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domingo, 3 de junho de 2018

Sonho com alguém, mas outro morre

     Sempre me intrigou o fato de o senso comum, ou a tradição popular, alegar que, ao se sonhar com uma pessoa, outra acaba morrendo. Estudo os sonhos há mais de 20 anos, mas até hoje não encontrei resposta satisfatória para esta e várias outras questões envolvendo sonhos. Mas uma boa conversa, há pouco mais de um ano, me deu uma pista dos caminhos que nossa psique traça para tecer o sentido do destino.


     Um amigo relatou que sonhara com a morte do seu tio paraplégico. Então comentou que quem viera falecer, na verdade, fora outra pessoa, no caso, sua ex-esposa, como costuma ocorrer quando se sonha com a morte de alguém. Normalmente, nesses casos em que não se sabe a conexão, ou não se tem ciência do significado do sonho, muito provavelmente este acaba sendo encontrado oculto no inconsciente do sonhador. Investiguei com ele sobre o seu tio. Disse que este procura ser independente das pessoas, fazer tudo por conta própria, apesar das sérias limitações de sua paraplegia. Por outro lado, sua ex-esposa revelava ser uma personalidade totalmente oposta à dele, uma vez que procurava se identificar com as suas limitações psicológicas, tornando-se totalmente dependente das outras pessoas. Era uma pessoa cheia de conflitos, que usava de chantagens emocionais para com o sonhador, e era deprimida, recorrendo a medicamentos psiquiátricos. Acreditava que ela suicidara com tais remédios.
     Interessante aqui é que geralmente não encontramos evidências claras do sentido dos sonhos porque esperamos encontrar o vínculo dos fatos ou ideias na aparência dos acontecimentos. A psicologia, no entanto, procedendo à investigação científica do mundo psíquico, descobriu que os sonhos são como estórias que narram o que acontece interiormente com os sujeitos, em seu inconsciente. E sua linguagem sempre se revela muito clara e coerente quando procedemos aos métodos de trabalho com sonhos e conseguimos a descoberta do sentido oculto. O mesmo ocorre no presente caso.


     A conexão parece ocorrer entre o que o sonhador conhecia acerca do seu tio, e desconhecia a respeito da ex-esposa. O nosso inconsciente aloja figuras que são comumente opostas à personalidade consciente. Se tenho certa personalidade característica, meu inconsciente provavelmente conterá qualidades opostas às que identifico como minhas. E isso inclui também atributos sexuais. Se sou muito másculo e bruto, haverá uma figura inconsciente em mim, em forma de mulher, que apresentará propriedades totalmente opostas, e estas poderão aparecer, contra minha vontade, em certas situações. Parece que ocorreu o mesmo com o inconsciente da ex-esposa do sonhador: havia nele uma figura masculina que poderia ser representada, para o ex-marido, pelo tio paraplégico. No sonho, este veio a falecer, expressando que sua ex-esposa, tal como é simbolizada pela figura do seu inconsciente, iria morrer. No caso, o sonho atuou como um exame de raio-X, mostrando o inconsciente da ex, seu lado oculto, não revelado, desconhecido das pessoas do seu convívio, e não o seu lado conhecido, cotidiano. E é exatamente isso o que os sonhos revelam - aquilo que se ignora, que se encontra encoberto.
     Em outra ocasião, uma senhora residente no japão alegou não entender o que um sonho dizia, embora soubesse que continha uma mensagem oculta. Uma semana antes do acidente de moto que ceifaria a vida do filho, ela sonhara que estava em um salão enfeitado com cortinas negras, onde havia uma mesa com forro negro, e um vaso de lírio sobre ela. Era a formatura escolar de seu filho. Como somos ignorantes hoje em dia com relação à linguagem simbólica! Esta é uma linguagem universal, encontrada nas canções, nas poesias, nos hinos, na Bíblia, nos mitos, nas mais diversas culturas, em nossos próprios sonhos. Porém, a ignoramos. O sonho avisou a mãe que em breve ocorreria a formatura do filho. Ele iria formar-se na "escola da vida" (esta é a metáfora coletiva mais próxima que achei para expressar o que o sonho parecia querer transmitir ao seu ego). Os símbolos do sonho expressavam esse alerta. Talvez tenham atuado como consolo, ainda que não tenha captado a mensagem conscientemente. É provável que seu inconsciente havia captado certos sinais, não percebidos conscientemente, de que estava em processo um encadeamento de eventos que resultaria na morte do filho. O mesmo teria ocorrido no sonho analisado antes. 
     Esses dois casos revelam o quanto ainda ignoramos certos processos simples e corriqueiros de nossa psique. A ciência avançou muito em certos campos, e até no aspecto material dos sonhos, mas insiste em não pesquisar e em ignorar certos fenômenos empíricos relacionados a eles. A linguagem simbólica é desprezada em favor da científica, por causa de sua inexatidão e inadequação aos métodos técnicos. Isso é óbvio, uma vez que ela se volta para a interioridade dos indivíduos, da qual ficamos cada vez mais distantes. É hora de crescer menos para fora e amadurecer por dentro.


sábado, 11 de fevereiro de 2017

Consciência ética e moral no Brasil


     A postagem abaixo teve grande repercussão na Internet, principalmente devido aos recentes eventos no Espírito Santo, retratados no vídeo acima.

PSICOLOGIA DE POLÍCIA E BANDIDO
Na greve da PM no Espírito Santo cidadãos comuns foram vistos realizando saques em lojas e supermercados. A ausência da polícia revela uma realidade assustadora: o caos ético e moral que se encontra o nosso país. Quando a polícia se torna a regra de conduta das pessoas, o instrumento de controle que as impede de cometer crimes percebe-se a falta de consciência ética e moral. Retirada a polícia vem a tona o desejo latente de um povo corrupto. Idiotice pensar que só políticos são desonestos, tendo oportunidade, muitos se tornam criminosos. A conclusão é a seguinte: Se precisamos de polícia para sermos honestos, somos uma sociedade de bandidos soltos!
Sérgio Oliveira – Teólogo e psicólogo

     Infelizmente, podemos ser muito iludidos devido ao verniz tecnológico do nosso tempo. O uso das diferentes tecnologias dá a impressão de que somos uma "civilização", no uso do sentido pleno que essa palavra expressa. Algo semelhante ocorreu durante a II Guerra Mundial: por trás do lastro cultural da Alemanha percebemos como todo um povo foi arrastado em uma psicose coletiva, seguindo Hitler, um líder com um sonho mitológico de construção de uma nação de raça "pura". Analisando a situação, Jung afirmou que o Cristianismo não conseguira transformar a psique coletiva alemã, mas se impusera, encobrindo o bárbaro infundido pelos deuses nórdicos. Esse bárbaro veio à tona, de novo, nos tempos atuais.
Só começamos a nos discipli-
nar quando percebemos o quanto
somos fracos.
     O caos no Espírito Santo deixa explícito que, no âmbito geral, nossa educação não está conseguindo trabalhar a psique dos indivíduos. Na medida que essa educação é impositiva, trabalha os conteúdos de pensamento apenas como função da memória, não abarca a função sentimento, que lida com os valores, e nem com a sensação e a intuição, que ocupam-se com as impressões dos sentidos e com a imaginação, permanecemos bárbaros. A educação impositiva apenas imprime, superficialmente, o que "deve" ser, o comportamento que deve ser reproduzido, copiado do modelo exigido. Porém, uma educação, no rigor da palavra, irá explicar o motivo desse comportamento, expressará os sentimentos correspondentes que cada um distingue em si, perceberá, com detalhes, as impressões envolvidas e as possibilidades decorrentes da conduta considerada.
     O emprego da polícia envolve a pressão para que cada um vigie seu próprio comportamento, sobretudo para não manifestar os impróprios perto dos outros cidadãos, que podem chamar a polícia, e desta, propriamente dita. Se a educação dos cidadãos se baseia nessa pressão do outro, não é de admirar que, na sua ausência, a conduta reprimida venha à tona. O que surpreende, porém, é que esse mecanismo seja descoberto, pois nunca esperávamos que pudéssemos ser tão corruptos, tão próximos do comportamento de vários odiosos políticos de Brasília.
     O maior problema é se diferenciar a repressão da verdadeira disciplina. 
A repressão parece menos dolorosa que a disciplina. Mas é mais perigosa, pois nos faz agir sem a consciência dos nossos motivos, de modo irresponsável. Mesmo que não sejamos responsáveis pelo que somos e sentimos, precisamos nos responsabilizar por como agimos, isto é, nos disciplinar. E a disciplina é a capacidade de, quando necessário, agir contra nossos sentimentos. (WHITMONT in ZWEIG e ABRAMS, 1994, p. 41) 
     É bem mais fácil reprimirmos um comportamento do que nos disciplinarmos verdadeiramente. Na primeira atitude nós descartamos todo e qualquer pensamento ou sentimento relacionado à conduta imprópria. Consideramos, como maioria religiosa, estes conteúdos como formas de pecar. Toda tentação é pecado. E mal nos damos conta que até Cristo foi tentado... Entretanto, precisamos nos dar conta de que esses conteúdos aparentemente "pecaminosos" tornam-se muito mais perigosos quando reprimidos, pois aí precisamos dos outros para nos policiar, uma vez que não estamos mais conscientes dos motivos que podem nos mover. Essas impressões más, erradas, uma vez reprimidas, continuam em nós, mas encobertas, ocultas. Na primeira oportunidade em que a pressão exterior é removida, essas ânsias internas vêm à tona e as executamos no ímpeto, sem nenhuma crítica. Repressão é sinônimo de hipocrisia, pelo menos do ponto de vista psicológico.
     Já a disciplina envolve ficarmos a par, a todo momento, dessas "maldades" internas, do fato de que somos transgressores ou criminosos em potencial. Com isso, podemos e devemos policiar a nós mesmos. Se nos achamos muito puros, bons ou inocentes, não precisamos de "guardas" internos e de nenhuma vigilância interior. No entanto, como é tranquilizante termos essa bela imagem de nós mesmos!
     Mas eventos como esses são muito positivos. Mostram-nos como somos de fato. Nos decepcionam, frustram e entristecem. Esses são sentimentos muito positivos, que provocam transformações. E é disso que mais precisamos. O maior trabalho que podemos fazer para a política brasileira e para os cidadãos em geral é voltarmos nossa atenção para nosso íntimo, e percebermos o que realmente lá se encontra.

quarta-feira, 4 de maio de 2016

A sombra do Brasil: banir ou integrar?

     Consideremos a nação brasileira como um sujeito possuidor de uma psique. O governo, o poder executivo, seria o eu; as instituições que o apoiam, o legislativo e o judiciário, fariam parte de todo o complexo do eu, regulador dos processos conscientes dentro da personalidade nacional, e que, ainda assim, comporta também certas instâncias inconscientes. O povo brasileiro, com suas numerosas instituições, representaria o inconsciente coletivo. Os diversos partidos personificariam os vários complexos pessoais inconscientes, que podem ou não se tornar mais ou menos conhecidos e identificados ou integrados ao eu.
Uma transposição do esquema psíquico para a nação brasileira.
     Essas comparações podem parecer mecânicas e simplistas, talvez porque pensemos que as pessoas, animais e coisas materiais "lá fora", vistas e apalpadas, sejam muito diferentes dos elementos psíquicos, estes sim, dinâmicos e de aparência muito mais "orgânica". Talvez tenhamos essa impressão por não percebermos a teia invisível que conecta a tudo e a todos externa e internamente. Não nos damos conta do "efeito borboleta", de como a batida de asas de uma borboleta pode desencadear, em seus vínculos inicialmente sutis, estragos como a passagem de um tufão. Portanto, o que me acontece a partir de fora, neste momento, neste lugar, está profundamente conectado interiormente comigo, com a minha pessoa, minhas ações, meus pensamentos. O que faço reflete em meu país e vice-versa.
     Na medida em que um partido tradicional permanece no governo, uma atitude de longa data insiste em continuar. Nada muda. Os partidos e os rebeldes ao governo ficam no "inconsciente", fora do eu, e, por isso conservam-se infantis, primitivos e desvalorizados. Ao assumir o governo, podem expressar traços dessas características. Exemplos disso é o modo como o governo, apesar de haver revitalizado a condição dos mais pobres, tratou tudo isso: a corrupção, a pretensão de que se poderia esbanjar dinheiro em programas sociais sem um limite mais real - talvez por ser o governo - sem que houvesse consequências, acreditar que o Brasil não estava em crise, etc.
     Se alguma parte dos "poderes" do eu, devido à rigidez deste, também fica longo tempo reprimida, acaba por manter-se subdesenvolvida e ingênua. Na medida em que são violentamente reprimidos, acabam conspirando para tornarem-se novamente visíveis e considerados parte do todo. À medida que o tempo passa, o tradicional governo se desgasta, pois não pode oferecer nada novo, já que realiza o que sabe, mas que é, ainda assim, insuficiente para abranger e praticar justiça ao todo. Produzir algo diferente é adotar a perspectiva oposta, que é considerada inimiga ou diabólica. Aliás, o novo sempre é diabólico, já que sua implantação requer um rebuliço no que é percebido como "normal": tudo vira um caos até que a ordem relativa ao novo se estruture e acomode a todos. Ao longo da história, isso ocorreu com várias inovações que quebraram antigos costumes: o rock, a ciência sobre a religião, seitas modernas, uma nova moda, um costume recente, etc.
Nenhum partido por si só representa a nação inteira.
A versão completa abarca a luz e a escuridão.
     Ora, se a consciência conservadora se desgasta, os aspectos sombrios ganham energia para novos arroubos. Podem se manifestar de maneira cada vez mais adaptada, com o tempo, obtendo o apoio de todo o "inconsciente", já que o representa, enquanto elemento sombrio. Se esse partido consegue assumir o eu consciente, conseguirá alguma inovação, na medida em que essa "assunção do eu" não for tão somente uma mera identificação. Quando me identifico com minha sombra, não penso no quanto estou diferente, mas excito-me com as novas atitudes que tomo, sem pensar nos valores tradicionais que me ocupavam outrora. É como se fosse tomado por uma paixão. Porém, infelizmente, esse fogo acaba um dia, e aí vou pensar no quanto fiz besteira em nome de uma chama provisória. Ao identificar-me com esses aspectos sombrios, não penso nas minhas outras partes. Estas já não me integram mais, só o novo. Porém, mal me dou conta de que nenhum elemento psíquico me pertence, mas sim à totalidade, que está muito além desse miserável e pequenino eu. Penso que foi mais ou menos isso que ocorreu com o PT.
     Ao se identificar - "Eu sou o governo", "Eu sou o povo", "Eu sou as instituições" - tomou mais do que pertencia a si. Pensou-se maior do que sua verdadeira medida. Inflacionou-se. Outro sintoma dessa inflação é a pretensão de atuar como ditadura, uma espécie de grande rigidez da consciência, uma intensa cisão psíquica, o que configurou, por exemplo, na intenção de censurar ou limitar a imprensa. O louvor do poder pelo poder acabou por degenerar em corrupção, já que não ocorreu uma distribuição equilibrada de recursos à consciência, aos instintos e arquétipos, mas sua usurpação pelo complexo-PT com que o eu-governo se identificou. Essa luta pelo poder parece ocultar uma espécie de medo de ser novamente relegado ao esquecimento, de ser desvalorizado e humilhado. Entretanto, o que ocorre com um balão inflado, com o tempo? Naturalmente, ele murcha até adotar a exata dimensão do seu ser real. Como partido que nunca teve o aval da psíquica nação, ao assumir, adotou posturas infantis e ações primitivas, inadequadas, ocorrência idêntica à inflação no contexto de um indivíduo. Alguns petistas, em um momento de lucidez, ousaram afirmar que, como nunca governou, "quem nunca comeu melado, quando come, se lambuza". E este é o ponto exato: não saber como se comportar adequadamente na direção da nação. Outros, delirados com o partido, não levam em consideração os demais, adotando um procedimento unilateral, tomando a parte pelo todo.
     Assim, não penso que o PT ou qualquer outro partido deva ser banido ou destruído, pura e simplesmente. Fazer isso é torná-lo mais sombrio, é mandá-lo de novo ao "inconsciente", de onde um dia há de voltar, talvez mais rude do que antes. Querendo ou não, ele representa parcela significativa do povo brasileiro, seus costumes, suas atitudes. Odiá-lo é, em uma perspectiva mais profunda, odiar a própria sombra que ora se projeta sobre o partido. Agora é momento de reflexão, de "baixar a bola" e se julgar com isenção, com mais maturidade, seja pelo PT, seja por cada cidadão brasileiro. O reconhecimento da culpa trará mais maturidade para que, mais adiante, quem sabe possa elevar-se novamente a uma posição dirigente, com menos presunção e mais equilíbrio. O maior mal da política é não saber administrar o poder, seu principal instrumento. Este deve servir ao povo, à nação, à totalidade, não a uma porção.
     RESSALVA: a comparação que faço aqui é aproximativa e limitada. A análise dos grupos e instituições não se estende aos indivíduos que os compõem. A associação dos conceitos psicológicos com partidos não tem fim depreciativo, pois quaisquer dos primeiros representam sempre figuras essenciais e muito importantes à psique coletiva.

(Leia mais a respeito: "Extinção ou renovação de valores?",

terça-feira, 9 de junho de 2015

Babadook: a imposição do luto (contém spoilers)

     "The Babadook" (2014) é um filme muito instrutivo psicologicamente e muito rico em símbolos. Se isso não bastasse, foi também considerado um ótimo filme de terror. "William Friedkin, diretor do clássico O Exorcista, classificou o título como a produção mais apavorante que já assistiu" (ROLLING STONE, 2015). Infelizmente, para quem não conhece um pouco de psicologia, seu sentido simbólico pode passar encoberto. Este pequeno texto busca cumprir esta finalidade.
Seis anos já se passaram desde a morte de seu marido, mas Amelia (Essie Davis) ainda não superou a trágica perda. Ela tem um filho pequeno, o rebelde Samuel (Noah Wiseman), e tem dificuldades para amá-lo. O garoto sonha diariamente com um monstro terrível e ao encontrar um livro chamado "The Babadook" reconhece imediatamente seu pesadelo. Certo de que Babadook deseja matá-lo, o menino começa a agir irracionalmente, para desespero de Amélia. (ADORO CINEMA, 2015)
     Babadook encarna o inconsciente de Amelia, que procura de todos os modos reprimir a lembrança do trágico acidente de carro em que o marido a levava para a maternidade para dar à luz a Samuel. Qualquer possível menção à lembrança do marido é evitada e/ou negada por Amelia, até mesmo chamar Sam de "garoto", o que o ex-marido fazia. Ela não supera os estágios iniciais do luto, a negação e a raiva (KUBLER-ROSS, 1996). Sam, por sua vez, sofre com a inadmissão da mãe, e passa a ter pesadelos e medos inexplicáveis, além de amedrontar parentes e colegas. Isso se deve a que a psique da criança, antes da puberdade, é dotada de um Eu apenas embrionário, ainda incapaz de afirmar sua personalidade. Contudo, somos tentados e considerá-las, muitas vezes, esquisitas, cabeçudas e difíceis de educar, como se tivessem vontade própria. Puro engano. Nesses casos deve-se examinar o ambiente doméstico e o relacionamento dos pais, nos quais encontramos, geralmente, as verdadeiras razões das dificuldades dos filhos. O comportamento perturbador das crianças é muito mais reflexo das influências incômodas e embaraçosas dos pais (JUNG, 1986).
     O filho passa à mãe o livro de Babadook, que tem mensagens como: "uma vez que você ver o que está embaixo, vai desejar estar morto" e "deixe-me entrar". Ora, o inconsciente normalmente é retratado como a parte da personalidade que vive "embaixo", isto é, abaixo do nível da consciência, como se fosse uma espécie de porão. E ela guarda as posses do falecido justo em um porão, as quais não deixa Sam ter acesso. Nas palavras deste, a mãe não o deixa ter um pai, mesmo que morto. Além disso, Amelia parece evitar também qualquer referência a sexo e ao amor compartilhado. Também parece perceber os gestos carinhosos do filho como sexuais, mesmo quando este está dormindo e recosta em seu corpo. Então afasta-se prontamente. Amelia sofre de insônia, e não é por acaso, pois precisa estar acordada e vigilante o tempo inteiro para evitar qualquer menção ou lembrança interna aos problemas que nega veementemente. Mas, como é muito comum nesses casos, ela não tem consciência nem de que nega esses assuntos. Não mencionar ou falar sobre o falecido é, para Amelia, seguir em frente com a vida. De fato, esse seria um bom indício de que conseguiu superar a morte do ente querido, se a menção a ele não a irritasse tanto. Quem supera uma perda e não a expõe, provavelmente o faz porque o fato já não possui a intensidade afetiva quanto tinha à época dos acontecimentos. Porém, para que isso ocorra, é necessário conviver com eles.
     Entretanto, assim que o filho começa a ser discriminado claramente na escola e pelos parentes, a situação se desestabiliza. Então Sam fica desobediente e agressivo. O livro de Babadook surge e fornece a ela um meio simbólico para expressar conteúdos do seu inconsciente, até então fortemente represados. O estado psíquico de Amelia, antes vigorosamente controlado, se desequilibra, em meio à instabilidade da iluminação e aos ruídos, ao que tudo indica autônomos, produzidos no ambiente. O episódio em que Sam empurra a prima da casa da árvore, quando esta expressava às claras o que sua mãe ocultava, denota seu tormento frente à situação psíquica insuportável. Ao tentar se justificar, e a mãe tentar controlá-lo, passa por uma convulsão. Samuel é medicado e, agora, só a mãe deverá lidar com sua repressão ao luto, às reais emoções que a perseguem, encarnados por Babadook.
... fechada à realidade interior
     O livro, depois de destruído, reaparece com outra frase: "Vou fazer uma aposta com você. Quanto mais negar, mais forte eu fico". Nesse ponto, o inconsciente de Amelia encontra-se muito carregado de energia psíquica. Manter os sentimentos e as emoções do luto separados do seu Eu serviu apenas para fornecer mais autonomia a eles, mais independência em relação às rédeas que quer firmar. "Você começa a mudar quando eu entro. O Babadook cresce sob a sua pele. Venha! Venha ver o que está embaixo!". O símbolo do senhor negro, de cartola, mostra que ela primeiro matará o cachorro, depois sufocará o filho, e por último suicidará. Babadook, a figura do falecido que a abraça e os insetos que a perseguem, é como se fossem a morte em pessoa que vem buscá-la por não admitir sua existência. Influências regressivas que a atraem para o que ela rejeita, e que ficam mais fortes com a aproximação do aniversário do sétimo ano do filho. Ele mostra que ela nutre sentimentos hostis em relação ao cão que fareja o porão, ao filho que confronta sua cegueira interna e a si mesma. Ele é o inconsciente que finalmente se apossa de sua personalidade para cometer atos impensáveis. Ao negarmos o que se encontra em nosso interior, o separamos de nós, provendo-o de vida independente de nossa vontade. Nós nos tornamos como uma casa à disposição de forças que agora nos são desconhecidas, porque não admitidas. E ao não reconhecê-las, corremos o risco de não perceber que passamos a atuar como elas, que nos tornamos exatamente o que antes não tolerávamos.
     Sam diz que não quer que a mãe vá embora porque, como as crianças estão em íntimo contato com o inconsciente, sabe que ela aos poucos está partindo para dar lugar à bruxa, à mãe má, que o colocará em perigo. Amelia só recobra a consciência para lutar contra a possessão sombria quando Samuel a acaricia enquanto tentava sufocá-lo. Ela vomita uma massa negra, cena muito semelhante à separação de Peter Park de Venon, em Homem Aranha 3, cuja analogia é muito pertinente. À negação segue a identificação (união), e, então, uma separação (análise) mais saudável. Ao alucinar a morte do marido torna-se possível vivenciar a angústia da perda. Por último, prevalece o instinto materno na batalha contra a força maligna, que agora aloja-se no porão. Curiosamente, quando a mãe surta, o filho volta ao comportamento natural.
     Amelia não se cura como, normalmente, se idealiza uma cura. Pode-se dizer que sua saúde mental é restabelecida na medida em que ela reconhece a realidade do que se encontra em seu interior. Também teve que contar com outra força inconsciente igualmente poderosa: o instinto ou amor materno. O inconsciente teve que gritar, urrar e se impor para ser notado e respeitado. Por isso, e para manter uma boa relação com seu inconsciente, ela deve servi-lo diariamente com um símbolo que representa a morte e, de certa forma, a primeira (e parece que última) vitória desta: vermes extraídos do jardim onde o cão está enterrado. Mãe e filho compartilham da percepção da fera negra, como se esta fosse uma realidade comum a ambos, agora aceita inteiramente, como algo interno que, vivenciado externamente, exige atenção e respeito. Não é permitido a Sam visitar a fera, mas apenas quando for adulto. É a mãe que deve se relacionar com ela, pois é um problema dela. Foi preciso que alucinasse, que saísse de sua realidade, para que atentasse ao avesso do mundo exterior, que muitas pessoas desprezam: o espaço interno.





REFERÊNCIAS

ADORO CINEMA. Disponível em: <http://www.adorocinema.com/filmes/filme-226493>. Acesso em: 7 jun. 2015. 

BABADOOK. Direção: Jennifer Kent. Produção: Jan Chapman. Intérpretes: Essie Davis, Noah Wiseman, Daniel Henshall, e outros. Roteiro: Jennifer Kent. Austrália: Causeway Films
Smoking Gun Productions, 2014. IMDb: 6,9.

JUNG, Carl Gustav. O desenvolvimento da personalidade. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 1986, v. XVII.

KUBLER-ROSS, Elisabeth. Sobre a morte e o morrer: o que os doentes têm para ensinar a médicos, enfermeiras, religiosos e aos próprios parentes. 7. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

ROLLING STONE. Disponível em: <http://rollingstone.uol.com.br/noticia/i-babadooki-entenda-como-uma-diretora-pouco-conhecida-fez-um-dos-filmes-mais-assustadores-em-anos>. Acesso em: 7 jun. 2015.

quinta-feira, 16 de abril de 2015

A ampliação da consciência humana

As quatro funções de orientação da consciência.
     Possuímos quatro funções para nos orientarmos no mundo: a sensação nos passa que existem objetos e pessoas ao nosso redor, assim como nos transfere as impressões internas dos sentidos (imagens, calor/frio, dor/prazer, etc.); o pensamento identifica esses objetos e pessoas para nós, assim como as citadas impressões internas, com o uso das ideias, do raciocínio; o sentimento possibilita avaliarmos esses elementos com relação ao grau de nosso desejo ou agrado; e a intuição nos fornece as variadas possibilidades desses elementos externos ou internos, assim como sua combinação para algum fim: no que resultarão, de onde vieram, etc. Ocorre que cada um de nós nos identificamos com uma dessas funções em grau maior ou menor, o que faz com que tenhamos pontos de vista diferentes sobre o mundo e nós mesmos, seja com base no interior ou exterior, assim como em uma dessas funções. Se nos identificamos com o pensamento, então vamos dar prioridade a nos relacionar com nós mesmos e com o mundo com base nas ideias, nas regras, no raciocínio e na lógica. Se o fazemos com a função sentimento, usaremos os sentimentos para isso, e assim por diante. Isso nos caracteriza como tipos psicológicos: seremos do tipo pensamento se tendemos a usar principalmente essa função, no mesmo raciocínio da última frase.
     No começo da civilização, o homem conseguiu desenvolver pela primeira vez uma função, tornando-a consciente, trazendo-a do inconsciente coletivo para utilizá-la para seus propósitos.  O momento em que ele pôde dizer que tinha um objetivo ou vontade de fazer mais e mais marcou o surgimento da separação dessa função do inconsciente. O mesmo ocorre com o indivíduo, em uma escala menor, desde o seu nascimento até a adolescência ou a vida adulta. Ele separa uma função específica como principal para lidar com os fatores externos e internos de sua vida. Entretanto, se o sujeito desenvolve apenas uma função, fica ciente de que pode fazer algo, mas estará sempre em uma condição psicológica muito desfavorável, pois ainda existem três outras funções no inconsciente - uma condição esmagadora. 
     Se adquire uma segunda função, torna-se mais completo, ganha mais equilíbrio e adquire uma espécie de consciência filosófica. Pode conseguir se conscientizar de que é um ser psicológico. Poderá dizer: "quero fazer isso OU aquilo"; ou então: "vejo o quão tolo isto é", se referindo a si mesmo. Com uma só função isso é impossível. A aquisição de duas funções funciona como um espelho, com o qual reflete os assuntos a que dá atenção. A mão esquerda pode julgar a direita, e então ele ganha um ponto de vista superior. A terceira função traz um segundo espelho. Ele diz: "Vejo esse cara aqui que vê aquele fulano, do qual percebo as ideias e que chega a uma conclusão errada". Com a quarta função haveria uma carga tremenda de consciência que possibilitaria o acompanhamento dos bastidores de si mesmo. É provável que haja um limite para se alcançar isso, mas pelo menos teoricamente existe essa possibilidade. 
     Um indivíduo que desenvolvesse as quatro funções seria fabulosamente superior às condições em que se situa, possuindo uma liberdade quase ilimitada, comparável à liberdade divina, já que Deus é a primeira e a última condição. À medida em que as funções são assimiladas, o que projetávamos de nosso inconsciente para o mundo é recolhido para dentro de nós mesmos, pois reconhecemos essas partes antes separadas de nós. Isso nos retira do homem inferior, fazendo-nos adquirir uma espécie de divindade. Quanto mais espelhos adquire, mais divino se torna, assim como mais inflado também, idêntico ao próximo espelho. Mais longe fica de sua sombra, de tudo o que é baixo e fraco, talvez sujo, que se encontra ainda banhado nas águas originais, coberto pelo lodo primitivo. Vamos para mais e mais longe de tudo isso com a aquisição progressiva de conhecimento. Então um fato peculiar acontece.
Quanto mais nós nos afastamos de nossas raízes, mais nos identificamos com os espelhos, mais ineficientes nos tornamos, porque o espelho não tem pés, não tem mãos. Ele é completa consciência, talvez, ainda sem efeito, exceto o efeito que nós podemos dar a ele. O que está dentro significa extremamente pouco. Eu posso dizer a uma pessoa que coisas são isso e aquilo, mas ela simplesmente não pode transformar em realidade, porque o discernimento conta pouco a não ser que lhe sejam dados mãos e pés. Quanto mais longe vamos, menos eficientes somos. (JUNG, 2014, p. 573)
     Essa condição de se viver cada vez mais no espelhamento provoca a nossa retirada da substância, o que quer que isso possa significar. Essa tremenda consciência nos mantém fora da existência, e não se saberia dizer se estamos vivos ou mortos. Porém, quando olhamos algo no espelho, percebemos que não o possuímos, pois podemos apenas pegar sua imagem, já que somos removidos delas. A realidade parece ser um tipo de ilusão. Existe aqui uma forte semelhança com o Nirvana oriental. 
     Talvez essa seja uma das bases da física quântica, pois com o desenvolvimento do pensamento, após a Revolução Francesa, a matéria tende a se tornar espírito. Pensamento é matéria e matéria é pensamento - não existe mais diferença. Todo o conceito de matéria está se dissolvendo em abstrações.
     Penso que, ao nível de civilização, ainda estamos longe de atingirmos o desenvolvimento psicológico esboçado aqui por Jung (2014). Entretanto, no estágio atual conseguimos alcançar como que uma espécie de simulação desse tipo de consciência ampliada por meio dos recursos de disponibilidade de informação e de tecnologia. Podemos nos "espelhar" em vários pontos do planeta, sem estarmos realmente lá, assim como muitas outras pessoas se espelham em nossos lares, no conforto dos nossos assentos. Podemos executar atos que antes demandavam muita energia, como pagamento de contas e compras, com um simples clique do mouse. Os lugares, pessoas, períodos de tempo e as coisas agora se espelham na tela à nossa frente, e esses reflexos influenciam a substância lá fora, ao contrário do efeito da assimilação das funções aludido acima. Estamos com o mesmo nível de consciência de nossos avós, mas com a vantagem de podermos estendê-la no espaço e no tempo, com uma carga de informação muito maior. Isso não parece ser bom nem mau, mas capaz de realizar uma homogeneidade de nível de conhecimento, de maneira a generalizá-lo, tornando-o disponível. As coisas e as pessoas estão se abstraindo no virtual e se dissolvendo nele sem que alcancemos uma consciência maior. Isso poderia ser mais desastroso não fosse a generalização do conhecimento. Espero que assim seja.


REFERÊNCIAS

JUNG, Carl G. Seminários sobre análise de sonhos. Petrópolis: Vozes, 2014. p. 567-577.
______. Tipos psicológicos. Petrópolis: Vozes, 1991.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

A solidão e o trabalho com o inconsciente

     A solidão pode ser classificada em física, mental e espiritual. A primeira consiste em simplesmente retirar-se para uma floresta ou lugar deserto e não contar com a presença de pessoas. A segunda, no fato de não se poder levar em conta a presença dos amigos e familiares no próprio ambiente, ou até mesmo um estranho, para compartilhar um sofrimento, uma dor pessoal. A pessoa sente-se sozinha. A solidão espiritual é normalmente buscada por pessoas que procuram uma espiritualidade mais elevada, tais como monges e eremitas. Interessante é que nas tradições de muitos povos constam vários procedimentos de cautela com relação a pessoas que ficaram isoladas durante algum tempo. Qual seria a razão? (VON FRANZ, 1985, p. 194).
     Ocorre que, no dia a dia, as pessoas usam sua energia (a libido) disponível em suas relações com o meio ambiente. Na solidão essa energia, uma vez não empregada, é represada internamente e ativa o inconsciente, reforçando-o. A solidão pode fazer com que o indivíduo tenha seu inconsciente ativado, o que pode ocasionar a possessão por forças nocivas, ou encontre uma realização interior maior. Entretanto, mesmo neste último caso, a tendência é que, de início, haja sempre uma espécie de “possessão pelo mal”. Os que procuravam a santidade no passado inicialmente eram atacados por “demônios”, já que a energia disponibilizada pela solidão ativa primeiro os complexos autônomos do inconsciente. Assim que estes são resolvidos os frutos da solidão passam a ser positivos. Isso fica bem explícito nos diversos contos e casos expostos por Marie Louise Von-Franz (1985, p. 194-195), donde foi extraída a maior parte do presente texto.
     A própria autora, motivada por Jung, descreve como fez um experimento consigo mesma, se fechando em uma cabana nas montanhas, na neve. Uma típica introvertida, de início Von Franz (1985, p. 195) se sentiu muito feliz, se ocupando o dia inteiro com a cozinha e com o que iria comer no dia seguinte, o que evitou seu maior contato com o inconsciente. Além disso, ela esquiava, ia uma vez ao dia a uma vila para comprar pão e leite e travar certo contato com as pessoas, o que anulava o efeito do isolamento. Ela então decidiu reforçá-lo: passou a ingerir comida enlatada para não ir à vila, deixou de esquiar e passou a cozinhar rapidamente comidas “sem graça”, como macarrão e algo assim, de modo a não gastar sua energia. O tempo começou a se arrastar  muito lentamente, e cada minuto se tornou uma eternidade. A situação foi piorando, mas ela aguentou.
Comecei a imaginar que assaltantes costumavam entrar em tais cabanas, principalmente prisioneiros fugitivos à procura de armas ou roupas civis, caso ainda estivessem com o uniforme listrado. Essa fantasia tomou conta de mim por completo e, sem perceber que era justamente isso o que procurava, fiquei tomada pelo pânico. Peguei o machado de cortar lenha, coloquei-o ao lado da cama e fiquei acordada, tentando decidir se teria coragem de golpear tal homem na cabeça, se ele aparecesse, e, assim, não consegui dormir. Aí tive que ir ao banheiro que ficava fora, na floresta coberta de neve, e no meio da noite vesti as calças de esqui e saí pelo escuro. De repente algo caiu atrás de mim, saí correndo, caí de cara na neve e voltei ofegante. Daí percebi que era apenas um pouco de neve que tinha caído de uma árvore, mas com o coração aos pulos e o machado ao lado da cama, não consegui dormir. Na manhã seguinte achei que bastava e que devia voltar para casa, […] (VON FRANZ, 1985, p. 196)
Marie Louise Von Franz
     Então, de repente, ela percebeu que esse era o efeito que estava procurando: o inconsciente tinha sido ativado com a energia em excesso, soltando seus demônios... Ela resolveu fazer imaginação ativa (o conceito encontra-se em Vocabulário) com o assaltante, uma interação com essa figura interior através da imaginação, e se sentiu completamente bem e segura. Toda vez que a figura surgia em sua imaginação, Von Franz interagia com ela e a paz voltava. Antes de praticar a imaginação ativa, ela estava a caminho de ser sutilmente possuída.
     Essa experiência a ensinou que a solidão dá vida ao que existe no inconsciente. E se o indivíduo não souber como lidar com esse material, este surgirá primeiro de forma projetada. No seu caso a projeção veio sob a forma da ideia de um criminoso. Mas se ela estivesse em uma civilização que ainda acreditasse em demônios, ela poderia ter pensado que o Curupira havia chegado, dando nome ao conteúdo inconsciente. A maioria das pessoas não é capaz de lidar com situações desse tipo por muito tempo, recorrendo à companhia de outras para se proteger.
     Entretanto, a solidão não apenas constela o mal no interior do indivíduo, como também exteriormente. Quando um indivíduo vive sozinho, distante de uma comunidade humana por muito tempo, as pessoas começam a projetar a sombra delas sobre ele. Mesmo durante viagens prolongadas, quando o laço de afeição e de sentimentos se afrouxa, as pessoas deixadas para trás podem começar a tecer teias das mais incríveis ideias negativas a respeito daquela que as deixou. Porém, quando o que se afastou volta, o contato e o calor humano do momento dissipam essas nuvens de projeção. Assim, quem vive sozinho atrai o mal de sua própria natureza, mas também atrai projeções. Por isso os solitários dão a impressão de serem estranhos e, se ocorre algo desagradável, normalmente se pensava que a culpa era deles. Em tempos antigos isso era muito mais frequente. O estranho era considerado errado e perigoso, trazendo uma atmosfera de doença, de morte e de transtorno nas relações humanas. Por isso era preciso se aproximar dele com várias precauções. Hoje em dia, o indivíduo volta à comunidade e argumenta, se defende ou explica o próprio comportamento, o que dissipa as “nuvens negras”. Mas quando não conseguem compreender alguém, as pessoas projetam seu próprio mal sobre elas (VON FRANZ, 1985, p. 199).
     Entretanto, a ativação do inconsciente não depende apenas do isolamento, seja ele físico, psicológico ou espiritual. Certos processos psicológicos podem ativá-lo, o que produz forte impacto na consciência, fazendo o indivíduo se sentir ameaçado ou, no mínimo, desorientado. Em casos mais graves, o inconsciente pode tomar o lugar da realidade, o que é patológico (JUNG, 1991a, §595).
     Nesse momento, valem algumas reflexões sobre as implicações dos fatos demonstrados até este ponto. Constatou-se que, quando o inconsciente é ativado pelo isolamento, este ocorre dependendo do grau de isolamento e de represamento da energia à disposição do eu. Entretanto, pode-se imaginar que o inconsciente pode ser mais ou menos intensamente ativado a depender do nível de energia que possui, isto é, se ele já possui uma atividade intensa, um isolamento brando ou por pequeno período poderá fazê-lo mais veemente com relativa facilidade. Isso explica porque as crianças, que já possuem um contato mais direto e vigoroso com o inconsciente, são assaltadas por medos despertados por fantasias, quando ficam por pouco tempo sozinhas. Explica também porque adolescentes e mesmo adultos são assaltados por medos inexplicáveis em determinadas épocas, insistindo em dormir com a luz acesa, principalmente sob isolamento. Nessa categoria de medos irracionais pode-se citar os medos de morte, de acidente, de fantasmas, de criminosos, de manifestações meteorológicas inofensivas, etc.
     Por outro lado, é interessante observar como os indivíduos deprimidos insistem, naturalmente, em permanecer solitários. Essa condição apenas faz aumentar os sentimentos de angústia, medo e tristeza intensos que compõem a depressão. A solidão como que amplifica os sintomas, talvez em uma tentativa de intensificá-los para se fazerem notar pelo sujeito, aumentando a consciência da situação interna. Aliás, muitos psicoterapeutas recorrem a técnicas de amplificação de sintomas com o fito de produzir insights curativos. O exemplo mais claro é Mindell (1989), que pede uma descrição pormenorizada do sintoma e procura produzi-lo no cliente com a manipulação corporal deste pelo terapeuta ou por si mesmo.
     Tudo na vida possui aspectos positivos e negativos, dependendo da situação, do contexto. Não é diferente com a solidão. Se o estado de alguém é desesperador, é terapêutico se buscar a companhia de outras pessoas, embora possa ainda haver exceções. Já se existe a necessidade de autoconhecimento e de mudança, um período mais ou menos longo de solidão pode fazer muito bem. O Zaratustra de Nietzsche (2010) pode fechar aqui com uma boa reflexão:
Solitário, tu segues o caminho que leva a ti próprio! E teu caminho passa diante de ti e de teus sete demônios.
Serás herege para ti mesmo, serás feiticeiro, adivinho, louco, incrédulo, ímpio e malvado.
É mister que queiras consumir-te em tua própria chama. Como renascerias, se ainda não te reduziste em cinzas?
Solitário, segues o caminho do criador: um deus queres criar de teus sete demônios!

domingo, 10 de agosto de 2014

Planeta dos Macacos: os animais!

Malcolm e Cesar
     Várias apreciações do filme “Planeta dos Macacos: o Confronto” apontam que o filme aborda várias questões, desde o preconceito até considerações políticas. Penso que o principal tema do filme é de cunho ecológico em associação ao preconceito.
     Existem dois ou três momentos no filme em que Dreyfus, o líder dos humanos, justifica a matança dos macacos como forma de privilegiar a sobrevivência da raça humana. Mais de uma vez ele afirma: “Eles são animais!”. Sim, mas este um argumento suficiente? O desenrolar do filme demonstra que não. O preconceito aí já está bem explícito, não necessitando de maiores comentários. No entanto, o que dizer do preconceito que valoriza os animais porque estes falam? No filme, o espanto maior, inclusive de toda a população de humanos, é com relação à capacidade de articular palavras. Isso não seria mais admirável do que um papagaio fazê-lo, se os macacos também não raciocinassem, contextualizassem sua fala e demonstrassem, além de tudo, consciência de si. Um animal consciente  continua sendo um animal? Ora, o homem é um “animal racional”, e como tal se isola de todos os outros, rotulados como irracionais. Estranho, porém, é a expressão atribuída aos homens, que destaca, excepcionalmente, a razão. Por que não chamá-lo de “animal consciente”? Afinal, ele é o único que possui um intelecto plenamente desenvolvido: ele pensa. E é esse pensar que torna possível ao homem, segundo Descartes, tomar conhecimento de sua existência. O intelecto, permite definir e conceituar objetos e pessoas, tornando possível definir-se, agregando muito mais consciência, ou autoconsciência. Já no sentimento, por exemplo, talvez o homem não se diferencie muito mais de certas espécies de animais...
Dreyfus
     Marcante também é o momento em que o macaco Koba lembra a Cesar o que este alegou quando brigaram anteriormente: “macaco não mata macaco”, com o fito de perdoá-lo. O líder dos macacos então afirma que Koba não é macaco, e solta-o para a morte. Cesar se refere à crueldade do ex-amigo, que o trai e comete vários crimes contra os companheiros, e não é mais digno de ser considerado um “macaco”, no sentido de não ser um símio íntegro. Os homens também costumam usar a mesma expressão para com os semelhantes genocidas, por exemplo. Na verdade, quando se usa expressões como “fulano é um monstro” ou “ele não é um ser humano” se está querendo dizer que a pessoa em questão entra em choque com os outros seres. É como se ela se opusesse à existência e à expressão de outros sujeitos. Logo, é lógico que estes queiram excluir a pessoa em foco da categoria que designa todos os seres abarcados. Assim, o psicopata cruel, que objetiva apenas o poder em detrimento da existência e da liberdade dos outros, seria um ser à parte, e não mereceria uma segunda chance, o mérito da confiança. É claro que essa atitude não corresponde a uma postura íntegra, abrangente e compreensiva em relação a todos os aspectos da existência. Esse pensamento é a base da pena de morte. Basta, então, assegurar que macacos ou humanos como Koba tenham sua liberdade restringida para que não possam mais agir em detrimento dos demais. Mas Cesar não tinha alternativa, pois a qualquer momento o ex-amigo poderia montar outra armadilha fatal para si, sua família ou sua tribo. Prendê-lo seria se comportar como os humanos que os aprisionavam em jaulas, e esse procedimento os macacos aparentemente rejeitavam. Cesar agiu bem, como líder sábio, bom avaliador dos prós e dos contras, a balança do sentimento.
Koba
     Um aspecto estranho no filme, assim como nas primeiras versões, é ver os seres humanos aprisionados pelos macacos. É uma inversão impressionante! Aí os humanos tomaram o lugar dos animais. Suponho que compartilho essa sensação de estranheza com muitos outros espectadores. Seria ela causada pelo costume de ver os animais presos? Ou de vê-los suscetíveis de maus tratos? Ou será que ver o nosso lado animal simbolizado no filme nos causa um certo desconforto em perceber como podemos ter nosso lado “racional”, ou quem sabe “humano”, submetido a fatores psíquicos mantidos fortemente “sob rédea”. Pode ser que cada um desses argumentos tenha seu papel nesse assombro.
     O segundo filme do Planeta dos Macacos consegue prender a atenção do começo ao fim. Desde o primeiro, nos acostumamos a ser conduzidos paulatinamente à conclusão. Tudo fica muito bem explicado e explícito. Não precisamos deduzir ou imaginar muita coisa, mas ele nos faz questionar o estabelecido, o instituído, assim como nossos hábitos científicos, ecológicos, familiares e sociais. Não conseguimos deixar de perguntar, mais uma vez: quem somos nós? E talvez indaguemos, com maior correção: “quem mais somos nós?”, deixando espaço extra para outras possibilidades, algumas apontadas pelo filme.

domingo, 4 de maio de 2014

A psicologia por trás do Homem-Aranha

     A trilogia do Homem-Aranha, de Sam Raimi, assim como a nova série “O Espetacular Homem-Aranha”, tratam do processo de amadurecimento de Peter Parker, e também da nossa individuação, enquanto heróis da nossa própria vida. O primeiro filme trata da ferida que dá origem ao herói: a culpa pela morte do tio Ben. O segundo sobre a dúvida se ele deve continuar sendo um herói ou não. O terceiro resolve essa dúvida, pois Peter se identifica com seu papel de herói, o que constela sua sombra: Venon, que terá de confrontar para o bem de sua integridade psíquica. A nova série já desloca a ferida do herói para o abandono dos pais, fato que irá repercutir em todos os filmes, principalmente na insegurança e no sentimento de exclusão de Peter. Uma análise mais completa dessa série só será possível ao seu término, para se encadear um filme ao outro e se detectar para onde a aventura está caminhando.
No filme 'O espetacular Homem-Aranha', Peter Parker
ajuda o cientista Curt Connors a elucidar sequência
lógica incompleta há anos.
     Peter, psicologicamente, é um pensador, mas tem que lidar com seus sentimentos, conteúdos opostos às ideias. Enquanto aranha, ele “balança” de um oposto psíquico para outro, a fim de alcançar a condição humana de equilíbrio, sem se identificar com um ou outro, uma vez que ambos fazem parte da vida e da psique. O azul associa-se à tranquilidade, à pureza, à exatidão, ao frio, à imaterialidade e à espiritualidade. O vermelho, se liga à vida, aos instintos, à vigilância, à inquietude. Identificar-se com um deles, sejam eles quais forem, é querer tornar-se um deus, resolver tudo com uma fórmula só, como num “passe de mágica”, o que nos torna impiedosos para com aqueles que se identificam com o lado oposto. Isso é bem ilustrado no Homem-Aranha 3, na forma como é cruel com Mary Jane e seu amigo. Por isso a aranha, que possui oito patas, faz uma mandala no peito do herói, um símbolo de totalidade, de abrangência dos opostos.
     O que ajuda Parker a resistir à tentação a se tornar uma espécie de deus é já ter estado do “outro lado”, já ter sido um fraco, e por isso conhece o valor da força. Ele sofria bullying na faculdade, e é provável que sofrera também nos estágios escolares anteriores. Mas é justamente essa vivência que o impede de cair na tentação do poder, e usá-lo contra os demais. Sua sombra é o herói, o homem poderoso, e sua tarefa é integrá-la à sua vida e tornar-se um homem íntegro.
     No primeiro filme, Peter assume a persona de herói, simbolizada pelo uniforme, e se identifica com ela. No segundo, sente necessidade de reprimir a vida de herói, pois acabou deixando outras necessidades de lado, como a paixão por Mary Jane. Por isso perde seus poderes e fica novamente míope. Mas a chave para saber lidar com a vida de herói e com as necessidades humanas é a disciplina, e não a repressão. Esta é usada devido ao medo de usar compulsivamente seus poderes. Isso só ocorre quando não se está consciente de possuir as qualidades opostas, devido à repressão de uma das polaridades. Porém, o Aranha só vai descobrir isso no 3º filme, quando descobre o quanto pode ser mau.
Os vilões do Homem-Aranha nos quadrinhos.
     Os vilões que o Aranha enfrenta representam obstáculos em sua psique que ele precisa superar. Todos eles podem ser classificados em duas categorias: ou são cientistas, ou são objeto/produtos de estudo científico avançado. De alguma forma estão relacionados à atividade intelectual, e acabam por sucumbir ao poder. Os vilões dos dois primeiros filmes e de “O Espetacular Homem-Aranha” são admiradores da performance intelectual de Peter, como que denunciando o perigo de se fixar apenas em uma função ou qualidade psíquica. As quatro funções psíquicas (pensamento e sentimento, sensação e intuição) são formas de orientação da consciência para adaptação à vida. Elas formam pares em oposição, e não podem se desenvolver sem prejuízo da função oposta, pois uma interfere no funcionamento da outra. Por isso, quando o sentimento se desenvolve, a função intelectual não progride, e vice-versa. As funções que não progridem. alcançam uma feição inferior, primitiva. Caem totalmente ou em parte no inconsciente e a partir daí operam através do indivíduo de forma involuntária, podendo ocasionar acidentes e todo tipo de erro. Isso está explicado de maneira mais extensa na monografia “A intuição e a sensação em dependentes de droga na perspectiva da psicologia analítica”, onde os opostos intuição e sensação são explicados com mais propriedade. Como Peter desenvolveu mais a função pensamento, e é do tipo psicológico intelectual, mas ao mesmo tempo sente necessidade de evoluir seu sentimento, pois percebe que não consegue lidar muito bem com pessoas caras em sua vida. Harry e Marko parecem ser do tipo sentimento, e são os únicos vilões que Peter perdoa.  
   Já os demais (Norman, Otto, Curt e Max) morrem no final, pois representam justamente o uso excessivo do intelecto que precisa findar na vida de Peter. É como se estes fossem personificações de sua função intelectual que precisava de maior objetivação para que ele pudesse percebê-la melhor para se aproximar mais da função oposta.
     A título de conclusão, é pertinente fazer um paralelo das aventuras do Homem-Aranha com a estrutura das sagas dos heróis em geral. O herói quase sempre é engolido pelo monstro na batalha decisiva, o que ocorre com Peter quando é “engolido” pelo Simbionte, que toma seu corpo com o traje negro. Isso ocorre com Jonas, na Bíblia. É no interior da baleia que este começa a ajustar contas com ela, que nada na direção do nascer do sol (JUNG, 1991d, §160). No caso, o Aranha ajustou contas com a sombra coletiva na igreja, e depois ao explodi-la, quando o sol desponta. Só então Peter perdoa o Homem-Areia, uma alusão ao seu renascimento.

(Leia mais a respeito: "A sombra do Homem-Aranha")

sábado, 18 de janeiro de 2014

Nossos conflitos interiores

     Ao contrário do que passa o convívio social, nós não somos apenas uma pessoa. Quem já não teve pensamentos, sentimentos, lembranças e emoções que não queria ter, que limitam nosso bem estar? Quem nunca se arrependeu de agir de certa maneira? Quem não tem ou nunca teve vícios e certos tipos de compulsões? Ora, se fôssemos de fato alguém, seríamos apenas quem somos, mas o fato é que somos várias pessoas, somos alguéns.
     E como temos outros convivendo com o que pensamos ser apenas eu, sempre passamos por conflitos. Queremos ser equilibrados, competentes, pontuais, responsáveis, esforçados, bonitos, fortes, inteligentes, carismáticos... Qualidades dignas de um herói. Queremos ser o herói da nossa vida e de onde vivemos. Mas, para isso, teríamos que ser apenas um. Aliás, o esforço heroico dos mitos e filmes consiste na aventura de se procurar vencer todos os obstáculos e ameaças a essa unidade, tais como o desequilíbrio, a incompetência, o atraso, a preguiça, a feiura, a burrice, etc. Porém, mal sabemos que a unidade que podemos alcançar consiste menos em não ser contraditório do que estar consciente da nossa multiplicidade interior. Quando admitimos que somos vários, damos o primeiro passo para essa mítica e heroica unidade, pois aí podemos perceber os outros em nós e confrontá-los. 
     No livro “Viver a vida não vivida”, Robert A. Johnson (2010, p. 201) afirma existirem dois tipos de opostos: os opostos contraditórios, que podem se cancelar mutuamente – direita/esquerda, embaixo/acima, etc., e os opostos contrários – claro/escuro, saúde/doença, etc. Os primeiros não podem se conciliar, pois a oposição aí é absoluta. Já os contrários comportam aspectos que, apesar de se oporem, se misturam em transição de um para o outro, pois fazem parte de um processo dinâmico, como o dia claro, o nublado, a tempestade e a noite, por exemplo. Johnson menciona a “velha ética” como um sistema de valores que insiste na oposição contraditória do bem e do mal, e não na sua “contrariedade”. Por isso, os valores considerados “maus” são reprimidos logo na origem, na infância, o que também gera o mal humor crônico, resultado do total culto à virtude.
De acordo com o pensamento em branco e preto (opostos contraditórios), precisamos escolher ou isto ou aquilo. Somos tentados a seguir esse tipo de pensamento quando somos confrontados com paradoxos. Mas o paradoxo é um poço artesiano de significado do qual precisamos muito em nosso mundo moderno. A contradição é estática, ao passo que o paradoxo abre espaço para a graça e o mistério. (JOHNSON, 2010, p. 202)
     Abordar o paradoxo, continua o autor, é viver em um nível de consciência mais ampla, aberta para a vida intensa e a liberdade. O sofrimento sempre ocorre quando separamos os opostos. Um exemplo típico é a separação diversão/trabalho. Se apenas queremos nos divertir, consideramo-nos irresponsáveis. Se só trabalhamos, a vida torna-se amarga. Ora, isso ocorre porque, ao separar as qualidades em nós, somos separados com elas, tornamo-nos os próprios opostos, pois identificamo-nos com um e negamos o outro. Entretanto, com o tempo, sem o outro sentimo-nos vazios, pois queremos apenas ser uma parte do todo. Esse “vazio” é justamente a ausência do oposto que reprimimos. E isso me fez lembrar de Lao Tsé em seu livro “Tao te ching”: “Modelai o barro para fazer um jarro. Recortai no espaço vazio das paredes portas e janelas a fim de que um quarto possa ser usado. Dessa forma o ser produz o útil mas é o não-ser que o torna eficaz.” O “não ser” é o que não somos, o que rejeitamos em nós, nossa sombra. É como se precisássemos de um fio, mas só quiséssemos tocar em uma ponta: nunca conseguiremos utilizar o fio todo para não nos aproximar da ponta oposta. Mas só o faremos com sucesso, eficazmente, após aceitarmos as duas pontas. Assim é a vida – nunca conseguiremos lidar com suas diferentes situações, de forma completa e eficaz, se aceitamos só uma parte de nossas ferramentas (os opostos).
     Portanto, o conflito surge da nossa atitude parcial, lateral e unívoca. Queremos que uma parte de nós viva e a outra morra, mas esquecemos que nesta também corre sangue e impulsos nervosos, que também é corpo e alma.


(Leia mais a respeito: "Dorian Gray e a sombra na atualidade")

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

O pensamento positivo e a autoajuda

     A crença no pensamento positivo só pode ser comparada à crença no poder mágico das palavras, na onipotência do verbo. Talvez a exaltação quase "mágica" do pensamento se deva às proezas tecnológicas do nosso tempo, que ocorrem justamente devido à articulação das ideias, ao raciocínio e ao acúmulo dos pensamentos científicos por meio dos livros e dos meios digitais.
     Lembro-me de ler "O poder do subconsciente", de Joseph Murphy, que explica como a repetição e crença em certo "pensamento positivo" pode se impor ao "subconsciente" e produzir condições e fatores que poderiam mudar a vida de alguém. Apesar disso estar ligado à magia do verbo, prefiro não criticar crença alguma, mas apenas constatar sua existência. Além disso, a verdade possui diversos níveis e pontos de vista. A postura mais apropriada em relação a qualquer coisa é a conjunção de diversas perspectivas, mesmo que contraditórias, pois essa reunião panorâmica de um assunto se aproxima mais de uma totalidade de percepções e, por conseguinte, da realidade, do que uma ideia isolada a respeito.
     Porém, a crença nesse poder mágico do pensamento e sua atitude pode produzir uma ocorrência psicológica que pode acarretar vários prejuízos. Crer que um pensamento positivo pode se impor sobre uma ideia oposta e "negativa" favorece uma postura de repressão. E praticar qualquer método afim a essa crença é repressão, psicologicamente. Entretanto, passa uma aparência totalmente travestida de boas intenções, como se a ideia negativa nada fosse, ou pudesse ter sua força totalmente reduzida simplesmente pela repetição da ideia oposta. Os livros de autoajuda que recorrem a esse expediente costumam também explicar a falta de fundamento do pensamento negativo, com o propósito de resignificá-lo. A programação neurolinguística recorre a esse processo. Não nego também que isso possa ser vantajoso em curto espaço de tempo, para se conseguir sucesso em certas tarefas e para certos tipos psicológicos. Afinal, não posso contradizer o que afirmei acima acerca da validade de diferentes pontos de vista. Mas farei uma proposta inovadora e alternativa a essa crença e prática.
     Certos clientes ficavam abismados quando relatavam o quanto haviam tentado se opor a determinado pensamento ou sentimento, o bom resultado temporário dessa postura, e a inevitável volta ao ponto inicial: a antiga repetição da afirmativa negativa martelando em sua cabeça contra a sua vontade. Então era proposta uma atitude totalmente oposta. "Você já tentou, ao invés de ficar insistindo em se opor a essa ideia, ir ao encontro dela? Quantas vezes já tentou ir contra esse pensamento "negativo" sem sucesso? Por que não fazer o oposto?" Isso os surpreendia ainda mais. "Afinal, o que essa ideia tão desagradável quer de você? O que ela quer dizer com isso? Tudo bem, você pode até não concordar com ela, mas o que ela tem a dizer?"
   Percebo os "pensamentos negativos" como crianças que ficam perturbando os adultos, fazendo traquinagens, "artes", até que estes deem atenção. Você já se voltou a essas opiniões negativas? Afinal, elas são como "pessoinhas", ou melhor, crianças vivendo em nosso interior. Em certos casos, quando ouvimos o que têm a dizer, podemos percebê-las como adultos de cabeça feita ou idosos que têm muito a nos ensinar. Se visualizarmos esses conteúdos "maus" como pessoas internas, perceberemos também que não gostamos delas. Devem ser invejosas ou maldosas, gente sem crédito... Mas o que elas nos invejam? Por que querem nosso mal? O que elas querem dizer?
     Há uma citação de Jung, no livro "Tipos psicológicos", que pode esclarecer nossa atitude a esse respeito:
Que eu faça um mendigo sentar-se à minha mesa, que eu perdoe aquele que me ofende e me esforce por amar - inclusive o meu inimigo - em nome de Cristo, tudo isto, naturalmente, não deixa de ser uma grande virtude. O que faço ao menor dos meus irmãos é ao próprio Cristo que faço. Mas, o que acontecerá, se descubro, porventura, que o menor, o mais miserável de todos, o mais pobre dos mendigos, o mais insolente dos meus caluniadores, o meu inimigo, reside dentro de mim, sou eu mesmo, e precisa da esmola da minha bondade, e que eu mesmo sou o inimigo que é necessário amar? (JUNG, 1991e, §520)
     Quem é esse dentro de mim que fica a me importunar? Que mendiga minha atenção? Que me calunia e se faz de meu inimigo? Estarei sendo ético com ele? Estarei sendo "cristão"? Se não dou atenção a essa parte de mim que exige minha atenção constante, como posso querer fazer o mesmo com meus parentes ou com o meu "próximo"? Prefiro terminar com essas questões. Elas podem transformar mais do que certas respostas.

(Leia mais a respeito: "Imaginação ativa ou terapia com o Sr. Inconsciente")