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sexta-feira, 13 de outubro de 2017

Atenção plena (mindfullness), o eu e o inconsciente

     Já há algum tempo passei a praticar o que se popularizou como mindfullness, ou atenção plena, em português. Essa espécie de meditação é milenar, mas só recentemente foi muito mais divulgada, apesar de ser conhecida em nosso meio, em certos círculos, desde o tempo de divulgação do budismo e da yoga no Ocidente. Sidarta Gautama, o Buda, a divulgou como maneira de se alcançar o Nirvana, a iluminação. Esta é a disposição em que se consegue o livramento dos opostos psíquicos, das qualidades antagônicas que leva o homem cair nos extremos, a nunca se equilibrar, a libertação do desejo. No estado de atenção plena o indivíduo consegue trilhar o "caminho do meio".
     Segundo Williams e Penman (2015), a atenção plena é tão eficaz quanto os antidepressivos no combate à depressão, sem o prejuízo dos efeitos colaterais destes. Também reduz em 50% a probabilidade da recaída das depressões mais severas. Por que essa meditação tem efeito tão poderoso sobre a psique?
     Como estudioso da psique a partir da psicologia junguiana, formei algumas hipóteses interessantes que conectam a psicologia oriental à ocidental. Entendo que aqueles que praticam a atenção plena (mindfullness) adquirem a capacidade de ficar atentos a tudo o que, potencialmente, faria parte do inconsciente pessoal. Logo, ao invés de sonhar com fatores reprimidos ou que não receberam atenção devida, como ocorre normalmente, o meditante considera atentamente os conteúdos que teria rejeitado ou desprezado. Isso teria o efeito de não alimentar o inconsciente pessoal. Na psicologia analítica aprende-se que o complexo é formado de uma "casca" pessoal, formada a partir das vivências individuais de temas arquetípicos, e de um núcleo impessoal, que constitui esse tema arquetípico já citado. De modo geral, pode-se afirmar, assim, que o inconsciente pessoal (Ics P), da mesma maneira que ocorre com seus constituintes (os complexos), forma uma "camada" pessoal, subjetiva, sobre o inconsciente coletivo (Ics C) ou impessoal. À medida que a psicoterapia avança e o Ics P é tratado, ele se torna energeticamente mínimo ou fraco, deixando "descoberto" o Ics C. Por isso os pacientes começam a sonhar com conteúdos arquetípicos, característicos do Ics C. Assim, o Oriente e sua prática de atenção plena tende a não formar um Ics P muito robusto, deixando praticamente "descoberto" o Ics C. Daí suas produções serem quase 100% expressões do Ics C.
     O que o Oriente percebe como "morte do ego", no processo de crescimento espiritual, a Psicologia Analítica pode entender como extinção do complexo do ego. Para uma discussão mais pormenorizada desse assunto, remeto o leitor ao texto "A origem e a natureza do Eu". Nele, proponho que a formação do complexo do ego serve à formação do foco de atenção consciente, outro aspecto do ego que advém diretamente do Si-mesmo. Na medida em que o complexo do ego serviu de "fôrma", de molde, para que a atenção consciente se focasse, ele se torna apenas relativamente necessário, pois acaba se constituindo um bloqueio à desidentificação com os conteúdos pessoais (individuação e atenção plena), que poderia levar à formação da função transcendente ou a um reforço do eixo ego–Si-mesmo. Talvez apenas uma delimitação mínima (complexo) fosse necessária para a continuidade da demarcação do foco de atenção egoica. Nesse ponto haveria ocorrido aquela espécie de morte do ego que o Oriente prega.
     Uma pista de que o ego possa se "destacar" de seu complexo, é o fenômeno de identificação com outro complexo, fenômeno bastante conhecido nos consultórios de psicologia. Quando se identifica com outro complexo ou até com um arquétipo, o ego parece exprimir uma outra personalidade por meio de comportamento inabitual e característico. Como isso se torna possível sem que o ego se tenha separado de seu complexo origem?
Conjunção de Kama (deus do amor hindu) e 
Rati (deusa dos prazeres eróticos).
     Um sinal característico de como o Oriente culturalmente trata seu Ics P milenarmente, muito antes do Ocidente, é o fato de considerar os temas sexuais tão sagrados quanto os demais, a ponto de serem retratadas divindades em pleno coito sexual. Sabiamente, aquele povo entende que a força dos instintos em geral, e do sexual em particular, é personificada pelos diversos deuses e demônios de seu panteão. Que o "mal" constitui mais uma aplicação "tortuosa" de forças humanas, animais e/ou espirituais, e uma identificação com estas, e não o "mal" em si mesmas.
     Por volta de 25 anos atrás eu fazia psicoterapia com análise de sonhos, praticava imaginação ativa e também mindfullness. Certo dia tive que ir à banca de revistas da rodoviária da cidade. Sentei-me num banco e passei à prática da atenção plena. Basicamente, esta consiste em prestar atenção a tudo o que ocorre interior e exteriormente. Subjetivamente, procura-se observar o fluxo de pensamentos, sentimentos, lembranças, etc., sem que nossa vontade interfira nesse tráfego de conteúdos psíquicos. Acontece que isso é muito difícil de se conseguir: observar sem interferir, focar a atenção sem usar da vontade para deter o fluxo. Geralmente foca-se o processo da respiração e, quando um pensamento, imagem, sensação ou sentimento perturba essa concentração, a primeira providência é lembrar-se de que se foi conduzido automaticamente até esse conteúdo, então se reconhece e se identifica esses elementos durante algum tempo, e volta-se à respiração. Exercita-se esse processo durante todo o tempo da meditação. Entretanto, essa prática não é restrita a uma certa posição, momento, postura ou lugar. Pode-se exercê-la em diferentes contextos: no trabalho, em viagem, na escola, etc., de olhos abertos ou fechados. De repente, observei, num clarão de insight, minha intenção de meditar, assim como o esforço que fazia para alcançar esse intento. Percebi que não era necessário esforço algum. Então ocorreu um estado alterado de consciência. Senti uma felicidade e uma exaltação libertadora. Passei a caminhar. Enquanto andava pela rua, percebia como se eu não estivesse caminhando, mas a rua passasse sob os meus pés, sem que eu andasse. Durante toda a semana que se seguiu, essa sensação de libertação perdurou. Lembro-me ainda hoje de estar observando alguém dar alguns avisos a um grupo e achar graça da seriedade e solenidade do momento. Não conseguia mesmo me conter de vontade de rir. Só depois de alguns dias a antiga condição de consciência voltou.
Baseada em Von Franz (1990, p. 91),
confeccionada por Charles A. Resende
     Penso que esse estado alterado de consciência ocorreu facilitado também pela psicoterapia, que naturalmente induz a uma condição de atenção à subjetividade e análise interior. Mas, de alguma forma, também foi facilitado pela prática da imaginação ativa. Como descrevo no texto do link, na imaginação ativa acontece um fluxo conjunto da consciência e do inconsciente. * Von Franz (1990, p. 103) afirma que, à medida em que as três primeiras funções psíquicas (a superior e as duas auxiliares) são assimiladas, durante o processo de individuação, forma-se uma tensão entre a consciência e o inconsciente. A quarta função (inferior) não pode ascender à consciência, pois se encontra intrinsecamente associada ao inconsciente. Por isso, a consciência se rebaixa e o inconsciente ascende, ambos até certo nível médio, criando uma região intermediária, a função transcendente. Transcendente porque o sujeito funciona além do modo comum de consciência. Ele está aberto ao inconsciente, sem se identificar com este. Nessa condição, não há identificação com o nível "superior" da consciência, nem com o "inferior", do inconsciente. O indivíduo, vive em imaginação ativa, um estado de consciência em estreito contato com o Si-mesmo, atento ao mundo exterior, interior e às sincronicidades que ocorrem devido a essa conexão psicofísica. A similaridade da imaginação ativa com a meditação da atenção plena é flagrante. Ambas consistem em criar um ponto médio onde a Cs se faz presente sem interferir nos conteúdos do Ics, embora acolhendo-os, levando-os em consideração.
     Penso ser esta a chave para se compreender a psicologia do budismo, da yoga e várias outras práticas orientais, assim como do sufismo, sem negar seus aspectos mais importantes, mas unindo-os num todo coerente, fazendo justiça tanto ao Ocidente quanto ao Oriente. A verdade, como ensinou Jung, consiste em conjugar diferentes pontos de vista para se obter uma visão mais completa possível do objeto, seja ele qual for. Assim, as perspectivas inclusivas, que explicam até mesmo as contradições mais resistentes, principalmente na ciência, formam modelos teóricos que tendem a prevalecer. Questionamentos e apontamentos são bem-vindos.

OBSERVAÇÃO: para maior conhecimento das 4 funções, expostas aqui, vide os textos referenciados a seguir.




REFERÊNCIAS


VON FRANZ, Marie Louise. HILLMAN, James. A tipologia de Jung. São Paulo: Cultrix, 1990.
WILLIAMS, Mark. PENMAN, Danny. Atenção plena - Mindfullness: como encontrar a paz em um mundo frenético (inclui CD de meditação). Rio de Janeiro: Sextante, 2015.

sexta-feira, 21 de abril de 2017

Resignificando o jogo Baleia Azul


     A título de introdução, remeto o leitor ao texto "A importância do rito de passagem na adolescência". Nele há o entendimento de que a adolescência é um período de vida em que ocorre um processo de transformação da criança em adulto. Por esse motivo, a duração da adolescência é muito móvel, a faixa de idade varia conforme a cultura e depende da época histórica do país também. Esse processo, em suma, envolve a morte psíquica da criança e seu renascimento, semelhante ao simbolismo do batismo religioso, uma vez que este abarca o mesmo motivo. 
     É isso que os ritos de passagem encenam, dramatizam: a morte do ego infantil, com o qual há o fechamento dos tempos de garoto, o seu sepultamento, para que o homem nasça justamente desse "túmulo". E essa morte é simbolizada nas iniciações, envolvendo, por exemplo, a colocação do corpo do jovem em um caixão em local escuro por um período, e o seu velório. Por vezes, os próprios sonhos podem induzir uma morte simbólica: vide o sonho repetido do adolescente, no qual ele era sempre velado pela família, no texto citado acima. Tudo indica que o sonho insistia em que ele fizesse a passagem, o processo de transformação, que não envolvia a morte literal, mas simbólica. Essa é a chave para o entendimento da indução ao suicídio no jogo Baleia Azul. Existem muitas indicações de que os 50 desafios do jogo promovem a morte literal do ego e do indivíduo, por meio da identificação deste com a figura da tal baleia. Por isso ele é macabro e letal. Mas não precisava ser assim...
     Tratemos o jogo um símbolo, uma cena de sonho. No jogo existe a figura do "curador". O dicionário dá algumas definições de curador, mas as que são mais próximas do nosso objetivo são: 1. pessoa com incumbência legal de zelar pelos bens e interesses daqueles que não o possam fazer (função de curadoria); 2. Feiticeiro/rezador que, supostamente, cura as mordidas de serpentes venenosas, ou que as torna respeitadas por estes (AURÉLIO, 2009). Nesta segunda definição poderíamos acrescentar simplesmente aquelas pessoas que, supostamente, curam doenças das pessoas com sua arte espiritual. Lembro-me que uma dessas benzedeiras, Dona Aurora, minha vizinha, certa vez curou várias verrugas que eu tinha na ponta dos meus dedos de ambas as mãos quando era adolescente. Após a "benzição" com galhos de arruda, monitorei cuidadosamente o acontecimento. Ao final do primeiro dia parecia que elas estavam diminuindo de tamanho; qual não foi minha surpresa ao ver meus dedos totalmente limpos no segundo dia! Hipnose? Se for, mesmo hoje, com todos os cursos de especializações que existem, deve ser muito raro achar um que tenha essa competência... De todo modo, tudo indica que esse curador do jogo queira remediar algum inconveniente desses jogadores adolescentes. Não faria ele o papel de iniciador à morte física nesse macabro rito de passagem? No entanto, não poderia ele fazer simplesmente um papel mais psicológico, levando nossos jovens a "morrerem" psiquicamente, enquanto crianças? Esta é a proposta deste texto: resignificar o jogo e chamar a atenção para a grande necessidade de ritos que subjaz no comportamento dos nossos jovens.
     Assim, toda a série de mutilações e cortes no corpo possuem um sentido iniciático. De acordo com Stephenson (2009, p. 57), muitos ritos de passagem, nas culturas antigas, envolviam o derramamento de sangue de alguma maneira. E havia uma dupla razão para isso: os garotos precisavam se acostumar a ver sangue, pois ser homem implicava correr riscos, ser resistente e corajoso, mesmo quando ferido; derramar sangue lembrava o ciclo menstrual da mulher, ligado à conclusão do parto (nascimento). Hoje essas práticas parecem cruéis e arcaicas, mas cumpriam seu objetivo de fazer uma transição relativamente rápida da criança em adulto, e podemos aprender muito do sucesso de sua dinâmica.
     Para Brandão (1990, p. 337), para se penetrar no símbolo da mutilação
é bom relembrar que a ordem da "cidade" é par: o homem se põe de pé, apoiando-se em suas duas pernas, trabalha com seus dois braços, olha a realidade com seus dois olhos. Ao contrário da ordem humana ou diurna, que é par, a ordem oculta, noturna, transcendental é UM, é ímpar. O disforme e o mutilado têm em comum o fato de estarem à margem da sociedade humana ou diurna, uma vez que neles a paridade foi prejudicada. Numero deus impari gaudet, o número ímpar agrada ao deus, diz o provérbio, mas an odd number significa também em inglês um "tipo estranho, um tipo incomum", e a expressão francesa il a commis un impair significa que alguém "cometeu uma inconveniência", "fez asneira", transgredindo, por leve que seja, a ordem humana. O criminoso "comete uma terrível inconveniência", transgredindo gravemente a ordem social; o herói se "singulariza perigosamente". Ambos realçam o sagrado e só se distinguem pela orientação vetorial do herói: sagrado-esquerdo e sagrado-direito. O vidente, como Tirésias, é cego; o gênio da eloquência é gago... a mutilação tem pois dois lados, revestindo-se também da complexio oppositorum, possuindo, assim, valor iniciático e contra-iniciático.
     Dizer ou escrever "Eu sou uma baleia" é afirmar a identidade com esse animal. Estar em comunhão ou se identificar com algo ou alguém pode envolver comer algo relacionado a isso, como ocorre no rito cristão da comunhão. Assim, ser uma baleia indica ser devorado por ela. Jacobi (1991, p. 135) diz que ser comido ou devorado é um motivo arquetípico amplamente propagado em várias lendas, contos e mitos. O exemplo mais conhecido é o de Jonas engolido pela baleia. A baleia é parente do dragão, simboliza com frequência a água, o mar que devora o sol e o devolve de novo à vida. A bruxa, o lobo e o ogro devorador possuem sentido similar. No simbolismo da alquimia encontra-se o leão que come o sol e o cabrito que entra no ventre de sua irmã Beia. Ser engolido é descer aos infernos, reafundar no ventre da mãe, extinguir a consciência, matar o eu que se afoga no inconsciente, na goela voraz da morte. "A viagem para o Hades, a Nekyia, o engolimento pela besta do caos, embora sejam as penúrias do inferno e da morte, são, no entanto, a condição prévia para a salvação e o renascimento." E no jogo da Baleia Azul os desafios de subir em um telhado alto, sentar-se na borda de uma ponte, ir a uma estrada de ferro, assistir a filmes de terror têm estreita relação com preparar-se para ir ao encontro da morte, do monstro, do dragão (o trem), da terra, da água, todos símbolos femininos, do útero do qual todos surgiram.
     O jogo da Baleia Azul não passa de um equívoco que literaliza uma necessidade simbólica de morrer. Na verdade, ele se torna tão polêmico e perigoso porque hoje em dia não fazemos mais a leitura simbólica, não observamos mais a realidade e o humano como são. Estamos muito ocupados e desligados do presente e de nosso interior, nossos instintos, emoções e sentimentos. Quanto mais das pessoas que nos são próximas... Ele está aí para dizer que precisamos morrer, nos transformar, mudar. "O paradoxo curioso é que quando eu me aceito como eu sou, então eu mudo." - Carl Rogers.


AGRADECIMENTOS

A Hugo Guimarães pelo texto ENTRE O VENTRE E O TÚMULO – UM OLHAR ARQUETÍPICO SOBRE A BALEIA AZUL, de onde tirei o link para os 50 desafios do jogo Baleia Azul.

REFERÊNCIAS

BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 1990. v. 1.

Novo Dicionário Aurélio versão 6.0 - Dicionário Eletrônico - Conforme a Nova Ortografia [CD-ROM], Positivo Informática, 2009.

STEPHENSON, Bret. From boys to men: spiritual rites of passage in an indulgent age. Rochester: Park Street, 2004.

domingo, 1 de maio de 2016

A crise e o espírito do tempo no Brasil de hoje

A seca que abateu o Brasil em 2015 pode ser interpretada psicologicamente como uma
grande cisão da psique coletiva brasileira; a tensão estava no ar, até que, com as chuvas,
os processos políticos e de justiça fluíram novamente.
     A crise brasileira atual não é somente econômica e política, também inclui a saúde (vide os surtos das doenças do aedes aegypti e da gripe H1N1), e durante todo o ano passado (e não sei se este ano ainda estamos muito estáveis) foi também energética e hídrica. Também é uma crise moral, se pensarmos na corrupção como endêmica à população brasileira. São tantos aspectos negativos nesta fase atual, comparados a fases muito boas anteriores, como às do governo FHC e Lula, que podemos questionar o que haveria por trás de todos esses acontecimentos. Talvez uma breve análise e síntese de ideias possa dar um sentido geral a esses infortúnios.
     Já notei há muito tempo, na minha vida pessoal, o quanto os fatos de certo período da nossa vida parecem permeados por uma certa qualidade geral, um tema que atravessa todos os episódios em um determinado tempo. Em uma fase de um ano e meio, por exemplo, a vida de um amigo foi traspassada pelo tema "mudança", de maneira tanto prazerosa quanto dolorosa: nascimento de um filho, promoção no trabalho, mudança por duas vezes de domicílio e a morte de vários parentes seus e de sua esposa (vide o texto "Morte, sonho e sincronicidade"). Por esses dias recebi a notificação de multa de uma infração cometida há mais de três anos (como se sabe, as infrações não notificadas até trinta dias são arquivadas); no mesmo dia respondi a alguém que cobrava, no trabalho, a atualização de um sistema até certa data; dois dias depois chegou outra cobrança, tema dos eventos como um todo. Coincidências? Não acredito.
     É como se nossa vida fosse permeada por uma espécie de "campo de sentido" ou simbólico que possui uma característica específica em certo período de tempo. Jung aludiu a esse fenômeno como se o tempo possuísse uma qualidade em momentos definidos. Daí ocorrer a possibilidade de os oráculos funcionarem se nossas perguntas a eles estiverem baseadas em nossas preocupações e emoções, já que estas e o "campo simbólico" parecem estar estreitamente relacionados. A antiga filosofia chinesa chamava a esse campo de Tao.
     "O Sentido [Tao] se obscurece, quando fixamos o olhar apenas em pequenos segmentos da existência", cita Jung (1991, §913) de uma obra chinesa. "Para nós, os detalhes são importantes em si mesmos; para a mente oriental, os detalhes juntos é que formam sempre o quadro global", continua. Portanto, essa percepção da "qualidade" do momento advém da atenção ao todo, de forma geral, e não aos detalhes. É uma compreensão intuitiva da realidade.
A atenção ao tempo de médio e longo
prazo tornou possível sua divisão em
estações e anos, por exemplo. 
    Esses "campos simbólicos", em nossa vida pessoal, tendem a tornar a ocorrer, aparentemente, até que integremos o seu conteúdo em nossas vidas. No âmbito nacional, o sentido dessa crise também tende a acontecer com a incorporação, à consciência coletiva, do que se encontra inconsciente e que está extraindo muitos recursos de nossa consciência social. A corrupção é uma espécie de "complexo" que precisa ser analisado coletivamente, o que já está ocorrendo, para que possamos, de uma vez por todas, percebê-lo, trazendo os recursos de volta às nossas mãos. É preciso que cada brasileiro conheça seu potencial para a corrupção, suas faltas cotidianas, e saiba dizer "não" às tentações, em benefício da coletividade, sabendo do prejuízo que essas perversões trazem a todos. 
     Essa perspectiva é abrangente e não foca a responsabilidade dos sujeitos, não lança luz sobre as responsabilidades individuais, mas permite um alcance do sentido maior desse caos que tomou conta do Brasil. Somos todos instrumentos dessa trama e drama que se impõe. A par desse sentido, podemos ter esperança de que futuramente alcançaremos um cume mais alto do que os escalados até agora. A vida é uma tensão entre polaridades opostas, entre ciclos de alegrias e tristezas, prosperidades e penúrias, passividade e atividade. Esse jogo tensional é tanto mais instável quanto mais frágil o suporte dos elementos integrantes.
     Infelizmente, esse complexo nacional inconsciente não pode, de uma só vez, ser integrado como um todo, já que isso é muito difícil. Provavelmente, apenas certos aspectos estão enfatizados neste momento, e outros o serão no futuro, em outro ciclo. Mas, com certeza, há um grande potencial por trás que poderá ser de proveito a todos. Entretanto, é preciso que as defesas contra a conscientização desse complexo - a estrutura legislativa que permite o aproveitamento dessa desmoralização - sejam também analisadas e desfeitas. E o que está sendo realizado para isso? Antes, é preciso que cada político se conheça um pouco mais, assim como nós mesmos, pois é o indivíduo que compõe o povo brasileiro.
Na superfície, uma estrutura aparentemente sólida; na realidade, ela é sustentada
 sobre o dorso de um grande complexo inconsciente, que pode naufragar toda a nação, se não integrado.

segunda-feira, 6 de abril de 2015

A fascinação pela tecnologia

O que leva o homem a se fascinar pela tecnologia? Por que ele se permite viciar por aparelhos como o smartphone ou players de jogos? O que há por trás desses produtos tecnológicos? São perguntas que compelem à reflexão, tendo em vista que qualquer um de nós pode ser assaltado lenta e silenciosamente por uma compulsão viciante sem se aperceber do fato.
Hórus, Osíris e Ísis, deuses egípcios.
Jung (2014, p. 510) diz que aqueles que adoram ídolos sabem que estes foram feitos pelo homem. No entanto, ainda assim são escolhidos como morada de Deus ou tornados sagrados, vasos da santidade. O mesmo ocorreria na construção de um aparelho, de uma máquina, pois ao fazê-lo se está conferindo um poder criativo e divino a ela. Pode parecer uma atividade mecânica, mas ela pode nos invadir de forma invisível. Agora, que poder divino é esse?
Os aparelhos e máquinas são instrumentos que nos possibilitam alcançar o inalcançável, estender nossos membros ao que antes era não atingível. Podemos fazer coisas que não faríamos só com nosso corpo. Por isso os aparelhos nos fascinam. O que antes era prerrogativa dos deuses, agora é nossa possibilidade. A tecnologia nos tornou deuses. Nos deu poderes que antes não tínhamos. Antes só deuses e pássaros podiam voar. Apenas os deuses deixavam a terra para habitar os confins dos céus. As invenções permitem que nós cheguemos aonde nenhum homem jamais foi. Nos permite atingir o infinitamente pequeno, assim como abarcar o imensamente grande, por enquanto apenas conseguindo dados… Só Deus sabe o que poderemos conseguir depois... Esse poder criativo confere poderes realmente celestiais às máquinas, sem os quais o homem ainda estaria confinado às cavernas, sua morada original. O centro da existência agora é o homem. Os deuses estão deixando de habitar ídolos para se encarnar nas invenções.
O homem não quer saber se está desvalorizando as próprias relações humanas. Permanece horas e horas contemplando e manipulando uma pequena “tabuinha” de metal e plástico, com a qual pode acessar outros humanos em qualquer outro lugar da Terra. O conhecimento se tornou disponível com um pequeno gesto. Um pequeno movimento pode comandar aparelhos, embora já haja estudos para possibilitar serem estes comandados por nossos próprios pensamentos. O sobrenatural está dando lugar à tecnologia, e esta a várias novas doenças psíquicas, como o vício em jogos, em smartphones, à Internet, por exemplo, sem falar nas psicossomaticas, ou nas doenças derivadas diretamente da debilitação do sistema imunológico.
No momento em que escrevo este texto, ele pode, a qualquer hora, ficar disponível para milhões de pessoas que quiserem ou puderem acessá-lo, bastando que digitem algumas palavras em um buscador. Compras podem ser feitas em outros países sem que saiamos do lugar. O banco pode ser acessado até mesmo à noite, fora do expediente, tornando possível que transfiramos valores ao outro lado do mundo! Podemos transmitir nossa imagem e voz instantaneamente ao outro, o que era obra de ficção científica há algum tempo.
Estamos nos tornando cada vez mais nossos próprios deuses, transferindo o sagrado para a tecnologia. Mas… a serviço de que? Qual a finalidade disso? O que fazemos com isso? São questões que não podemos deixar de tentar responder, pois corremos o risco de oprimir o outro, como já ocorreu por tantas vezes na humanidade. Tragédias ocorreram por conta desse poder criativo do homem, pela não atenção aos valores sentimentais. Não conseguimos pensar em mais nada a não ser no que nos compele a fazer, fazer e fazer, sem animação, sem senso crítico. Não usemos nossos sentimentos e nos tornaremos máquinas. 






REFERÊNCIAS

JUNG, Carl Gustav. Seminários sobre análise de sonhos. Petrópolis: Vozes, 2014.

segunda-feira, 21 de abril de 2014

Cinema ou instituição para tratar a psique coletiva


O teatro como "instituição para
tratamento público de complexos"
     Jung (1989, §48) chamou o teatro de “instituição para o tratamento público de complexos”. Ele explicou que o prazer que se sente com a comédia, com uma história dramática com final feliz ou com uma tragédia se deve à identificação de complexos pessoais com os da peça. Com relação à tragédia, tem-se a sensação terrível e benéfica de se presenciar a ocorrência com o outro daquilo que nos ameaça. Essa identificação também ocorre com outras produções como o cinema e a novela. Essa identificação pode chegar a tal ponto que fortes complexos podem ser trabalhados em psicoterapia, por meio de filmes especialmente indicados para tal. E já se criou até um nome para uma espécie de terapia que usa enfaticamente as produções cinematográficas: a “cinematerapia”.
     Um filme pode aludir a possíveis soluções de problemas psíquicos e pode também questionar preconceitos, pontos de vista e convicções fortemente arraigadas. Os filmes podem falar poeticamente à alma e ao inconsciente, sem que o cliente tenha noção inteiramente consciente do que está sendo tratado, abreviando a terapia, sobretudo devido à amplificação de temas já tratados ou ainda por se discutir nas sessões. Uma novela ou filme que toca um complexo pode ter um efeito particularmente intenso no espectador, de forma a produzir emoções nomeadas popularmente de “positivas” ou “negativas”, cujas ocorrências associadas podem ser analisadas em terapia.
"Star Wars" foi escrito com base em
conceitos como o "inconsciente coletivo"
     Ora, os filmes que afetam positiva ou negativamente uma pessoa, de forma mais ou menos intensa, como já exposto, o fazem porque representam aspectos que possuem fortes conexões com seus complexos, ensejando sua identificação com personagens e situações. Se um certo filme impressiona muitas pessoas, isso se deve ao fato de ele refletir os complexos dessas pessoas, desde pequenos grupos, até nações inteiras. Assim, complexos coletivos, pertencentes a vários países, podem ser ativados por determinados filmes, mobilizando as massas, como ocorreu com produções como “Guerra nas estrelas”, “O senhor dos anéis”, “Avatar”, “Titanic”, etc. A análise dos filmes de maior bilheteria, que devem seu sucesso principalmente ao seu roteiro e à elaboração dos personagens, pode fornecer um diagnóstico mais ou menos preciso dos complexos mais mobilizados no inconsciente coletivo à época de seu lançamento. A energia psíquica está atrelada a esses complexos, e esse diagnóstico pode explicitar facilmente o caminho que ela está tomando e, pelo menos teoricamente, pode tornar claro para qual meta está se desenvolvendo, assim como os obstáculos desse destino. 
     O homem possui hoje em dia meios para prever coletivamente seu comportamento, assim como recursos para tratamento em massa das pessoas. Esses expedientes podem ser usados com maestria para um verdadeiro salto evolutivo de consciência, o que vem sucedendo sofregamente, ao contrário do que ocorre com o desenvolvimento tecnológico. Infelizmente, percebe-se, por meio de diversas leituras, que a humanidade se encontra em um estágio evolutivo de consciência, no sentido de uma integração maior à totalidade psíquica, semelhante à que havia há mais ou menos 2000 anos. Apenas um “verniz tecnológico” parece encobrir o estágio precário do inconsciente coletivo, fornecendo a aparência altamente civilizada que parece iludir a todos. Infelizmente o homem parece estar se desfazendo cada vez mais da linguagem simbólica, que poderia aproximá-lo o suficiente dos instintos vitais para que retornasse aos rumos de um verdadeiro crescimento psicológico saudável. A maioria dos filmes parece indicar esses caminhos: basta atentar a eles.
A comoção por combates corpo a corpo é semelhante
 à que havia por duelos romanos há 2000 anos
Referências
JUNG, Carl Gustav. Símbolos da transformação. Petrópolis: Vozes, 1989. v. V.

Leia mais a respeito:
"Alice no inconsciente coletivo" - 1ª Parte - 2ª Parte

sábado, 15 de março de 2014

A origem do Eu

     A estrutura psíquica pode ser comparada a um grande conjunto de esferas de diferentes tamanhos. Estas esferas seriam o agrupamento de pensamentos, lembranças, imagens e diversas outras impressões atraídas mutuamente e para seu núcleo pelo grau de força das emoções correspondentes. Todas essas esferas se encontram em um meio escuro e indefinido, e o constituem ao mesmo tempo, de modo a deixar suas superfícies vagas e indefinidas. Esse estado das esferas chama-se “inconsciente”.  O núcleo dessas esferas atrai seus elementos de acordo com o seu tema específico: a mãe, o pai, a criança, o herói, etc. Entretanto, todas as esferas, por sua vez, seriam atraídas para um núcleo maior e formariam uma esfera maior em seu conjunto. O tema desse centro abrange todos os outros temas, pois todos eles formam uma referência, enquanto centros menores, ao centro do conjunto de esferas, que tem maior poder de atração e regulação de toda a estrutura psíquica. Esse centro magno virtual constitui o maior e mais abrangente arquétipo (como são designados todos os centros esféricos). Como centro magno, esse arquétipo abarca também a superfície total, pois acaba sendo autorreferente. O entorno das esferas forma um entrelaçado de fatores chamado complexo. 
     Na estrutura psíquica global, chamada simplesmente de psique, pode-se diferenciar a maior ou menor proximidade de todos os complexos em relação ao Si-mesmo. A superfície da grande esfera psíquica constitui o limite em relação ao mundo exterior e, devido a isso, acaba desenvolvendo uma certa consistência, ou tensão superficial, à medida em que a criança se desenvolve, que consiste na troca de impressões, na adaptação e na proteção do sistema psíquico em relação ao meio externo. Essa estrutura chama-se persona
     Ocorre que certos temas fazem referência à identidade e a características pessoais do sistema psíquico, e são atraídos principalmente pela força de gravidade do corpo físico individual. Pode-se dizer que esses conteúdos são como pequenas esferas que, como bolhas de sabão, com o tempo se juntam e formam uma bola maior, que mais tarde será chamada de “Eu”. Pode-se afirmar que, quanto mais próximas à esfera egoica, mais definidas se tornam as outras esferas, que se tornam suscetíveis de serem conhecidas pelo Eu e, a partir disso, serem também manipuladas por ele, se transformando e se redefinindo. 
     À medida que o bebê interage com o meio circundante, ele vai memorizando as diversas imagens obtidas do mundo exterior. Apesar do nome “imagem” se referir às impressões obtidas a partir dos olhos, aqui o termo é usado de forma mais ampla, e engloba todas as impressões de todos os sentidos sobre certo objeto. Muitas dessas imagens são percebidas de novo e de novo, formando uma rotina de impressões. Muitas necessidades do bebê começam então a se vincular a essas imagens internalizadas que se referem às respectivas pessoas e objetos do mundo exterior. Internamente, aos poucos, elas vão se agrupando ao redor dos diversos temas, ou arquétipos, formando complexos, que serão maiores ou menores, ganhando mais ou menos energia, na medida em que vinculam emoções fracas ou intensas, impressões mais ou menos veementes.
     Existe um complexo, em particular, que é formado a partir das impressões relativas ao próprio indivíduo que percebe. Ele reúne elementos relacionados à identidade do indivíduo, que integrarão a sua personalidade consciente, tais como o nome, seu endereço, seus pais, seu grau de estudo, seu próprio comportamento e habilidades, etc., enfim, as lembranças de tudo o que faz o indivíduo ser quem é. Esse complexo é chamado de “complexo do ego”. 
     A percepção inicial e simples dos sentidos do sujeito acaba se diferenciando e adquirindo sutilidades. Uma dessas consiste na discriminação entre meio interno e meio externo. Devido, sobretudo, à resistência do mundo exterior às demandas do bebê (seus movimentos, suas necessidades, etc.), este aprende a notar que tudo o que se encontra aquém do limite do seu corpo é distinto do que se encontra além, pois o desejo de se movimentar vem de si mesmo. A percepção em si é auto e extra-referente: existe alguém que percebe e algo que é percebido. Por extensão, aquele que percebe é interno, em oposição ao externo. À medida em que essa percepção também se dirige ao mundo interno, ela se identifica com seus próprios aspectos internos que têm a ver, principalmente, com a identidade do indivíduo (o complexo do ego), pois estes fazem parte do sistema psíquico que percebe. 
     Enquanto o sujeito é tão somente aceito, ele não percebe nenhuma diferença entre si e o meio externo, já que existe aí uma continuidade entre aquele que deseja e aquele que satisfaz o desejo, entre o solicitante e o objeto solicitado. A negação desse objeto é que separa essa continuidade entre o eu que quer, mas cuja satisfação é negada, e aquele que nega essa satisfação. Ocorre a consciência, então, do eu e do outro que nega, do eu e do objeto por hora inalcançável, desejável. O sujeito percebe que, apesar de continuar mirando o que é desejado, não pode se satisfazer devido à negação. Isso forma uma tensão polar tipo sujeito/objeto desejado. Aquele pode tentar alcançar o objeto de várias outras formas, inclusive sem a presença daquele que o negou. Então o sujeito percebe as consequências do seu feito, que pode ser uma punição – da cara feia até um tapinha, ou mesmo nenhuma reação daquele que se interpôs. Nesse ínterim, e com base também nas expressões das pessoas que nem sempre demonstram ser o que são, o pequeno sujeito elabora uma espécie de “película” psíquica ao redor da sua psique consciente que forma diferentes expressões, na maioria das vezes incongruentes com a totalidade do seu ser. Essa “película” é a persona, que tem o papel também de “filtrar” as impressões recebidas, de forma que se adaptem ao sujeito, mas que acaba filtrando também sua personalidade genuína em relação ao mundo exterior, para que não acabe sempre se frustrando com o que deseja. 
     Entretanto, é preciso diferenciar a estrutura egoica para fazer justiça, por exemplo, à filosofia oriental, que prega a negação ou morte do ego para que os indivíduos alcancem um estado duradouro de beatitude, ou iluminação. Para isso, pode-se imaginar o ego como uma espécie de foco de luz, que parte do Si-mesmo, e que ilumina a superfície da psique. Essa luz tem a função de gerenciar a troca de impressões do meio interno com o meio externo e vice-versa, de forma consciente, adaptada, para integração do indivíduo e do mundo reciprocamente. Fugindo um pouco da teoria junguiana, que percebe esse ponto focal de consciência simultaneamente como ego, pode-se pensá-lo, de início, como um feixe de luz totalmente atrelado ao processo de construção do complexo do ego, este teria um papel importantíssimo de delimitar esse foco. Entretanto, como o complexo do ego contém características de identidade, que é relativa à percepção a partir do indivíduo para o mundo externo, o feixe de consciência acaba se apegando e se confundindo com o complexo do ego, transformando-se em “foco” de luz consciente. Então o ponto focal, uma vez mais ou menos delimitado, pode se chamar de “eu”. 
     Esse modo de explicar a construção complexo do ego/foco da consciência acaba por integrar a psicologia junguiana à filosofia budista e oriental como um todo, que prega a “morte” do ego como objetivo da realização do sujeito. Jung discordava desse pensamento porque via o ego como aquela entidade necessária à percepção e à autonomia frente ao mundo. Quem iria “matar” o ego, seria o próprio ego, o que seria impossível. Entretanto, as duas correntes de pensamento podem ser integradas se se diferenciar o ego – ponto focal da consciência, do complexo do ego. O que morreria para os orientais seria o complexo do ego e não o ponto focal de consciência, a partir do qual o indivíduo se torna um sujeito no mundo.
     Com a maturidade, a diferenciação ego/complexo do ego, hipoteticamente, evitaria uma identificação total e constante do foco de luz consciente com o complexo egoico. Isso estabilizaria de tal forma o Eu que poderia impedi-lo de ser engolfado pelo inconsciente em situações muito difíceis da vida, pois isso só poderia ocorrer em relação ao complexo do ego. É claro que essa seria uma situação ideal, cujo alcance dificultaria ao homem ficar psicopatologicamente enfermo. Mas daria ao ego uma extrema autonomia, e ao mesmo tempo o subordinaria inteiramente ao Si-mesmo, como instrumento da consciência, de adaptação ao mundo. Seria a “iluminação”, nirvana ou samadhi oriental. O homem teria alcançado o estado paradisíaco infantil inicial sem, no entanto, inflar-se pela identificação com o arquétipo do Si-mesmo.

(Leia mais a respeito: "A origem e a natureza do Eu")

domingo, 26 de janeiro de 2014

A raiz do preconceito

     Um livro1 me chamou a atenção para o que seria, segundo o autor, a base do preconceito. Ele cita Hillman, o qual afirma que a supremacia da cor branca, chamada por ele de "supremacia branca", tem origem no fanatismo étnico, que é difícil de mudar, pois a "superioridade" da brancura é arquetípica. Algo é arquetípico quando está ligado aos fundamentos psicológicos da espécie humana como um todo, da mesma forma como o estão as religiões e suas concepções, os mitos e os instintos humanos. Os arquétipos são a base, o princípio da psique humana. Hillman demonstrou, por meio de estudos etnográficos sobre a África, que não só os brancos, mas também os negros possuem uma tendência a considerar as cores branca e negra como superior (boa) e inferior (ruim), respectivamente. O crítico cultural Todorov, também citado, liga o racismo ao simbolismo universal: "pares como preto/branco, luz/trevas, dia/noite parecem existir e funcionar em todas as culturas, sendo o primeiro termo de cada par geralmente o preferido".
     Na minha prática clínica, assim como na vida pessoal, já observei que os sonhos que trazem pessoas, animais e objetos negros geralmente diziam respeito a conteúdos que eram obscuros e inconscientes. É fato, por exemplo, que sonhos cuja trama se passa à noite, normalmente são mais difíceis de entender e trabalhar, pois remetem a uma condição mais confusa, vaga e "escura" para o sonhador. Realmente, não há como escapar do sentido simbólico dessas cores. A escuridão é negra, e um ser humano imerso na noite escura se sente completamente desorientado e passível de tropeçar e se ferir. O branco está relacionado, em geral, à pureza, à paz, à claridade, à luz, etc. A literatura universal e as obras poéticas são ricas de alusões, associações e valores em relação às duas cores.
     Então, os autores citados se perguntam porque o racismo resiste obstinadamente aos esforços políticos para sua erradicação. Sua resposta é que existe, neste caso, uma projeção dos valores arquetípicos da cor sobre as respectivas pessoas. Os racistas seriam pessoas literalistas que confundem a realidade física com a simbologia da cor, aplicando a oposição das cores preta/branca para fins preconceituosos. A solução de Hillman para amenizar o racismo é desliteralizá-lo ou perceber as cores como símbolos não aplicáveis às pessoas.
     Erich Fromm2 afirmou que a linguagem simbólica expressa experiências íntimas, pensamentos e sentimentos como se fossem fatos do mundo exterior. "A linguagem simbólica é uma língua onde o mundo exterior é um símbolo do mundo interior, um símbolo de nossas almas e de nossas mentes." Por isso os poetas, dentre os maiores usuários da linguagem simbólica, usam metáforas, isto é, transformam uma árvore, um clima, um membro do corpo, ou qualquer outra coisa, em símbolos de conteúdos interiores. Os povos do passado tinham os mitos e os sonhos entre as mais significativas expressões do espírito humano: não entendê-los tocava as raias do analfabetismo. Entretanto, o analfabetismo simbólico hoje em dia é muito mais comum do que imaginamos. Logo, aqueles que percebem a vida e o mundo de forma literal, tendem a perceber a pessoa negra da mesma forma como o faz com a noite, a escuridão, o abismo, e tantos outros fenômenos associados à cor negra. Seguindo esse raciocínio, aqueles que exercitam a linguagem simbólica mais frequentemente, pelo menos de maneira geral, seriam menos propícios a atitudes preconceituosas ou literalistas, pois podem mais perfeitamente diferenciar a pessoa do símbolo, o homem da cor.
     O livro mencionado no início deste texto trata brevemente sobre essa questão. Penso que o primeiro passo para amenização do preconceito em geral, e do racismo em particular, seja, como ocorre atualmente no Brasil e em outros países, provocar um repúdio generalizado com a divulgação de casos verídicos e a punição correspondente e o tratamento do assunto em novelas, filmes e outras mídias. Mas o aspecto educativo, levando-se em conta o ponto de vista simbólico do racismo, vai mais fundo.
     O homem moderno desaprendeu a linguagem simbólica e, tal como as pessoas que sofrem transtornos psicóticos, percebe a realidade de forma por demais literal, o que prejudica a interpretação mais acertada dos fatos. Atualmente, a decadência dos valores interiores aponta para a doença coletiva do homem contemporâneo: a fragmentação, o individualismo, a corrosão do coração que poderia uni-lo ao outro. O homem estaria vivendo um momento psicótico que percebe os símbolos como coisas, e não as coisas como símbolos, vê o que está lá fora como outro e não como símbolo de si mesmo. O simbolismo é uma linguagem natural, e enquanto o homem não se voltar à sua natureza interna, permanecerá sem raízes e se sentirá desagregado, seja internamente, seja socialmente.
1 - YOUNG-EISENDRATH, Polly. DAWSON, Terence. (Org.) Compêndio da Cambridge sobre Jung. São Paulo: Madras, 2011, p. 186.
2 - FROMM, Erich. A linguagem esquecida. Rio de Janeiro: Zahar, 1966, p. 14.