As quatro funções de orientação da consciência. |
Possuímos quatro funções para nos orientarmos no mundo: a sensação nos passa que existem objetos e pessoas ao nosso redor, assim como nos transfere as impressões internas dos sentidos (imagens, calor/frio, dor/prazer, etc.); o pensamento identifica esses objetos e pessoas para nós, assim como as citadas impressões internas, com o uso das ideias, do raciocínio; o sentimento possibilita avaliarmos esses elementos com relação ao grau de nosso desejo ou agrado; e a intuição nos fornece as variadas possibilidades desses elementos externos ou internos, assim como sua combinação para algum fim: no que resultarão, de onde vieram, etc. Ocorre que cada um de nós nos identificamos com uma dessas funções em grau maior ou menor, o que faz com que tenhamos pontos de vista diferentes sobre o mundo e nós mesmos, seja com base no interior ou exterior, assim como em uma dessas funções. Se nos identificamos com o pensamento, então vamos dar prioridade a nos relacionar com nós mesmos e com o mundo com base nas ideias, nas regras, no raciocínio e na lógica. Se o fazemos com a função sentimento, usaremos os sentimentos para isso, e assim por diante. Isso nos caracteriza como tipos psicológicos: seremos do tipo pensamento se tendemos a usar principalmente essa função, no mesmo raciocínio da última frase.
No começo da civilização, o homem conseguiu desenvolver pela primeira vez uma função, tornando-a consciente, trazendo-a do inconsciente coletivo para utilizá-la para seus propósitos. O momento em que ele pôde dizer que tinha um objetivo ou vontade de fazer mais e mais marcou o surgimento da separação dessa função do inconsciente. O mesmo ocorre com o indivíduo, em uma escala menor, desde o seu nascimento até a adolescência ou a vida adulta. Ele separa uma função específica como principal para lidar com os fatores externos e internos de sua vida. Entretanto, se o sujeito desenvolve apenas uma função, fica ciente de que pode fazer algo, mas estará sempre em uma condição psicológica muito desfavorável, pois ainda existem três outras funções no inconsciente - uma condição esmagadora.
Se adquire uma segunda função, torna-se mais completo, ganha mais equilíbrio e adquire uma espécie de consciência filosófica. Pode conseguir se conscientizar de que é um ser psicológico. Poderá dizer: "quero fazer isso OU aquilo"; ou então: "vejo o quão tolo isto é", se referindo a si mesmo. Com uma só função isso é impossível. A aquisição de duas funções funciona como um espelho, com o qual reflete os assuntos a que dá atenção. A mão esquerda pode julgar a direita, e então ele ganha um ponto de vista superior. A terceira função traz um segundo espelho. Ele diz: "Vejo esse cara aqui que vê aquele fulano, do qual percebo as ideias e que chega a uma conclusão errada". Com a quarta função haveria uma carga tremenda de consciência que possibilitaria o acompanhamento dos bastidores de si mesmo. É provável que haja um limite para se alcançar isso, mas pelo menos teoricamente existe essa possibilidade.
Um indivíduo que desenvolvesse as quatro funções seria fabulosamente superior às condições em que se situa, possuindo uma liberdade quase ilimitada, comparável à liberdade divina, já que Deus é a primeira e a última condição. À medida em que as funções são assimiladas, o que projetávamos de nosso inconsciente para o mundo é recolhido para dentro de nós mesmos, pois reconhecemos essas partes antes separadas de nós. Isso nos retira do homem inferior, fazendo-nos adquirir uma espécie de divindade. Quanto mais espelhos adquire, mais divino se torna, assim como mais inflado também, idêntico ao próximo espelho. Mais longe fica de sua sombra, de tudo o que é baixo e fraco, talvez sujo, que se encontra ainda banhado nas águas originais, coberto pelo lodo primitivo. Vamos para mais e mais longe de tudo isso com a aquisição progressiva de conhecimento. Então um fato peculiar acontece.
Quanto mais nós nos afastamos de nossas raízes, mais nos identificamos com os espelhos, mais ineficientes nos tornamos, porque o espelho não tem pés, não tem mãos. Ele é completa consciência, talvez, ainda sem efeito, exceto o efeito que nós podemos dar a ele. O que está dentro significa extremamente pouco. Eu posso dizer a uma pessoa que coisas são isso e aquilo, mas ela simplesmente não pode transformar em realidade, porque o discernimento conta pouco a não ser que lhe sejam dados mãos e pés. Quanto mais longe vamos, menos eficientes somos. (JUNG, 2014, p. 573)
Essa condição de se viver cada vez mais no espelhamento provoca a nossa retirada da substância, o que quer que isso possa significar. Essa tremenda consciência nos mantém fora da existência, e não se saberia dizer se estamos vivos ou mortos. Porém, quando olhamos algo no espelho, percebemos que não o possuímos, pois podemos apenas pegar sua imagem, já que somos removidos delas. A realidade parece ser um tipo de ilusão. Existe aqui uma forte semelhança com o Nirvana oriental.
Talvez essa seja uma das bases da física quântica, pois com o desenvolvimento do pensamento, após a Revolução Francesa, a matéria tende a se tornar espírito. Pensamento é matéria e matéria é pensamento - não existe mais diferença. Todo o conceito de matéria está se dissolvendo em abstrações.
Penso que, ao nível de civilização, ainda estamos longe de atingirmos o desenvolvimento psicológico esboçado aqui por Jung (2014). Entretanto, no estágio atual conseguimos alcançar como que uma espécie de simulação desse tipo de consciência ampliada por meio dos recursos de disponibilidade de informação e de tecnologia. Podemos nos "espelhar" em vários pontos do planeta, sem estarmos realmente lá, assim como muitas outras pessoas se espelham em nossos lares, no conforto dos nossos assentos. Podemos executar atos que antes demandavam muita energia, como pagamento de contas e compras, com um simples clique do mouse. Os lugares, pessoas, períodos de tempo e as coisas agora se espelham na tela à nossa frente, e esses reflexos influenciam a substância lá fora, ao contrário do efeito da assimilação das funções aludido acima. Estamos com o mesmo nível de consciência de nossos avós, mas com a vantagem de podermos estendê-la no espaço e no tempo, com uma carga de informação muito maior. Isso não parece ser bom nem mau, mas capaz de realizar uma homogeneidade de nível de conhecimento, de maneira a generalizá-lo, tornando-o disponível. As coisas e as pessoas estão se abstraindo no virtual e se dissolvendo nele sem que alcancemos uma consciência maior. Isso poderia ser mais desastroso não fosse a generalização do conhecimento. Espero que assim seja.
(Leia mais a respeito: "A fascinação pela tecnologia", "Do instinto ao querer, do desejo à vontade", "A verdadeira atitude científica", "Amizade - instrumento do autoconhecimento")
REFERÊNCIAS
JUNG, Carl G. Seminários sobre análise de sonhos. Petrópolis: Vozes, 2014. p. 567-577.
______. Tipos psicológicos. Petrópolis: Vozes, 1991.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Se quiser comentar, discutir ou colocar sua dúvida, faça-o aqui.