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sexta-feira, 23 de novembro de 2018

Ancestralidade ausente e a popularidade dos mortos-vivos


     Um antigo nome atribuído aos ancestrais é "mortos vivos", isto é, aqueles que nos precedem na entrada ao mundo dos mortos e que de alguma forma permanecem vivos também. Existe uma antiga ideia de que o mundo diário dos fatos repousa sobre um mundo invisível do qual todos os fatos emergem. O mundo real com suas sérias leis e guerras intermináveis é menos real do que aquele que existe por trás dele, a fonte invisível de tudo o que vem parecer sólido e real. Esse mundo por trás do mundo tenta aflorar onde quer que o véu entre eles se torna mais sutil. A tristeza "afina" esse véu, assim como torna bela qualquer coisa que libere ideias e fantasias autênticas (MEAD, 2006, p. 365-6).
     Talvez a atração que a população mundial possui sobre a literatura ou sobre filmes de cinema e seriados com a temática "mortos-vivos" advenha do desprezo contemporâneo pelo tema "morte". A morte está bem mais higiênica - os funerais não ocorrem mais na casa do morto, de onde este sai ainda vivo para nunca mais voltar. Eles vão dos hospitais para as funerárias e destas para os cemitérios. Luto? Não existe mais tempo para o luto. Para certas pessoas, durar mais de um mês pode ser sinal de depressão ou transtorno pior.
     Esse mundo invisível a que o autor faz referência pode ser acessado facilmente por meio da própria psique e da imaginação. Tudo o que percebemos (e o mundo não pode existir para nós se nosso cérebro não o interpretar de acordo com a coletividade) repousa sobre as atividades psíquicas, esse mundo invisível. A tristeza recolhe nossa atenção para dentro e nos faz voltar a atenção para valores que nos eram invisíveis, e que estavam mortos para nós. Só então percebemos o quanto ainda estão vivos e clamando por atenção. O mundo dos mortos está mais vivo do que parece. 
      Os antigos estavam certos ao cultuar os mortos, pois simbolicamente voltavam a atenção para temas importantes e necessários, como a morte e o mundo invisível, subjetivo, oculto de todos - o inconsciente. Essa reverência fazia o papel da atenção psicológica que hoje aprendemos a aplicar em nós, sobre os assuntos urgentes, que muitas vezes tomam a forma de sintomas corporais.
     Os mortos-vivos veem nos aterrorizar na TV e no cinema. Esse símbolo torna explícito o que achamos ridículo: que algo morto possa se mover e andar sedento por matéria viva. Sim, a morte quer reviver, quer fazer parte da nossa vida, quer nos chamar a atenção sobre ela. Que saibamos dar o devido valor a esse chamado, interpretar corretamente o que parece nos importunar, pois somos matéria viva, e tudo o que faz parte de nós - desprezado ou não, vive e insiste em aparecer, apesar de podermos querê-lo morto. Que aprendamos a viver valorizando a morte e os mortos.
     Quando uma cultura nega a presença da morte na vida, ela perde a sabedoria deste ventre mais escuro. Nesta perda, ela tende a cortar o cuidado da mãe pessoal e forçar para a biologia o que viveria mais miticamente. A cultura que recusa considerar a morte, logo vem a saber menos da vida; o que começa como negação da morte, torna-se negação da vida. (MEAD, 2006, p. 109)


REFERÊNCIAS

MEAD, Michael J. The water of life: initiation and the tempering of the soul. Seatle: Greenfire Press, 2006.

terça-feira, 9 de junho de 2015

Babadook: a imposição do luto (contém spoilers)

     "The Babadook" (2014) é um filme muito instrutivo psicologicamente e muito rico em símbolos. Se isso não bastasse, foi também considerado um ótimo filme de terror. "William Friedkin, diretor do clássico O Exorcista, classificou o título como a produção mais apavorante que já assistiu" (ROLLING STONE, 2015). Infelizmente, para quem não conhece um pouco de psicologia, seu sentido simbólico pode passar encoberto. Este pequeno texto busca cumprir esta finalidade.
Seis anos já se passaram desde a morte de seu marido, mas Amelia (Essie Davis) ainda não superou a trágica perda. Ela tem um filho pequeno, o rebelde Samuel (Noah Wiseman), e tem dificuldades para amá-lo. O garoto sonha diariamente com um monstro terrível e ao encontrar um livro chamado "The Babadook" reconhece imediatamente seu pesadelo. Certo de que Babadook deseja matá-lo, o menino começa a agir irracionalmente, para desespero de Amélia. (ADORO CINEMA, 2015)
     Babadook encarna o inconsciente de Amelia, que procura de todos os modos reprimir a lembrança do trágico acidente de carro em que o marido a levava para a maternidade para dar à luz a Samuel. Qualquer possível menção à lembrança do marido é evitada e/ou negada por Amelia, até mesmo chamar Sam de "garoto", o que o ex-marido fazia. Ela não supera os estágios iniciais do luto, a negação e a raiva (KUBLER-ROSS, 1996). Sam, por sua vez, sofre com a inadmissão da mãe, e passa a ter pesadelos e medos inexplicáveis, além de amedrontar parentes e colegas. Isso se deve a que a psique da criança, antes da puberdade, é dotada de um Eu apenas embrionário, ainda incapaz de afirmar sua personalidade. Contudo, somos tentados e considerá-las, muitas vezes, esquisitas, cabeçudas e difíceis de educar, como se tivessem vontade própria. Puro engano. Nesses casos deve-se examinar o ambiente doméstico e o relacionamento dos pais, nos quais encontramos, geralmente, as verdadeiras razões das dificuldades dos filhos. O comportamento perturbador das crianças é muito mais reflexo das influências incômodas e embaraçosas dos pais (JUNG, 1986).
     O filho passa à mãe o livro de Babadook, que tem mensagens como: "uma vez que você ver o que está embaixo, vai desejar estar morto" e "deixe-me entrar". Ora, o inconsciente normalmente é retratado como a parte da personalidade que vive "embaixo", isto é, abaixo do nível da consciência, como se fosse uma espécie de porão. E ela guarda as posses do falecido justo em um porão, as quais não deixa Sam ter acesso. Nas palavras deste, a mãe não o deixa ter um pai, mesmo que morto. Além disso, Amelia parece evitar também qualquer referência a sexo e ao amor compartilhado. Também parece perceber os gestos carinhosos do filho como sexuais, mesmo quando este está dormindo e recosta em seu corpo. Então afasta-se prontamente. Amelia sofre de insônia, e não é por acaso, pois precisa estar acordada e vigilante o tempo inteiro para evitar qualquer menção ou lembrança interna aos problemas que nega veementemente. Mas, como é muito comum nesses casos, ela não tem consciência nem de que nega esses assuntos. Não mencionar ou falar sobre o falecido é, para Amelia, seguir em frente com a vida. De fato, esse seria um bom indício de que conseguiu superar a morte do ente querido, se a menção a ele não a irritasse tanto. Quem supera uma perda e não a expõe, provavelmente o faz porque o fato já não possui a intensidade afetiva quanto tinha à época dos acontecimentos. Porém, para que isso ocorra, é necessário conviver com eles.
     Entretanto, assim que o filho começa a ser discriminado claramente na escola e pelos parentes, a situação se desestabiliza. Então Sam fica desobediente e agressivo. O livro de Babadook surge e fornece a ela um meio simbólico para expressar conteúdos do seu inconsciente, até então fortemente represados. O estado psíquico de Amelia, antes vigorosamente controlado, se desequilibra, em meio à instabilidade da iluminação e aos ruídos, ao que tudo indica autônomos, produzidos no ambiente. O episódio em que Sam empurra a prima da casa da árvore, quando esta expressava às claras o que sua mãe ocultava, denota seu tormento frente à situação psíquica insuportável. Ao tentar se justificar, e a mãe tentar controlá-lo, passa por uma convulsão. Samuel é medicado e, agora, só a mãe deverá lidar com sua repressão ao luto, às reais emoções que a perseguem, encarnados por Babadook.
... fechada à realidade interior
     O livro, depois de destruído, reaparece com outra frase: "Vou fazer uma aposta com você. Quanto mais negar, mais forte eu fico". Nesse ponto, o inconsciente de Amelia encontra-se muito carregado de energia psíquica. Manter os sentimentos e as emoções do luto separados do seu Eu serviu apenas para fornecer mais autonomia a eles, mais independência em relação às rédeas que quer firmar. "Você começa a mudar quando eu entro. O Babadook cresce sob a sua pele. Venha! Venha ver o que está embaixo!". O símbolo do senhor negro, de cartola, mostra que ela primeiro matará o cachorro, depois sufocará o filho, e por último suicidará. Babadook, a figura do falecido que a abraça e os insetos que a perseguem, é como se fossem a morte em pessoa que vem buscá-la por não admitir sua existência. Influências regressivas que a atraem para o que ela rejeita, e que ficam mais fortes com a aproximação do aniversário do sétimo ano do filho. Ele mostra que ela nutre sentimentos hostis em relação ao cão que fareja o porão, ao filho que confronta sua cegueira interna e a si mesma. Ele é o inconsciente que finalmente se apossa de sua personalidade para cometer atos impensáveis. Ao negarmos o que se encontra em nosso interior, o separamos de nós, provendo-o de vida independente de nossa vontade. Nós nos tornamos como uma casa à disposição de forças que agora nos são desconhecidas, porque não admitidas. E ao não reconhecê-las, corremos o risco de não perceber que passamos a atuar como elas, que nos tornamos exatamente o que antes não tolerávamos.
     Sam diz que não quer que a mãe vá embora porque, como as crianças estão em íntimo contato com o inconsciente, sabe que ela aos poucos está partindo para dar lugar à bruxa, à mãe má, que o colocará em perigo. Amelia só recobra a consciência para lutar contra a possessão sombria quando Samuel a acaricia enquanto tentava sufocá-lo. Ela vomita uma massa negra, cena muito semelhante à separação de Peter Park de Venon, em Homem Aranha 3, cuja analogia é muito pertinente. À negação segue a identificação (união), e, então, uma separação (análise) mais saudável. Ao alucinar a morte do marido torna-se possível vivenciar a angústia da perda. Por último, prevalece o instinto materno na batalha contra a força maligna, que agora aloja-se no porão. Curiosamente, quando a mãe surta, o filho volta ao comportamento natural.
     Amelia não se cura como, normalmente, se idealiza uma cura. Pode-se dizer que sua saúde mental é restabelecida na medida em que ela reconhece a realidade do que se encontra em seu interior. Também teve que contar com outra força inconsciente igualmente poderosa: o instinto ou amor materno. O inconsciente teve que gritar, urrar e se impor para ser notado e respeitado. Por isso, e para manter uma boa relação com seu inconsciente, ela deve servi-lo diariamente com um símbolo que representa a morte e, de certa forma, a primeira (e parece que última) vitória desta: vermes extraídos do jardim onde o cão está enterrado. Mãe e filho compartilham da percepção da fera negra, como se esta fosse uma realidade comum a ambos, agora aceita inteiramente, como algo interno que, vivenciado externamente, exige atenção e respeito. Não é permitido a Sam visitar a fera, mas apenas quando for adulto. É a mãe que deve se relacionar com ela, pois é um problema dela. Foi preciso que alucinasse, que saísse de sua realidade, para que atentasse ao avesso do mundo exterior, que muitas pessoas desprezam: o espaço interno.





REFERÊNCIAS

ADORO CINEMA. Disponível em: <http://www.adorocinema.com/filmes/filme-226493>. Acesso em: 7 jun. 2015. 

BABADOOK. Direção: Jennifer Kent. Produção: Jan Chapman. Intérpretes: Essie Davis, Noah Wiseman, Daniel Henshall, e outros. Roteiro: Jennifer Kent. Austrália: Causeway Films
Smoking Gun Productions, 2014. IMDb: 6,9.

JUNG, Carl Gustav. O desenvolvimento da personalidade. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 1986, v. XVII.

KUBLER-ROSS, Elisabeth. Sobre a morte e o morrer: o que os doentes têm para ensinar a médicos, enfermeiras, religiosos e aos próprios parentes. 7. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

ROLLING STONE. Disponível em: <http://rollingstone.uol.com.br/noticia/i-babadooki-entenda-como-uma-diretora-pouco-conhecida-fez-um-dos-filmes-mais-assustadores-em-anos>. Acesso em: 7 jun. 2015.

segunda-feira, 21 de abril de 2014

Cinema ou instituição para tratar a psique coletiva


O teatro como "instituição para
tratamento público de complexos"
     Jung (1989, §48) chamou o teatro de “instituição para o tratamento público de complexos”. Ele explicou que o prazer que se sente com a comédia, com uma história dramática com final feliz ou com uma tragédia se deve à identificação de complexos pessoais com os da peça. Com relação à tragédia, tem-se a sensação terrível e benéfica de se presenciar a ocorrência com o outro daquilo que nos ameaça. Essa identificação também ocorre com outras produções como o cinema e a novela. Essa identificação pode chegar a tal ponto que fortes complexos podem ser trabalhados em psicoterapia, por meio de filmes especialmente indicados para tal. E já se criou até um nome para uma espécie de terapia que usa enfaticamente as produções cinematográficas: a “cinematerapia”.
     Um filme pode aludir a possíveis soluções de problemas psíquicos e pode também questionar preconceitos, pontos de vista e convicções fortemente arraigadas. Os filmes podem falar poeticamente à alma e ao inconsciente, sem que o cliente tenha noção inteiramente consciente do que está sendo tratado, abreviando a terapia, sobretudo devido à amplificação de temas já tratados ou ainda por se discutir nas sessões. Uma novela ou filme que toca um complexo pode ter um efeito particularmente intenso no espectador, de forma a produzir emoções nomeadas popularmente de “positivas” ou “negativas”, cujas ocorrências associadas podem ser analisadas em terapia.
"Star Wars" foi escrito com base em
conceitos como o "inconsciente coletivo"
     Ora, os filmes que afetam positiva ou negativamente uma pessoa, de forma mais ou menos intensa, como já exposto, o fazem porque representam aspectos que possuem fortes conexões com seus complexos, ensejando sua identificação com personagens e situações. Se um certo filme impressiona muitas pessoas, isso se deve ao fato de ele refletir os complexos dessas pessoas, desde pequenos grupos, até nações inteiras. Assim, complexos coletivos, pertencentes a vários países, podem ser ativados por determinados filmes, mobilizando as massas, como ocorreu com produções como “Guerra nas estrelas”, “O senhor dos anéis”, “Avatar”, “Titanic”, etc. A análise dos filmes de maior bilheteria, que devem seu sucesso principalmente ao seu roteiro e à elaboração dos personagens, pode fornecer um diagnóstico mais ou menos preciso dos complexos mais mobilizados no inconsciente coletivo à época de seu lançamento. A energia psíquica está atrelada a esses complexos, e esse diagnóstico pode explicitar facilmente o caminho que ela está tomando e, pelo menos teoricamente, pode tornar claro para qual meta está se desenvolvendo, assim como os obstáculos desse destino. 
     O homem possui hoje em dia meios para prever coletivamente seu comportamento, assim como recursos para tratamento em massa das pessoas. Esses expedientes podem ser usados com maestria para um verdadeiro salto evolutivo de consciência, o que vem sucedendo sofregamente, ao contrário do que ocorre com o desenvolvimento tecnológico. Infelizmente, percebe-se, por meio de diversas leituras, que a humanidade se encontra em um estágio evolutivo de consciência, no sentido de uma integração maior à totalidade psíquica, semelhante à que havia há mais ou menos 2000 anos. Apenas um “verniz tecnológico” parece encobrir o estágio precário do inconsciente coletivo, fornecendo a aparência altamente civilizada que parece iludir a todos. Infelizmente o homem parece estar se desfazendo cada vez mais da linguagem simbólica, que poderia aproximá-lo o suficiente dos instintos vitais para que retornasse aos rumos de um verdadeiro crescimento psicológico saudável. A maioria dos filmes parece indicar esses caminhos: basta atentar a eles.
A comoção por combates corpo a corpo é semelhante
 à que havia por duelos romanos há 2000 anos
Referências
JUNG, Carl Gustav. Símbolos da transformação. Petrópolis: Vozes, 1989. v. V.

Leia mais a respeito:
"Alice no inconsciente coletivo" - 1ª Parte - 2ª Parte