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domingo, 12 de março de 2017

Orgulho - o desprezo de mim mesmo

     Um dos maiores erros que o ser humano pode cometer, principalmente porque dele decorrem vários outros erros e complicações que podem levar, inclusive, ao fim da espécie, é não se aceitar como é. Não se aceitar, não se amar, promove uma cisão na personalidade. Se rejeito quem sou, logo existem duas personalidades em mim: quem despreza e quem é desprezado. E geralmente utilizamos de um artifício ainda mais ardiloso para não nos encontrarmos interiormente com aquela "persona non grata", pessoa indesejável. Nos recusamos a percebê-la, a escondemos de nós mesmos, fingimos que nunca a conhecemos.
     Ao mesmo tempo que repelimos essa parte sombria, idealizamos quem gostaríamos de ser, almejamos ser quem não somos. Isso se encontra bem expresso na trama da queda de Lúcifer. Este desejava ser como Deus, almejava substituí-lo. Deus percebeu o que ocorria e o expulsou do céu. O mesmo tema se desenrola de novo no Jardim do Éden, com a expulsão do casal primordial por ter caído (isso mesmo!) na tentação de querer ser como Deus, que sabe diferenciar o bem do mal. Este é o conhecido "pecado original". Entretanto, a religião reconhece apenas o aspecto mais superficial, de o homem, inicialmente, querer se igualar ao divino. Psicologicamente, porém, um dos pontos de vista menos explorados é o fato de haver uma recusa do homem e do anjo da luz em se aceitar como são - o início da divisão interna do homem. Assim, de um lado permanece a unidade original, Deus; do outro lado, a parte que é expulsa do paraíso - o homem e Satanás. A unidade, assim, representa o estado inconsciente primitivo e potencial; já a dualidade significa a consciência, o conhecimento do caráter duplo de tudo o que existe: o bem e o mal, o negativo e o positivo, o agradável e o desagradável, etc. A duplicidade aponta para o jogo de luz/sombra, por meio do qual os elementos se tornam perceptíveis. Luz sem sombra ofusca; sombra sem luz, torna tudo obscuro.
     O Diabo é conhecido no meio cristão como o "pai da mentira". Do grego, DIA- (através) + BALLEIN (jogar, lançar, atirar), diaballein ou diabo significaria "jogar através", "lançar através", isto é, dividir, separar, guerrear, conflitar. Logo, essa figura rejeita a unidade, que é divina, considerada "verdade" e de posse do paraíso. Já a palavra "símbolo" deriva de SYN- (junto) + BALLEIN (lançar, jogar, atirar), indicando "o que se lança junto", "jogar junto", com o sentido de comportar, no mínimo, dois elementos diferentes em união. O símbolo possui uma parte clara, conhecida, que é a figura pela qual o percebemos; ao mesmo tempo, contém outra parte, desconhecida, o seu sentido, da qual somos inconscientes. A poesia, os textos religiosos, os mitos, os contos de fada, os sonhos, as visões e as fantasias são repletos de símbolos. Portanto, se o símbolo, pelo menos etimologicamente, se opõe ao Diabo, indicaria este tudo o que é literal, claro e plenamente expresso? Penso que sim.
     O sentido do Diabo seria a tendência que todos temos em nos identificar com apenas um dos extremos, ser parcial, um polo apenas. Não é possível a identificação com os dois aspectos opostos de um mesmo elemento, pois se dou o mesmo valor aos dois lados, é sinal de que me distancio de ambos. Desse modo, não sou possuído pelo vício ou pelo anseio do prazer do objeto ou pessoa. É interessante, nesse sentido, o fato de que os dependentes químicos tendem a perder, com o tempo, a noção da linguagem simbólica, e que, na medida que a recuperam ou a desenvolvem, conseguem se distanciar das drogas. O mesmo é válido para os psicóticos, uma vez que se encontram muito prejudicados em perceber seus conteúdos internos de forma simbólica, o que os leva a tratá-los como literais, isto é, reais, projetando-os no mundo exterior. Esta explanação sobre o símbolo explica porque o desenvolvimento do pensamento científico isoladamente, tal qual é amplamente divulgado hoje em dia, é nocivo psicologicamente. A ciência pode transformar o indivíduo em demônio de si mesmo e de seus semelhantes.
     Com a tentação e a queda do homem veio o trabalho, a dor e a morte. Isso ocorreu porque, para haver trabalho a condição necessária é a oposição de dois polos, uma diferença de potencial: positivo e negativo (corrente elétrica), baixo e alto (caixa d'água), expansão e contração (motor), etc. A dor e a morte acompanham porque, com a identificação a um dos opostos, de tempos em tempos somos levados, involuntariamente, ao polo oposto, pois este aflora assim que a identificação afrouxa. Isto ocorre principalmente quando estamos cansados, estressados ou de alguma maneira incomodados. A força do nosso eu para deixar os conteúdos indesejados à distância diminui. Esses aspectos, então, vêm à tona. Com isso, dolorosa, apesar de temporariamente, mudamos, "morremos" para quem éramos. Assim que nos recuperamos, voltamos novamente à posição anterior, tradicional, segura. Esse processo ocorre continuamente até que aprendamos a nos distanciar dos extremos, alcançando e trilhando o caminho do meio. O Budismo aborda essa questão pela via do desejo: precisamos parar de desejar, uma vez que isso só leva ao sofrimento.
     É curioso que, em geral, associa-se a atitude do Diabo ao orgulho próprio. Seria, portanto, o orgulho uma forma de atitude extrema? Sim, porque o indivíduo prioriza, na imagem de si mesmo, o ideal coletivo ou particular, sem levar em conta sua personalidade total, que comporta também os aspectos opostos. Isso fere a unidade original, a totalidade psíquica, representada por Deus, uma das imagens do arquétipo do Si-mesmo. Ele tenta tomar o todo pela parte, generalizar para si o que é somente uma pequena porção. Isso desequilibra o estado de harmonia psíquica, que pode levar a sérias patologias. A própria Bíblia exemplifica esses casos em um episódio do livro de Daniel (clique aqui para acessar o relato completo), quando Nabucodonosor se ensoberbece, sonha com o prenúncio do próprio episódio psicótico temporário, tem seu sonho corretamente interpretado pelo profeta e depois de um ano volta a se autoengrandecer. Anuncia-se a doença e seu afastamento temporário do reinado, o rei passa a ter comportamentos próprios de animais e, depois de um tempo, volta à razão, atribuindo à grandiosidade antes imputada a si a Deus.
     Diabo, Deus, paraíso, Adão e Eva... mais do que personagens de antigas histórias, verídicas ou não, fazem parte de uma trama que encenamos diariamente. Importa menos se são mitos, ou se, admirados pela origem sagrada, sejam sempre lembrados como imagens perenes do que nos aguarda após a morte. Mais importante é lembrarmo-nos deles como realidades vivas em nós, a quem devemos atentar para não cairmos presas de sofrimentos inconscientes, para não sermos lançados no fogo do inferno de nossas paixões e podermos gozar um pouquinho do céu para, quem sabe um dia, conseguirmos permanecer por mais tempo no paraíso.


REFERÊNCIAS E BIBLIOGRAFIA

BÍBLIA. Português. A Bíblia de Jerusalém. Tradução de Domingos Zamagna. São Paulo: Paulinas, 1985.
EDINGER, Edward F. Ego e arquétipo. 2. ed. São Paulo: Cultrix, 1992.
______. O encontro com o Self. 1. ed. São Paulo: Cultrix, 1991.
JUNG, Carl G. Psicologia e religião. Petrópolis: Vozes, 1978. v. 11/1.

quinta-feira, 16 de abril de 2015

A ampliação da consciência humana

As quatro funções de orientação da consciência.
     Possuímos quatro funções para nos orientarmos no mundo: a sensação nos passa que existem objetos e pessoas ao nosso redor, assim como nos transfere as impressões internas dos sentidos (imagens, calor/frio, dor/prazer, etc.); o pensamento identifica esses objetos e pessoas para nós, assim como as citadas impressões internas, com o uso das ideias, do raciocínio; o sentimento possibilita avaliarmos esses elementos com relação ao grau de nosso desejo ou agrado; e a intuição nos fornece as variadas possibilidades desses elementos externos ou internos, assim como sua combinação para algum fim: no que resultarão, de onde vieram, etc. Ocorre que cada um de nós nos identificamos com uma dessas funções em grau maior ou menor, o que faz com que tenhamos pontos de vista diferentes sobre o mundo e nós mesmos, seja com base no interior ou exterior, assim como em uma dessas funções. Se nos identificamos com o pensamento, então vamos dar prioridade a nos relacionar com nós mesmos e com o mundo com base nas ideias, nas regras, no raciocínio e na lógica. Se o fazemos com a função sentimento, usaremos os sentimentos para isso, e assim por diante. Isso nos caracteriza como tipos psicológicos: seremos do tipo pensamento se tendemos a usar principalmente essa função, no mesmo raciocínio da última frase.
     No começo da civilização, o homem conseguiu desenvolver pela primeira vez uma função, tornando-a consciente, trazendo-a do inconsciente coletivo para utilizá-la para seus propósitos.  O momento em que ele pôde dizer que tinha um objetivo ou vontade de fazer mais e mais marcou o surgimento da separação dessa função do inconsciente. O mesmo ocorre com o indivíduo, em uma escala menor, desde o seu nascimento até a adolescência ou a vida adulta. Ele separa uma função específica como principal para lidar com os fatores externos e internos de sua vida. Entretanto, se o sujeito desenvolve apenas uma função, fica ciente de que pode fazer algo, mas estará sempre em uma condição psicológica muito desfavorável, pois ainda existem três outras funções no inconsciente - uma condição esmagadora. 
     Se adquire uma segunda função, torna-se mais completo, ganha mais equilíbrio e adquire uma espécie de consciência filosófica. Pode conseguir se conscientizar de que é um ser psicológico. Poderá dizer: "quero fazer isso OU aquilo"; ou então: "vejo o quão tolo isto é", se referindo a si mesmo. Com uma só função isso é impossível. A aquisição de duas funções funciona como um espelho, com o qual reflete os assuntos a que dá atenção. A mão esquerda pode julgar a direita, e então ele ganha um ponto de vista superior. A terceira função traz um segundo espelho. Ele diz: "Vejo esse cara aqui que vê aquele fulano, do qual percebo as ideias e que chega a uma conclusão errada". Com a quarta função haveria uma carga tremenda de consciência que possibilitaria o acompanhamento dos bastidores de si mesmo. É provável que haja um limite para se alcançar isso, mas pelo menos teoricamente existe essa possibilidade. 
     Um indivíduo que desenvolvesse as quatro funções seria fabulosamente superior às condições em que se situa, possuindo uma liberdade quase ilimitada, comparável à liberdade divina, já que Deus é a primeira e a última condição. À medida em que as funções são assimiladas, o que projetávamos de nosso inconsciente para o mundo é recolhido para dentro de nós mesmos, pois reconhecemos essas partes antes separadas de nós. Isso nos retira do homem inferior, fazendo-nos adquirir uma espécie de divindade. Quanto mais espelhos adquire, mais divino se torna, assim como mais inflado também, idêntico ao próximo espelho. Mais longe fica de sua sombra, de tudo o que é baixo e fraco, talvez sujo, que se encontra ainda banhado nas águas originais, coberto pelo lodo primitivo. Vamos para mais e mais longe de tudo isso com a aquisição progressiva de conhecimento. Então um fato peculiar acontece.
Quanto mais nós nos afastamos de nossas raízes, mais nos identificamos com os espelhos, mais ineficientes nos tornamos, porque o espelho não tem pés, não tem mãos. Ele é completa consciência, talvez, ainda sem efeito, exceto o efeito que nós podemos dar a ele. O que está dentro significa extremamente pouco. Eu posso dizer a uma pessoa que coisas são isso e aquilo, mas ela simplesmente não pode transformar em realidade, porque o discernimento conta pouco a não ser que lhe sejam dados mãos e pés. Quanto mais longe vamos, menos eficientes somos. (JUNG, 2014, p. 573)
     Essa condição de se viver cada vez mais no espelhamento provoca a nossa retirada da substância, o que quer que isso possa significar. Essa tremenda consciência nos mantém fora da existência, e não se saberia dizer se estamos vivos ou mortos. Porém, quando olhamos algo no espelho, percebemos que não o possuímos, pois podemos apenas pegar sua imagem, já que somos removidos delas. A realidade parece ser um tipo de ilusão. Existe aqui uma forte semelhança com o Nirvana oriental. 
     Talvez essa seja uma das bases da física quântica, pois com o desenvolvimento do pensamento, após a Revolução Francesa, a matéria tende a se tornar espírito. Pensamento é matéria e matéria é pensamento - não existe mais diferença. Todo o conceito de matéria está se dissolvendo em abstrações.
     Penso que, ao nível de civilização, ainda estamos longe de atingirmos o desenvolvimento psicológico esboçado aqui por Jung (2014). Entretanto, no estágio atual conseguimos alcançar como que uma espécie de simulação desse tipo de consciência ampliada por meio dos recursos de disponibilidade de informação e de tecnologia. Podemos nos "espelhar" em vários pontos do planeta, sem estarmos realmente lá, assim como muitas outras pessoas se espelham em nossos lares, no conforto dos nossos assentos. Podemos executar atos que antes demandavam muita energia, como pagamento de contas e compras, com um simples clique do mouse. Os lugares, pessoas, períodos de tempo e as coisas agora se espelham na tela à nossa frente, e esses reflexos influenciam a substância lá fora, ao contrário do efeito da assimilação das funções aludido acima. Estamos com o mesmo nível de consciência de nossos avós, mas com a vantagem de podermos estendê-la no espaço e no tempo, com uma carga de informação muito maior. Isso não parece ser bom nem mau, mas capaz de realizar uma homogeneidade de nível de conhecimento, de maneira a generalizá-lo, tornando-o disponível. As coisas e as pessoas estão se abstraindo no virtual e se dissolvendo nele sem que alcancemos uma consciência maior. Isso poderia ser mais desastroso não fosse a generalização do conhecimento. Espero que assim seja.


REFERÊNCIAS

JUNG, Carl G. Seminários sobre análise de sonhos. Petrópolis: Vozes, 2014. p. 567-577.
______. Tipos psicológicos. Petrópolis: Vozes, 1991.

domingo, 4 de maio de 2014

A psicologia por trás do Homem-Aranha

     A trilogia do Homem-Aranha, de Sam Raimi, assim como a nova série “O Espetacular Homem-Aranha”, tratam do processo de amadurecimento de Peter Parker, e também da nossa individuação, enquanto heróis da nossa própria vida. O primeiro filme trata da ferida que dá origem ao herói: a culpa pela morte do tio Ben. O segundo sobre a dúvida se ele deve continuar sendo um herói ou não. O terceiro resolve essa dúvida, pois Peter se identifica com seu papel de herói, o que constela sua sombra: Venon, que terá de confrontar para o bem de sua integridade psíquica. A nova série já desloca a ferida do herói para o abandono dos pais, fato que irá repercutir em todos os filmes, principalmente na insegurança e no sentimento de exclusão de Peter. Uma análise mais completa dessa série só será possível ao seu término, para se encadear um filme ao outro e se detectar para onde a aventura está caminhando.
No filme 'O espetacular Homem-Aranha', Peter Parker
ajuda o cientista Curt Connors a elucidar sequência
lógica incompleta há anos.
     Peter, psicologicamente, é um pensador, mas tem que lidar com seus sentimentos, conteúdos opostos às ideias. Enquanto aranha, ele “balança” de um oposto psíquico para outro, a fim de alcançar a condição humana de equilíbrio, sem se identificar com um ou outro, uma vez que ambos fazem parte da vida e da psique. O azul associa-se à tranquilidade, à pureza, à exatidão, ao frio, à imaterialidade e à espiritualidade. O vermelho, se liga à vida, aos instintos, à vigilância, à inquietude. Identificar-se com um deles, sejam eles quais forem, é querer tornar-se um deus, resolver tudo com uma fórmula só, como num “passe de mágica”, o que nos torna impiedosos para com aqueles que se identificam com o lado oposto. Isso é bem ilustrado no Homem-Aranha 3, na forma como é cruel com Mary Jane e seu amigo. Por isso a aranha, que possui oito patas, faz uma mandala no peito do herói, um símbolo de totalidade, de abrangência dos opostos.
     O que ajuda Parker a resistir à tentação a se tornar uma espécie de deus é já ter estado do “outro lado”, já ter sido um fraco, e por isso conhece o valor da força. Ele sofria bullying na faculdade, e é provável que sofrera também nos estágios escolares anteriores. Mas é justamente essa vivência que o impede de cair na tentação do poder, e usá-lo contra os demais. Sua sombra é o herói, o homem poderoso, e sua tarefa é integrá-la à sua vida e tornar-se um homem íntegro.
     No primeiro filme, Peter assume a persona de herói, simbolizada pelo uniforme, e se identifica com ela. No segundo, sente necessidade de reprimir a vida de herói, pois acabou deixando outras necessidades de lado, como a paixão por Mary Jane. Por isso perde seus poderes e fica novamente míope. Mas a chave para saber lidar com a vida de herói e com as necessidades humanas é a disciplina, e não a repressão. Esta é usada devido ao medo de usar compulsivamente seus poderes. Isso só ocorre quando não se está consciente de possuir as qualidades opostas, devido à repressão de uma das polaridades. Porém, o Aranha só vai descobrir isso no 3º filme, quando descobre o quanto pode ser mau.
Os vilões do Homem-Aranha nos quadrinhos.
     Os vilões que o Aranha enfrenta representam obstáculos em sua psique que ele precisa superar. Todos eles podem ser classificados em duas categorias: ou são cientistas, ou são objeto/produtos de estudo científico avançado. De alguma forma estão relacionados à atividade intelectual, e acabam por sucumbir ao poder. Os vilões dos dois primeiros filmes e de “O Espetacular Homem-Aranha” são admiradores da performance intelectual de Peter, como que denunciando o perigo de se fixar apenas em uma função ou qualidade psíquica. As quatro funções psíquicas (pensamento e sentimento, sensação e intuição) são formas de orientação da consciência para adaptação à vida. Elas formam pares em oposição, e não podem se desenvolver sem prejuízo da função oposta, pois uma interfere no funcionamento da outra. Por isso, quando o sentimento se desenvolve, a função intelectual não progride, e vice-versa. As funções que não progridem. alcançam uma feição inferior, primitiva. Caem totalmente ou em parte no inconsciente e a partir daí operam através do indivíduo de forma involuntária, podendo ocasionar acidentes e todo tipo de erro. Isso está explicado de maneira mais extensa na monografia “A intuição e a sensação em dependentes de droga na perspectiva da psicologia analítica”, onde os opostos intuição e sensação são explicados com mais propriedade. Como Peter desenvolveu mais a função pensamento, e é do tipo psicológico intelectual, mas ao mesmo tempo sente necessidade de evoluir seu sentimento, pois percebe que não consegue lidar muito bem com pessoas caras em sua vida. Harry e Marko parecem ser do tipo sentimento, e são os únicos vilões que Peter perdoa.  
   Já os demais (Norman, Otto, Curt e Max) morrem no final, pois representam justamente o uso excessivo do intelecto que precisa findar na vida de Peter. É como se estes fossem personificações de sua função intelectual que precisava de maior objetivação para que ele pudesse percebê-la melhor para se aproximar mais da função oposta.
     A título de conclusão, é pertinente fazer um paralelo das aventuras do Homem-Aranha com a estrutura das sagas dos heróis em geral. O herói quase sempre é engolido pelo monstro na batalha decisiva, o que ocorre com Peter quando é “engolido” pelo Simbionte, que toma seu corpo com o traje negro. Isso ocorre com Jonas, na Bíblia. É no interior da baleia que este começa a ajustar contas com ela, que nada na direção do nascer do sol (JUNG, 1991d, §160). No caso, o Aranha ajustou contas com a sombra coletiva na igreja, e depois ao explodi-la, quando o sol desponta. Só então Peter perdoa o Homem-Areia, uma alusão ao seu renascimento.

(Leia mais a respeito: "A sombra do Homem-Aranha")

domingo, 16 de março de 2014

A verdadeira atitude científica

     A psicologia pode ajudar muito na construção de uma atitude mais científica frente às pesquisas. Isso porque ela é a ciência que estuda o comportamento humano, assim como o que está por trás deste, isto é, sua subjetividade, sua psique.
Esquema das funções da consciência
     Segundo Jung (1991a), possuímos quatro funções que orientam nossa consciência: a sensação, a intuição, o pensamento e o sentimento. A sensação nos transmite a existência do objeto pelos cinco sentidos, assim como as impressões corporais que temos como reação a eles, de maneira detalhada, objetiva e atual. A intuição, oposta à sensação, combina todas as sensações, ideias e sentimentos para nos passar as possibilidades de conexão do objeto, combinando-os em um produto criativo, imaginativo e/ou fantasioso que servirá à resolução de problemas e à criatividade humana, abrindo perspectivas futuras e passadas, atendo-se ao sentido de totalidade, de perspectiva geral. A função pensamento, conhecida como intelecto, fornece um conceito para o objeto, através de ideias associativas conhecidas em relação a outros objetos, para que se possa conhecê-lo intelectualmente. Para isso o pensamento procura se distanciar emocionalmente do objeto, caso contrário esse processo conceitual não será isento, objetivo, mas parcial, relacionado com o sujeito. A função sentimento faz justamente isso: conecta o indivíduo ao objeto, envolve-os de forma a transmitir o  valor deste àquele, isto é, se o objeto é agradável ou desagradável, bom ou mau, belo ou feio, etc., assumindo uma escala de valores do negativo ao positivo e vice-versa, que guiará o indivíduo na sua relação com o objeto. Essas quatro funções podem operar ao nível do mundo exterior ao indivíduo, de forma extrovertida, ou ao nível interno e subjetivo, introvertidamente. A tendência ao emprego constante de apenas uma função da consciência leva à classificação dos indivíduos em tipos psicológicos, de acordo com a função empregada e com a respectiva atitude. Surgem aí os oito tipos: pensamento, sentimento, intuição e sensação introvertidos e extrovertidos.
A oposição entre sentimento e pensamento
em detrimento de uma ciência mais ética
     Percebe-se claramente quais as funções mais utilizadas pela ciência. Primordialmente, o pensamento, com sua exaltação da isenção e distanciamento intelectual do objeto, juntamente com a sensação, que exacerba ainda mais o sentido de objetividade e atualidade do objeto. Ocorre que a especialização e a ênfase apenas nessas duas funções provoca uma parcialidade de perspectiva, ainda não percebida, ainda atualmente, pela maioria dos pesquisadores e cientistas. É claro que seu desenvolvimento provocou um salto tecnológico jamais visto antes na história da humanidade. Entretanto, esse “salto” não acompanhou uma evolução semelhante das funções sentimento e intuição, que se tornaram primitivas e inferiores, comparadas às primeiras, não se sabe em que extensão mundial. Logo, o homem perdeu sua fonte de valores, que poderia guiá-lo no enquadramento dessa tecnologia e seu consumo na dimensão ética, isto é, no “como” e no “para que” inserir certos produtos tecnológicos na sociedade; e perdeu também a perspectiva de futuro em relação ao seu uso, assim como a dimensão de totalidade social e abrangência do consumo tecnológico. Assim, percebe-se aqui uma alternativa de explicação, e por que não um entendimento a mais, à perspectiva marxista em relação à desigualdade social.
Albert Einstein tinha a vantagem de ter desenvolvido,
ao lado do pensamento, também a intuição. Por isso,
revolucionou o pensamento científico.
     As funções da consciência servem ao homem na orientação de sua vida. Porém, infelizmente, ele está longe de saber equilibrá-las, de aplicá-las conjuntamente ou nas situações adequadas. Agindo assim, torna-se menos humano. Aquele que se especializa no intelecto, por exemplo, tenderá a utilizá-lo sempre, em toda parte e em toda situação, indiscriminadamente, agindo como um típico intelectual (ou, como se diz em psicologia, um tipo pensamento) inclusive nas festas, nos velórios, no casamento, na vida espiritual e no relacionamento com os filhos. Ele não consegue sentir determinado sentimento no momento adequado, pois sua função sentimento é subdesenvolvida. Aprendeu que ela é uma ameaça para si, e que pode desenvolver relacionamentos baseado simplesmente em explicações e ideias, pois isso é mais “racional”. Mal sabe que o sentimento também tem sua racionalidade e motivos igualmente válidos, e que, por isso, não sabe como rebater seu cônjuge, pois enbaraça-se, e este não consegue se colocar na sua posição, uma vez que tende a se utilizar da função oposta, o que configurou a atração do casal. Existem fartos exemplos de gênios científicos que eram verdadeiros fracassos como pais e mães, e que se orgulhavam de ter um guarda-roupa uniforme para não terem que perder tempo ao sair... Pois é, guarda-roupa uniforme é um clássico exemplo de reprimir o exercício com os sentimentos.
Ora, o verdadeiro cientista não deveria reprimir a função sentimento ao trabalhar em seu projeto ou laboratório. Bastaria deixá-la de lado naquele momento, para voltar a utilizá-la em reuniões com colegas de trabalho, com amigos e em casa. Mas nada mais fácil e simples que usar-se de uma panaceia, isto é, o emprego de sua função intelectual em todos os momentos e lugares, algo nada científico... 
A exclusão de funções da consciência corresponde
à exclusão social e acadêmica dos
tipos psicológicos correspondentes.
     A operação consciente apenas na função pensamento também pode provocar a exclusão de fenômenos “irracionais”, justamente aqueles que não podem ser explicados pela ótica das formulações teóricas vigentes. Com a contribuição da função sentimento, a função da formação de valores, essa exclusão dificilmente ocorreria, uma vez que haveria o reconhecimento do sentimento de repulsa pelo objeto excluído, o que equilibraria a atitude unilateral. Entretanto, percebe-se, há muito tempo, que os meios científicos são dominados por atitudes intelectuais unilaterais e redutivas. Manter o sentimento e a intuição trancafiados internamente é um comportamento tão fanático quanto o religioso que foge do ensino superior por medo de render-se à racionalidade e ao “rebanho do diabo”.
     A verdadeira atitude científica deveria procurar agregar todas as quatro funções da consciência. Individualmente, é muito difícil desenvolvê-las, pois corresponde a um trabalho de uma vida inteira. No entanto, pode ser feito um esforço para se conscientizar as pessoas da importância de sua variedade, o que, pelo menos, evitaria o emprego “fanático”, preconcebido e estereotipado de apenas uma função. Além disso, a composição de equipes de diferentes tipos psicológicos tende a abordar qualquer objeto de investigação científica de maneira mais plural, contribuindo para o estudo sob diferentes perspectivas e com reduzido preconceito. Assim, poder-se-ia atestar uma ciência verdadeiramente imparcial e ética, que contribui não apenas para o conforto e para a saúde, mas também para o campo social e espiritual da humanidade.