psicologia tem a inevitável consequência de fortalecer a consciência individual, o que, segundo a experiência, é o melhor instrumento contra a influência devastadora da psique massiva. Se este movimento vingar e assumir maiores proporções, controla-se a fechadura da maior ameaça à nossa civilização. [...] O homem massificado significa catástrofe massificada. (JUNG, 2002, p. 82)
     Todas essas reflexões, embora aparentemente remotas, são atuais. Basta pensarmos no papel do terrorismo muçulmano e, por que não, no de um fenômeno bem mais próximo: a revelação do uso intenso da corrupção no Brasil. Infelizmente, os partidos só conseguem mirar um só objetivo - o poder; os relacionamentos humanos são iniciados ou mantidos para se conseguir força para galgar ou se manter o partido no poder. Este não constitui meio para se conseguir benefícios ao povo, exceto enquanto acalentador objetivo potencial, quando ainda permanece apenas na intenção de voto. Esse estado corresponde à fase de namoro de um casal. Por não se conhecer as agruras da convivência diária, que inclui não só as qualidades, mas também os defeitos do outro, tudo vai às mil maravilhas. Mas quando se casa (o partido assume o poder propriamente dito), aí vêm os problemas. O relacionamento com o poder torna-se o problema principal, enquanto o amor ao povo, aos carentes, aos analfabetos, aos doentes, aos desnutridos, as boas intenções prévias, ficam esquecidas.
     A saída, como já aludido, é o desenvolvimento da consciência individual, que passa pelo autoconhecimento, pela noção da situação psicológica pessoal. É preciso que os cidadãos e os políticos olhem para dentro de si e se reconheçam, percebam como são. O problema maior não é ter muitos defeitos, e sim não percebê-los como parte de si, em seu interior. É não aceitá-los como são. Porque, se não o fazemos, aí seremos eternos escravos de nosso lado sombrio, que permanecerá invisível, nosso ponto cego. Então, como eleitores, o elegeremos nossa autoridade; e, como político, faremos o que a massa inconsciente, nossa origem, seduz fazer desde sempre: corromper e ser corrompido.


(Leia mais a respeito: "A verdadeira atitude científica", "Tipos psicológicos: teoria e vivência", "A fascinação pela tecnologia", "A verdadeira atitude científica", "Consciência ética e moral no Brasil", "A crise e o espírito do tempo no Brasil de hoje", "Porque não consigo mudar")

REFERÊNCIAS

JUNG, Carl Gustav. Cartas II. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 50, 78, 82.

quinta-feira, 16 de abril de 2015

A ampliação da consciência humana

As quatro funções de orientação da consciência.
     Possuímos quatro funções para nos orientarmos no mundo: a sensação nos passa que existem objetos e pessoas ao nosso redor, assim como nos transfere as impressões internas dos sentidos (imagens, calor/frio, dor/prazer, etc.); o pensamento identifica esses objetos e pessoas para nós, assim como as citadas impressões internas, com o uso das ideias, do raciocínio; o sentimento possibilita avaliarmos esses elementos com relação ao grau de nosso desejo ou agrado; e a intuição nos fornece as variadas possibilidades desses elementos externos ou internos, assim como sua combinação para algum fim: no que resultarão, de onde vieram, etc. Ocorre que cada um de nós nos identificamos com uma dessas funções em grau maior ou menor, o que faz com que tenhamos pontos de vista diferentes sobre o mundo e nós mesmos, seja com base no interior ou exterior, assim como em uma dessas funções. Se nos identificamos com o pensamento, então vamos dar prioridade a nos relacionar com nós mesmos e com o mundo com base nas ideias, nas regras, no raciocínio e na lógica. Se o fazemos com a função sentimento, usaremos os sentimentos para isso, e assim por diante. Isso nos caracteriza como tipos psicológicos: seremos do tipo pensamento se tendemos a usar principalmente essa função, no mesmo raciocínio da última frase.
     No começo da civilização, o homem conseguiu desenvolver pela primeira vez uma função, tornando-a consciente, trazendo-a do inconsciente coletivo para utilizá-la para seus propósitos.  O momento em que ele pôde dizer que tinha um objetivo ou vontade de fazer mais e mais marcou o surgimento da separação dessa função do inconsciente. O mesmo ocorre com o indivíduo, em uma escala menor, desde o seu nascimento até a adolescência ou a vida adulta. Ele separa uma função específica como principal para lidar com os fatores externos e internos de sua vida. Entretanto, se o sujeito desenvolve apenas uma função, fica ciente de que pode fazer algo, mas estará sempre em uma condição psicológica muito desfavorável, pois ainda existem três outras funções no inconsciente - uma condição esmagadora. 
     Se adquire uma segunda função, torna-se mais completo, ganha mais equilíbrio e adquire uma espécie de consciência filosófica. Pode conseguir se conscientizar de que é um ser psicológico. Poderá dizer: "quero fazer isso OU aquilo"; ou então: "vejo o quão tolo isto é", se referindo a si mesmo. Com uma só função isso é impossível. A aquisição de duas funções funciona como um espelho, com o qual reflete os assuntos a que dá atenção. A mão esquerda pode julgar a direita, e então ele ganha um ponto de vista superior. A terceira função traz um segundo espelho. Ele diz: "Vejo esse cara aqui que vê aquele fulano, do qual percebo as ideias e que chega a uma conclusão errada". Com a quarta função haveria uma carga tremenda de consciência que possibilitaria o acompanhamento dos bastidores de si mesmo. É provável que haja um limite para se alcançar isso, mas pelo menos teoricamente existe essa possibilidade. 
     Um indivíduo que desenvolvesse as quatro funções seria fabulosamente superior às condições em que se situa, possuindo uma liberdade quase ilimitada, comparável à liberdade divina, já que Deus é a primeira e a última condição. À medida em que as funções são assimiladas, o que projetávamos de nosso inconsciente para o mundo é recolhido para dentro de nós mesmos, pois reconhecemos essas partes antes separadas de nós. Isso nos retira do homem inferior, fazendo-nos adquirir uma espécie de divindade. Quanto mais espelhos adquire, mais divino se torna, assim como mais inflado também, idêntico ao próximo espelho. Mais longe fica de sua sombra, de tudo o que é baixo e fraco, talvez sujo, que se encontra ainda banhado nas águas originais, coberto pelo lodo primitivo. Vamos para mais e mais longe de tudo isso com a aquisição progressiva de conhecimento. Então um fato peculiar acontece.
Quanto mais nós nos afastamos de nossas raízes, mais nos identificamos com os espelhos, mais ineficientes nos tornamos, porque o espelho não tem pés, não tem mãos. Ele é completa consciência, talvez, ainda sem efeito, exceto o efeito que nós podemos dar a ele. O que está dentro significa extremamente pouco. Eu posso dizer a uma pessoa que coisas são isso e aquilo, mas ela simplesmente não pode transformar em realidade, porque o discernimento conta pouco a não ser que lhe sejam dados mãos e pés. Quanto mais longe vamos, menos eficientes somos. (JUNG, 2014, p. 573)
     Essa condição de se viver cada vez mais no espelhamento provoca a nossa retirada da substância, o que quer que isso possa significar. Essa tremenda consciência nos mantém fora da existência, e não se saberia dizer se estamos vivos ou mortos. Porém, quando olhamos algo no espelho, percebemos que não o possuímos, pois podemos apenas pegar sua imagem, já que somos removidos delas. A realidade parece ser um tipo de ilusão. Existe aqui uma forte semelhança com o Nirvana oriental. 
     Talvez essa seja uma das bases da física quântica, pois com o desenvolvimento do pensamento, após a Revolução Francesa, a matéria tende a se tornar espírito. Pensamento é matéria e matéria é pensamento - não existe mais diferença. Todo o conceito de matéria está se dissolvendo em abstrações.
     Penso que, ao nível de civilização, ainda estamos longe de atingirmos o desenvolvimento psicológico esboçado aqui por Jung (2014). Entretanto, no estágio atual conseguimos alcançar como que uma espécie de simulação desse tipo de consciência ampliada por meio dos recursos de disponibilidade de informação e de tecnologia. Podemos nos "espelhar" em vários pontos do planeta, sem estarmos realmente lá, assim como muitas outras pessoas se espelham em nossos lares, no conforto dos nossos assentos. Podemos executar atos que antes demandavam muita energia, como pagamento de contas e compras, com um simples clique do mouse. Os lugares, pessoas, períodos de tempo e as coisas agora se espelham na tela à nossa frente, e esses reflexos influenciam a substância lá fora, ao contrário do efeito da assimilação das funções aludido acima. Estamos com o mesmo nível de consciência de nossos avós, mas com a vantagem de podermos estendê-la no espaço e no tempo, com uma carga de informação muito maior. Isso não parece ser bom nem mau, mas capaz de realizar uma homogeneidade de nível de conhecimento, de maneira a generalizá-lo, tornando-o disponível. As coisas e as pessoas estão se abstraindo no virtual e se dissolvendo nele sem que alcancemos uma consciência maior. Isso poderia ser mais desastroso não fosse a generalização do conhecimento. Espero que assim seja.


REFERÊNCIAS

JUNG, Carl G. Seminários sobre análise de sonhos. Petrópolis: Vozes, 2014. p. 567-577.
______. Tipos psicológicos. Petrópolis: Vozes, 1991.

segunda-feira, 6 de abril de 2015

A fascinação pela tecnologia

O que leva o homem a se fascinar pela tecnologia? Por que ele se permite viciar por aparelhos como o smartphone ou players de jogos? O que há por trás desses produtos tecnológicos? São perguntas que compelem à reflexão, tendo em vista que qualquer um de nós pode ser assaltado lenta e silenciosamente por uma compulsão viciante sem se aperceber do fato.
Hórus, Osíris e Ísis, deuses egípcios.
Jung (2014, p. 510) diz que aqueles que adoram ídolos sabem que estes foram feitos pelo homem. No entanto, ainda assim são escolhidos como morada de Deus ou tornados sagrados, vasos da santidade. O mesmo ocorreria na construção de um aparelho, de uma máquina, pois ao fazê-lo se está conferindo um poder criativo e divino a ela. Pode parecer uma atividade mecânica, mas ela pode nos invadir de forma invisível. Agora, que poder divino é esse?
Os aparelhos e máquinas são instrumentos que nos possibilitam alcançar o inalcançável, estender nossos membros ao que antes era não atingível. Podemos fazer coisas que não faríamos só com nosso corpo. Por isso os aparelhos nos fascinam. O que antes era prerrogativa dos deuses, agora é nossa possibilidade. A tecnologia nos tornou deuses. Nos deu poderes que antes não tínhamos. Antes só deuses e pássaros podiam voar. Apenas os deuses deixavam a terra para habitar os confins dos céus. As invenções permitem que nós cheguemos aonde nenhum homem jamais foi. Nos permite atingir o infinitamente pequeno, assim como abarcar o imensamente grande, por enquanto apenas conseguindo dados… Só Deus sabe o que poderemos conseguir depois... Esse poder criativo confere poderes realmente celestiais às máquinas, sem os quais o homem ainda estaria confinado às cavernas, sua morada original. O centro da existência agora é o homem. Os deuses estão deixando de habitar ídolos para se encarnar nas invenções.
O homem não quer saber se está desvalorizando as próprias relações humanas. Permanece horas e horas contemplando e manipulando uma pequena “tabuinha” de metal e plástico, com a qual pode acessar outros humanos em qualquer outro lugar da Terra. O conhecimento se tornou disponível com um pequeno gesto. Um pequeno movimento pode comandar aparelhos, embora já haja estudos para possibilitar serem estes comandados por nossos próprios pensamentos. O sobrenatural está dando lugar à tecnologia, e esta a várias novas doenças psíquicas, como o vício em jogos, em smartphones, à Internet, por exemplo, sem falar nas psicossomaticas, ou nas doenças derivadas diretamente da debilitação do sistema imunológico.
No momento em que escrevo este texto, ele pode, a qualquer hora, ficar disponível para milhões de pessoas que quiserem ou puderem acessá-lo, bastando que digitem algumas palavras em um buscador. Compras podem ser feitas em outros países sem que saiamos do lugar. O banco pode ser acessado até mesmo à noite, fora do expediente, tornando possível que transfiramos valores ao outro lado do mundo! Podemos transmitir nossa imagem e voz instantaneamente ao outro, o que era obra de ficção científica há algum tempo.
Estamos nos tornando cada vez mais nossos próprios deuses, transferindo o sagrado para a tecnologia. Mas… a serviço de que? Qual a finalidade disso? O que fazemos com isso? São questões que não podemos deixar de tentar responder, pois corremos o risco de oprimir o outro, como já ocorreu por tantas vezes na humanidade. Tragédias ocorreram por conta desse poder criativo do homem, pela não atenção aos valores sentimentais. Não conseguimos pensar em mais nada a não ser no que nos compele a fazer, fazer e fazer, sem animação, sem senso crítico. Não usemos nossos sentimentos e nos tornaremos máquinas. 






REFERÊNCIAS

JUNG, Carl Gustav. Seminários sobre análise de sonhos. Petrópolis: Vozes, 2014.

segunda-feira, 21 de abril de 2014

Cinema ou instituição para tratar a psique coletiva


O teatro como "instituição para
tratamento público de complexos"
     Jung (1989, §48) chamou o teatro de “instituição para o tratamento público de complexos”. Ele explicou que o prazer que se sente com a comédia, com uma história dramática com final feliz ou com uma tragédia se deve à identificação de complexos pessoais com os da peça. Com relação à tragédia, tem-se a sensação terrível e benéfica de se presenciar a ocorrência com o outro daquilo que nos ameaça. Essa identificação também ocorre com outras produções como o cinema e a novela. Essa identificação pode chegar a tal ponto que fortes complexos podem ser trabalhados em psicoterapia, por meio de filmes especialmente indicados para tal. E já se criou até um nome para uma espécie de terapia que usa enfaticamente as produções cinematográficas: a “cinematerapia”.
     Um filme pode aludir a possíveis soluções de problemas psíquicos e pode também questionar preconceitos, pontos de vista e convicções fortemente arraigadas. Os filmes podem falar poeticamente à alma e ao inconsciente, sem que o cliente tenha noção inteiramente consciente do que está sendo tratado, abreviando a terapia, sobretudo devido à amplificação de temas já tratados ou ainda por se discutir nas sessões. Uma novela ou filme que toca um complexo pode ter um efeito particularmente intenso no espectador, de forma a produzir emoções nomeadas popularmente de “positivas” ou “negativas”, cujas ocorrências associadas podem ser analisadas em terapia.
"Star Wars" foi escrito com base em
conceitos como o "inconsciente coletivo"
     Ora, os filmes que afetam positiva ou negativamente uma pessoa, de forma mais ou menos intensa, como já exposto, o fazem porque representam aspectos que possuem fortes conexões com seus complexos, ensejando sua identificação com personagens e situações. Se um certo filme impressiona muitas pessoas, isso se deve ao fato de ele refletir os complexos dessas pessoas, desde pequenos grupos, até nações inteiras. Assim, complexos coletivos, pertencentes a vários países, podem ser ativados por determinados filmes, mobilizando as massas, como ocorreu com produções como “Guerra nas estrelas”, “O senhor dos anéis”, “Avatar”, “Titanic”, etc. A análise dos filmes de maior bilheteria, que devem seu sucesso principalmente ao seu roteiro e à elaboração dos personagens, pode fornecer um diagnóstico mais ou menos preciso dos complexos mais mobilizados no inconsciente coletivo à época de seu lançamento. A energia psíquica está atrelada a esses complexos, e esse diagnóstico pode explicitar facilmente o caminho que ela está tomando e, pelo menos teoricamente, pode tornar claro para qual meta está se desenvolvendo, assim como os obstáculos desse destino. 
     O homem possui hoje em dia meios para prever coletivamente seu comportamento, assim como recursos para tratamento em massa das pessoas. Esses expedientes podem ser usados com maestria para um verdadeiro salto evolutivo de consciência, o que vem sucedendo sofregamente, ao contrário do que ocorre com o desenvolvimento tecnológico. Infelizmente, percebe-se, por meio de diversas leituras, que a humanidade se encontra em um estágio evolutivo de consciência, no sentido de uma integração maior à totalidade psíquica, semelhante à que havia há mais ou menos 2000 anos. Apenas um “verniz tecnológico” parece encobrir o estágio precário do inconsciente coletivo, fornecendo a aparência altamente civilizada que parece iludir a todos. Infelizmente o homem parece estar se desfazendo cada vez mais da linguagem simbólica, que poderia aproximá-lo o suficiente dos instintos vitais para que retornasse aos rumos de um verdadeiro crescimento psicológico saudável. A maioria dos filmes parece indicar esses caminhos: basta atentar a eles.
A comoção por combates corpo a corpo é semelhante
 à que havia por duelos romanos há 2000 anos
Referências
JUNG, Carl Gustav. Símbolos da transformação. Petrópolis: Vozes, 1989. v. V.

Leia mais a respeito:
"Alice no inconsciente coletivo" - 1ª Parte - 2ª Parte