sexta-feira, 21 de abril de 2017

Resignificando o jogo Baleia Azul


     A título de introdução, remeto o leitor ao texto "A importância do rito de passagem na adolescência". Nele há o entendimento de que a adolescência é um período de vida em que ocorre um processo de transformação da criança em adulto. Por esse motivo, a duração da adolescência é muito móvel, a faixa de idade varia conforme a cultura e depende da época histórica do país também. Esse processo, em suma, envolve a morte psíquica da criança e seu renascimento, semelhante ao simbolismo do batismo religioso, uma vez que este abarca o mesmo motivo. 
     É isso que os ritos de passagem encenam, dramatizam: a morte do ego infantil, com o qual há o fechamento dos tempos de garoto, o seu sepultamento, para que o homem nasça justamente desse "túmulo". E essa morte é simbolizada nas iniciações, envolvendo, por exemplo, a colocação do corpo do jovem em um caixão em local escuro por um período, e o seu velório. Por vezes, os próprios sonhos podem induzir uma morte simbólica: vide o sonho repetido do adolescente, no qual ele era sempre velado pela família, no texto citado acima. Tudo indica que o sonho insistia em que ele fizesse a passagem, o processo de transformação, que não envolvia a morte literal, mas simbólica. Essa é a chave para o entendimento da indução ao suicídio no jogo Baleia Azul. Existem muitas indicações de que os 50 desafios do jogo promovem a morte literal do ego e do indivíduo, por meio da identificação deste com a figura da tal baleia. Por isso ele é macabro e letal. Mas não precisava ser assim...
     Tratemos o jogo um símbolo, uma cena de sonho. No jogo existe a figura do "curador". O dicionário dá algumas definições de curador, mas as que são mais próximas do nosso objetivo são: 1. pessoa com incumbência legal de zelar pelos bens e interesses daqueles que não o possam fazer (função de curadoria); 2. Feiticeiro/rezador que, supostamente, cura as mordidas de serpentes venenosas, ou que as torna respeitadas por estes (AURÉLIO, 2009). Nesta segunda definição poderíamos acrescentar simplesmente aquelas pessoas que, supostamente, curam doenças das pessoas com sua arte espiritual. Lembro-me que uma dessas benzedeiras, Dona Aurora, minha vizinha, certa vez curou várias verrugas que eu tinha na ponta dos meus dedos de ambas as mãos quando era adolescente. Após a "benzição" com galhos de arruda, monitorei cuidadosamente o acontecimento. Ao final do primeiro dia parecia que elas estavam diminuindo de tamanho; qual não foi minha surpresa ao ver meus dedos totalmente limpos no segundo dia! Hipnose? Se for, mesmo hoje, com todos os cursos de especializações que existem, deve ser muito raro achar um que tenha essa competência... De todo modo, tudo indica que esse curador do jogo queira remediar algum inconveniente desses jogadores adolescentes. Não faria ele o papel de iniciador à morte física nesse macabro rito de passagem? No entanto, não poderia ele fazer simplesmente um papel mais psicológico, levando nossos jovens a "morrerem" psiquicamente, enquanto crianças? Esta é a proposta deste texto: resignificar o jogo e chamar a atenção para a grande necessidade de ritos que subjaz no comportamento dos nossos jovens.
     Assim, toda a série de mutilações e cortes no corpo possuem um sentido iniciático. De acordo com Stephenson (2009, p. 57), muitos ritos de passagem, nas culturas antigas, envolviam o derramamento de sangue de alguma maneira. E havia uma dupla razão para isso: os garotos precisavam se acostumar a ver sangue, pois ser homem implicava correr riscos, ser resistente e corajoso, mesmo quando ferido; derramar sangue lembrava o ciclo menstrual da mulher, ligado à conclusão do parto (nascimento). Hoje essas práticas parecem cruéis e arcaicas, mas cumpriam seu objetivo de fazer uma transição relativamente rápida da criança em adulto, e podemos aprender muito do sucesso de sua dinâmica.
     Para Brandão (1990, p. 337), para se penetrar no símbolo da mutilação
é bom relembrar que a ordem da "cidade" é par: o homem se põe de pé, apoiando-se em suas duas pernas, trabalha com seus dois braços, olha a realidade com seus dois olhos. Ao contrário da ordem humana ou diurna, que é par, a ordem oculta, noturna, transcendental é UM, é ímpar. O disforme e o mutilado têm em comum o fato de estarem à margem da sociedade humana ou diurna, uma vez que neles a paridade foi prejudicada. Numero deus impari gaudet, o número ímpar agrada ao deus, diz o provérbio, mas an odd number significa também em inglês um "tipo estranho, um tipo incomum", e a expressão francesa il a commis un impair significa que alguém "cometeu uma inconveniência", "fez asneira", transgredindo, por leve que seja, a ordem humana. O criminoso "comete uma terrível inconveniência", transgredindo gravemente a ordem social; o herói se "singulariza perigosamente". Ambos realçam o sagrado e só se distinguem pela orientação vetorial do herói: sagrado-esquerdo e sagrado-direito. O vidente, como Tirésias, é cego; o gênio da eloquência é gago... a mutilação tem pois dois lados, revestindo-se também da complexio oppositorum, possuindo, assim, valor iniciático e contra-iniciático.
     Dizer ou escrever "Eu sou uma baleia" é afirmar a identidade com esse animal. Estar em comunhão ou se identificar com algo ou alguém pode envolver comer algo relacionado a isso, como ocorre no rito cristão da comunhão. Assim, ser uma baleia indica ser devorado por ela. Jacobi (1991, p. 135) diz que ser comido ou devorado é um motivo arquetípico amplamente propagado em várias lendas, contos e mitos. O exemplo mais conhecido é o de Jonas engolido pela baleia. A baleia é parente do dragão, simboliza com frequência a água, o mar que devora o sol e o devolve de novo à vida. A bruxa, o lobo e o ogro devorador possuem sentido similar. No simbolismo da alquimia encontra-se o leão que come o sol e o cabrito que entra no ventre de sua irmã Beia. Ser engolido é descer aos infernos, reafundar no ventre da mãe, extinguir a consciência, matar o eu que se afoga no inconsciente, na goela voraz da morte. "A viagem para o Hades, a Nekyia, o engolimento pela besta do caos, embora sejam as penúrias do inferno e da morte, são, no entanto, a condição prévia para a salvação e o renascimento." E no jogo da Baleia Azul os desafios de subir em um telhado alto, sentar-se na borda de uma ponte, ir a uma estrada de ferro, assistir a filmes de terror têm estreita relação com preparar-se para ir ao encontro da morte, do monstro, do dragão (o trem), da terra, da água, todos símbolos femininos, do útero do qual todos surgiram.
     O jogo da Baleia Azul não passa de um equívoco que literaliza uma necessidade simbólica de morrer. Na verdade, ele se torna tão polêmico e perigoso porque hoje em dia não fazemos mais a leitura simbólica, não observamos mais a realidade e o humano como são. Estamos muito ocupados e desligados do presente e de nosso interior, nossos instintos, emoções e sentimentos. Quanto mais das pessoas que nos são próximas... Ele está aí para dizer que precisamos morrer, nos transformar, mudar. "O paradoxo curioso é que quando eu me aceito como eu sou, então eu mudo." - Carl Rogers.


AGRADECIMENTOS

A Hugo Guimarães pelo texto ENTRE O VENTRE E O TÚMULO – UM OLHAR ARQUETÍPICO SOBRE A BALEIA AZUL, de onde tirei o link para os 50 desafios do jogo Baleia Azul.

REFERÊNCIAS

BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 1990. v. 1.

Novo Dicionário Aurélio versão 6.0 - Dicionário Eletrônico - Conforme a Nova Ortografia [CD-ROM], Positivo Informática, 2009.

STEPHENSON, Bret. From boys to men: spiritual rites of passage in an indulgent age. Rochester: Park Street, 2004.

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