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domingo, 12 de março de 2017

Orgulho - o desprezo de mim mesmo

     Um dos maiores erros que o ser humano pode cometer, principalmente porque dele decorrem vários outros erros e complicações que podem levar, inclusive, ao fim da espécie, é não se aceitar como é. Não se aceitar, não se amar, promove uma cisão na personalidade. Se rejeito quem sou, logo existem duas personalidades em mim: quem despreza e quem é desprezado. E geralmente utilizamos de um artifício ainda mais ardiloso para não nos encontrarmos interiormente com aquela "persona non grata", pessoa indesejável. Nos recusamos a percebê-la, a escondemos de nós mesmos, fingimos que nunca a conhecemos.
     Ao mesmo tempo que repelimos essa parte sombria, idealizamos quem gostaríamos de ser, almejamos ser quem não somos. Isso se encontra bem expresso na trama da queda de Lúcifer. Este desejava ser como Deus, almejava substituí-lo. Deus percebeu o que ocorria e o expulsou do céu. O mesmo tema se desenrola de novo no Jardim do Éden, com a expulsão do casal primordial por ter caído (isso mesmo!) na tentação de querer ser como Deus, que sabe diferenciar o bem do mal. Este é o conhecido "pecado original". Entretanto, a religião reconhece apenas o aspecto mais superficial, de o homem, inicialmente, querer se igualar ao divino. Psicologicamente, porém, um dos pontos de vista menos explorados é o fato de haver uma recusa do homem e do anjo da luz em se aceitar como são - o início da divisão interna do homem. Assim, de um lado permanece a unidade original, Deus; do outro lado, a parte que é expulsa do paraíso - o homem e Satanás. A unidade, assim, representa o estado inconsciente primitivo e potencial; já a dualidade significa a consciência, o conhecimento do caráter duplo de tudo o que existe: o bem e o mal, o negativo e o positivo, o agradável e o desagradável, etc. A duplicidade aponta para o jogo de luz/sombra, por meio do qual os elementos se tornam perceptíveis. Luz sem sombra ofusca; sombra sem luz, torna tudo obscuro.
     O Diabo é conhecido no meio cristão como o "pai da mentira". Do grego, DIA- (através) + BALLEIN (jogar, lançar, atirar), diaballein ou diabo significaria "jogar através", "lançar através", isto é, dividir, separar, guerrear, conflitar. Logo, essa figura rejeita a unidade, que é divina, considerada "verdade" e de posse do paraíso. Já a palavra "símbolo" deriva de SYN- (junto) + BALLEIN (lançar, jogar, atirar), indicando "o que se lança junto", "jogar junto", com o sentido de comportar, no mínimo, dois elementos diferentes em união. O símbolo possui uma parte clara, conhecida, que é a figura pela qual o percebemos; ao mesmo tempo, contém outra parte, desconhecida, o seu sentido, da qual somos inconscientes. A poesia, os textos religiosos, os mitos, os contos de fada, os sonhos, as visões e as fantasias são repletos de símbolos. Portanto, se o símbolo, pelo menos etimologicamente, se opõe ao Diabo, indicaria este tudo o que é literal, claro e plenamente expresso? Penso que sim.
     O sentido do Diabo seria a tendência que todos temos em nos identificar com apenas um dos extremos, ser parcial, um polo apenas. Não é possível a identificação com os dois aspectos opostos de um mesmo elemento, pois se dou o mesmo valor aos dois lados, é sinal de que me distancio de ambos. Desse modo, não sou possuído pelo vício ou pelo anseio do prazer do objeto ou pessoa. É interessante, nesse sentido, o fato de que os dependentes químicos tendem a perder, com o tempo, a noção da linguagem simbólica, e que, na medida que a recuperam ou a desenvolvem, conseguem se distanciar das drogas. O mesmo é válido para os psicóticos, uma vez que se encontram muito prejudicados em perceber seus conteúdos internos de forma simbólica, o que os leva a tratá-los como literais, isto é, reais, projetando-os no mundo exterior. Esta explanação sobre o símbolo explica porque o desenvolvimento do pensamento científico isoladamente, tal qual é amplamente divulgado hoje em dia, é nocivo psicologicamente. A ciência pode transformar o indivíduo em demônio de si mesmo e de seus semelhantes.
     Com a tentação e a queda do homem veio o trabalho, a dor e a morte. Isso ocorreu porque, para haver trabalho a condição necessária é a oposição de dois polos, uma diferença de potencial: positivo e negativo (corrente elétrica), baixo e alto (caixa d'água), expansão e contração (motor), etc. A dor e a morte acompanham porque, com a identificação a um dos opostos, de tempos em tempos somos levados, involuntariamente, ao polo oposto, pois este aflora assim que a identificação afrouxa. Isto ocorre principalmente quando estamos cansados, estressados ou de alguma maneira incomodados. A força do nosso eu para deixar os conteúdos indesejados à distância diminui. Esses aspectos, então, vêm à tona. Com isso, dolorosa, apesar de temporariamente, mudamos, "morremos" para quem éramos. Assim que nos recuperamos, voltamos novamente à posição anterior, tradicional, segura. Esse processo ocorre continuamente até que aprendamos a nos distanciar dos extremos, alcançando e trilhando o caminho do meio. O Budismo aborda essa questão pela via do desejo: precisamos parar de desejar, uma vez que isso só leva ao sofrimento.
     É curioso que, em geral, associa-se a atitude do Diabo ao orgulho próprio. Seria, portanto, o orgulho uma forma de atitude extrema? Sim, porque o indivíduo prioriza, na imagem de si mesmo, o ideal coletivo ou particular, sem levar em conta sua personalidade total, que comporta também os aspectos opostos. Isso fere a unidade original, a totalidade psíquica, representada por Deus, uma das imagens do arquétipo do Si-mesmo. Ele tenta tomar o todo pela parte, generalizar para si o que é somente uma pequena porção. Isso desequilibra o estado de harmonia psíquica, que pode levar a sérias patologias. A própria Bíblia exemplifica esses casos em um episódio do livro de Daniel (clique aqui para acessar o relato completo), quando Nabucodonosor se ensoberbece, sonha com o prenúncio do próprio episódio psicótico temporário, tem seu sonho corretamente interpretado pelo profeta e depois de um ano volta a se autoengrandecer. Anuncia-se a doença e seu afastamento temporário do reinado, o rei passa a ter comportamentos próprios de animais e, depois de um tempo, volta à razão, atribuindo à grandiosidade antes imputada a si a Deus.
     Diabo, Deus, paraíso, Adão e Eva... mais do que personagens de antigas histórias, verídicas ou não, fazem parte de uma trama que encenamos diariamente. Importa menos se são mitos, ou se, admirados pela origem sagrada, sejam sempre lembrados como imagens perenes do que nos aguarda após a morte. Mais importante é lembrarmo-nos deles como realidades vivas em nós, a quem devemos atentar para não cairmos presas de sofrimentos inconscientes, para não sermos lançados no fogo do inferno de nossas paixões e podermos gozar um pouquinho do céu para, quem sabe um dia, conseguirmos permanecer por mais tempo no paraíso.


REFERÊNCIAS E BIBLIOGRAFIA

BÍBLIA. Português. A Bíblia de Jerusalém. Tradução de Domingos Zamagna. São Paulo: Paulinas, 1985.
EDINGER, Edward F. Ego e arquétipo. 2. ed. São Paulo: Cultrix, 1992.
______. O encontro com o Self. 1. ed. São Paulo: Cultrix, 1991.
JUNG, Carl G. Psicologia e religião. Petrópolis: Vozes, 1978. v. 11/1.

domingo, 1 de maio de 2016

A crise e o espírito do tempo no Brasil de hoje

A seca que abateu o Brasil em 2015 pode ser interpretada psicologicamente como uma
grande cisão da psique coletiva brasileira; a tensão estava no ar, até que, com as chuvas,
os processos políticos e de justiça fluíram novamente.
     A crise brasileira atual não é somente econômica e política, também inclui a saúde (vide os surtos das doenças do aedes aegypti e da gripe H1N1), e durante todo o ano passado (e não sei se este ano ainda estamos muito estáveis) foi também energética e hídrica. Também é uma crise moral, se pensarmos na corrupção como endêmica à população brasileira. São tantos aspectos negativos nesta fase atual, comparados a fases muito boas anteriores, como às do governo FHC e Lula, que podemos questionar o que haveria por trás de todos esses acontecimentos. Talvez uma breve análise e síntese de ideias possa dar um sentido geral a esses infortúnios.
     Já notei há muito tempo, na minha vida pessoal, o quanto os fatos de certo período da nossa vida parecem permeados por uma certa qualidade geral, um tema que atravessa todos os episódios em um determinado tempo. Em uma fase de um ano e meio, por exemplo, a vida de um amigo foi traspassada pelo tema "mudança", de maneira tanto prazerosa quanto dolorosa: nascimento de um filho, promoção no trabalho, mudança por duas vezes de domicílio e a morte de vários parentes seus e de sua esposa (vide o texto "Morte, sonho e sincronicidade"). Por esses dias recebi a notificação de multa de uma infração cometida há mais de três anos (como se sabe, as infrações não notificadas até trinta dias são arquivadas); no mesmo dia respondi a alguém que cobrava, no trabalho, a atualização de um sistema até certa data; dois dias depois chegou outra cobrança, tema dos eventos como um todo. Coincidências? Não acredito.
     É como se nossa vida fosse permeada por uma espécie de "campo de sentido" ou simbólico que possui uma característica específica em certo período de tempo. Jung aludiu a esse fenômeno como se o tempo possuísse uma qualidade em momentos definidos. Daí ocorrer a possibilidade de os oráculos funcionarem se nossas perguntas a eles estiverem baseadas em nossas preocupações e emoções, já que estas e o "campo simbólico" parecem estar estreitamente relacionados. A antiga filosofia chinesa chamava a esse campo de Tao.
     "O Sentido [Tao] se obscurece, quando fixamos o olhar apenas em pequenos segmentos da existência", cita Jung (1991, §913) de uma obra chinesa. "Para nós, os detalhes são importantes em si mesmos; para a mente oriental, os detalhes juntos é que formam sempre o quadro global", continua. Portanto, essa percepção da "qualidade" do momento advém da atenção ao todo, de forma geral, e não aos detalhes. É uma compreensão intuitiva da realidade.
A atenção ao tempo de médio e longo
prazo tornou possível sua divisão em
estações e anos, por exemplo. 
    Esses "campos simbólicos", em nossa vida pessoal, tendem a tornar a ocorrer, aparentemente, até que integremos o seu conteúdo em nossas vidas. No âmbito nacional, o sentido dessa crise também tende a acontecer com a incorporação, à consciência coletiva, do que se encontra inconsciente e que está extraindo muitos recursos de nossa consciência social. A corrupção é uma espécie de "complexo" que precisa ser analisado coletivamente, o que já está ocorrendo, para que possamos, de uma vez por todas, percebê-lo, trazendo os recursos de volta às nossas mãos. É preciso que cada brasileiro conheça seu potencial para a corrupção, suas faltas cotidianas, e saiba dizer "não" às tentações, em benefício da coletividade, sabendo do prejuízo que essas perversões trazem a todos. 
     Essa perspectiva é abrangente e não foca a responsabilidade dos sujeitos, não lança luz sobre as responsabilidades individuais, mas permite um alcance do sentido maior desse caos que tomou conta do Brasil. Somos todos instrumentos dessa trama e drama que se impõe. A par desse sentido, podemos ter esperança de que futuramente alcançaremos um cume mais alto do que os escalados até agora. A vida é uma tensão entre polaridades opostas, entre ciclos de alegrias e tristezas, prosperidades e penúrias, passividade e atividade. Esse jogo tensional é tanto mais instável quanto mais frágil o suporte dos elementos integrantes.
     Infelizmente, esse complexo nacional inconsciente não pode, de uma só vez, ser integrado como um todo, já que isso é muito difícil. Provavelmente, apenas certos aspectos estão enfatizados neste momento, e outros o serão no futuro, em outro ciclo. Mas, com certeza, há um grande potencial por trás que poderá ser de proveito a todos. Entretanto, é preciso que as defesas contra a conscientização desse complexo - a estrutura legislativa que permite o aproveitamento dessa desmoralização - sejam também analisadas e desfeitas. E o que está sendo realizado para isso? Antes, é preciso que cada político se conheça um pouco mais, assim como nós mesmos, pois é o indivíduo que compõe o povo brasileiro.
Na superfície, uma estrutura aparentemente sólida; na realidade, ela é sustentada
 sobre o dorso de um grande complexo inconsciente, que pode naufragar toda a nação, se não integrado.

segunda-feira, 25 de abril de 2016

Os três níveis de consciência

Diagrama do Tai-Chi chinês, representando a integração das polaridades Yin/Yang.
Créditos: facebook.com/vozesdobrasilmpbOficial/
     Os dois primeiros círculos apontam para um primitivo estágio de consciência, onde a realidade está dividida em simples opostos: o lado do bem e o lado do mal. Não existe nenhum movimento dos pontos, indicando que o indivíduo tem uma estrutura praticamente estática, inerte, empedrada. Nessa fase, a percepção da realidade só comporta dualidades - "ou estão do meu lado ou são meus inimigos", "se isso não é mau, é bom", "gosto do mocinho e odeio o bandido", etc. A personalidade é inflexível e as pessoas desse nível, difíceis de lidar. Estão identificadas com uma parte ou com a outra. "Sou assim!", e ponto final. Não há consideração pelo ponto de vista do outro. Dependendo do lado, são consideradas superficialmente bons cidadãos ou malfeitores pela sociedade.
     O par de desenhos seguinte retrata um nível intermediário de consciência, em que há a percepção de que, dependendo da perspectiva, algo considerado em geral mal, possui também aspectos bons. Ou que nada é puramente prejudicial, nem tão somente virtuoso. Aqui existe movimento nas duas "gotas", que aparentam um girino, isto é, um ser vivo, com dinamismo orgânico. A perspectiva estática dualista é lançada por terra. O indivíduo percebe que é uma mistura de defeitos e virtudes, e que é incapaz de determinar, em um certo momento, em dada condição, qual parte irá prevalecer. Existe mais flexibilidade com relação ao que se pode ser, de acordo com o que a situação exigir. Admite-se amar também os defeitos alheios. Mas a atividade dos "pingos" ainda é separada. Ora percebe-se o mal em si, ora no outro; se se nota que tem um lado positivo, não é possível a mesma observação, no mesmo instante, no outro. Estabelece-se o conflito: para que eu seja considerado bom, o outro tem que ser mal. Por isso, em uma discussão é quase impossível se sair da defensiva - ou me considero justo e o outro culpado ou vice-versa, sentindo-me confortável ou não.
     O desenho unificado configura um dinamismo e a ausência de conteúdos estagnados e separados. É um estágio avançado de consciência porque engloba todos os outros e vai além. Se existe conflito, este se configura apenas com o(s) outro(s), que não possui(em) a perspectiva total. Vivencia-se a dualidade em si e no outro, simultânea e ativamente. Existe aqui a flexibilidade e a inflexibilidade, assim como vários outros pares de opostos, conjugados de maneira temperada, de acordo com a vontade do sujeito. Mas "vontade" aqui é mais que um mero anseio do Eu, pois engloba que o indivíduo faça também aquilo que não é ou seria sua escolha no momento devido à compreensão de que também percebe a verdade oposta dentro de si.
     É preciso pontuar que nenhum desses estágios ocorre de forma estanque no ser humano. Do mesmo modo que a última figura contém todas as outras, as fases anteriores ocorrem ainda de maneira mais ou menos fortuita e momentânea no terceiro nível, prevalecendo aquele que tiver sido mais desenvolvido. Por vezes, um sujeito no primeiro estágio de consciência pode ter um insight instantâneo do que seja viver no terceiro, e isso pode ser a chave para iniciar uma grande mudança de vida. Do mesmo modo, um indivíduo relativamente realizado pode de repente "surtar", caindo rapidamente no primeiro ou segundo nível, para seu sofrimento.
     Se a figura completa do Tai-Chi for imaginada girando, nota-se que os dois pequenos anéis no interior do Yin e do Yang formarão cada qual um círculo e se manifestará um centro que se aplicará aos dois. Na figura sem movimento esse centro não se revela, apenas na dinâmica da vida, nesta em que há continuamente a alternância de estados, humores e situações. Assim é a totalidade humana, gerenciada a partir do centro imóvel e imutável, que se expressa nas mudanças de estados psíquicos. A psicologia chama a esse centro de Si-mesmo.
     Para a filosofia chinesa as mudanças prevalecem sobre as oposições. Não existe juízo de valor - um lado ser superior ao outro. Yin não é mal, nem Yang o bem. E assim é se se pensar na interação e alternância dessas oposições como vida. O primeiro "evoca a ideia de tempo frio e encoberto, e aplica-se ao que é interior, enquanto o termo Yang sugere a ideia de exposição ao Sol e de calor. Em outros termos, Yang e Yin indicam aspectos concretos e antitéticos do tempo. [...] O mundo representa, pois, 'uma totalidade de ordem cíclica, constituída pela conjugação de duas manifestações alternativas e complementares'" (ELIADE, 2011, p. 26). 
     Em um pequeno tratado está escrito: "Um (aspecto) yin, um (aspecto) yang, eis aí o tao". Ou seja, o tao, traduzido aqui como "vida", comporta dois aspectos opostos que se alternam. Esse vocábulo quer dizer também "caminho", evocando a imagem de uma trilha a seguir, a ideia de direção de conduta, de regra moral, e, por fim, a arte de pôr em comunicação o Céu e a Terra (Ibid. p. 27).
     Portanto, não se deve abrir mão da vida em favor de estados estáticos de prazer, nem de dor, no caso dos masoquistas, por mais difícil que isso possa parecer. Isso não é vida, mas morte em vida. Vida é movimento, é alternância, é mutação. O sofrimento e as doenças mentais advém de querermos impor a permanência de estados inconstantes, enquanto que permanente só pode ser nossa contemplação de sua passagem na nossa caminhada. E é claro que em grande parte não temos consciência dessa autoimposição, pois a incorporamos culturalmente. Se nos acostumarmos a tomar posição no centro, poderemos contemplar a totalidade dos processos vitais sem angústia. Neste caso alcança-se o verdadeiro estado de felicidade, pois nos colocamos no rumo do sentido, sob a direção do centro da personalidade.
     (NOTA: A leitura que faço do Tai-Chi é simbólica e aplica-se à psique humana, não se vinculando a nenhuma pesquisa científica.)

REFERÊNCIAS

ELIADE, Mircea. História das crenças e das ideias religiosas: de Gautama Buda ao triunfo do Cristianismo. Rio de Janeiro: Zahar, 2011. vol. II.

sábado, 18 de janeiro de 2014

Nossos conflitos interiores

     Ao contrário do que passa o convívio social, nós não somos apenas uma pessoa. Quem já não teve pensamentos, sentimentos, lembranças e emoções que não queria ter, que limitam nosso bem estar? Quem nunca se arrependeu de agir de certa maneira? Quem não tem ou nunca teve vícios e certos tipos de compulsões? Ora, se fôssemos de fato alguém, seríamos apenas quem somos, mas o fato é que somos várias pessoas, somos alguéns.
     E como temos outros convivendo com o que pensamos ser apenas eu, sempre passamos por conflitos. Queremos ser equilibrados, competentes, pontuais, responsáveis, esforçados, bonitos, fortes, inteligentes, carismáticos... Qualidades dignas de um herói. Queremos ser o herói da nossa vida e de onde vivemos. Mas, para isso, teríamos que ser apenas um. Aliás, o esforço heroico dos mitos e filmes consiste na aventura de se procurar vencer todos os obstáculos e ameaças a essa unidade, tais como o desequilíbrio, a incompetência, o atraso, a preguiça, a feiura, a burrice, etc. Porém, mal sabemos que a unidade que podemos alcançar consiste menos em não ser contraditório do que estar consciente da nossa multiplicidade interior. Quando admitimos que somos vários, damos o primeiro passo para essa mítica e heroica unidade, pois aí podemos perceber os outros em nós e confrontá-los. 
     No livro “Viver a vida não vivida”, Robert A. Johnson (2010, p. 201) afirma existirem dois tipos de opostos: os opostos contraditórios, que podem se cancelar mutuamente – direita/esquerda, embaixo/acima, etc., e os opostos contrários – claro/escuro, saúde/doença, etc. Os primeiros não podem se conciliar, pois a oposição aí é absoluta. Já os contrários comportam aspectos que, apesar de se oporem, se misturam em transição de um para o outro, pois fazem parte de um processo dinâmico, como o dia claro, o nublado, a tempestade e a noite, por exemplo. Johnson menciona a “velha ética” como um sistema de valores que insiste na oposição contraditória do bem e do mal, e não na sua “contrariedade”. Por isso, os valores considerados “maus” são reprimidos logo na origem, na infância, o que também gera o mal humor crônico, resultado do total culto à virtude.
De acordo com o pensamento em branco e preto (opostos contraditórios), precisamos escolher ou isto ou aquilo. Somos tentados a seguir esse tipo de pensamento quando somos confrontados com paradoxos. Mas o paradoxo é um poço artesiano de significado do qual precisamos muito em nosso mundo moderno. A contradição é estática, ao passo que o paradoxo abre espaço para a graça e o mistério. (JOHNSON, 2010, p. 202)
     Abordar o paradoxo, continua o autor, é viver em um nível de consciência mais ampla, aberta para a vida intensa e a liberdade. O sofrimento sempre ocorre quando separamos os opostos. Um exemplo típico é a separação diversão/trabalho. Se apenas queremos nos divertir, consideramo-nos irresponsáveis. Se só trabalhamos, a vida torna-se amarga. Ora, isso ocorre porque, ao separar as qualidades em nós, somos separados com elas, tornamo-nos os próprios opostos, pois identificamo-nos com um e negamos o outro. Entretanto, com o tempo, sem o outro sentimo-nos vazios, pois queremos apenas ser uma parte do todo. Esse “vazio” é justamente a ausência do oposto que reprimimos. E isso me fez lembrar de Lao Tsé em seu livro “Tao te ching”: “Modelai o barro para fazer um jarro. Recortai no espaço vazio das paredes portas e janelas a fim de que um quarto possa ser usado. Dessa forma o ser produz o útil mas é o não-ser que o torna eficaz.” O “não ser” é o que não somos, o que rejeitamos em nós, nossa sombra. É como se precisássemos de um fio, mas só quiséssemos tocar em uma ponta: nunca conseguiremos utilizar o fio todo para não nos aproximar da ponta oposta. Mas só o faremos com sucesso, eficazmente, após aceitarmos as duas pontas. Assim é a vida – nunca conseguiremos lidar com suas diferentes situações, de forma completa e eficaz, se aceitamos só uma parte de nossas ferramentas (os opostos).
     Portanto, o conflito surge da nossa atitude parcial, lateral e unívoca. Queremos que uma parte de nós viva e a outra morra, mas esquecemos que nesta também corre sangue e impulsos nervosos, que também é corpo e alma.


(Leia mais a respeito: "Dorian Gray e a sombra na atualidade")