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segunda-feira, 25 de abril de 2016

Os três níveis de consciência

Diagrama do Tai-Chi chinês, representando a integração das polaridades Yin/Yang.
Créditos: facebook.com/vozesdobrasilmpbOficial/
     Os dois primeiros círculos apontam para um primitivo estágio de consciência, onde a realidade está dividida em simples opostos: o lado do bem e o lado do mal. Não existe nenhum movimento dos pontos, indicando que o indivíduo tem uma estrutura praticamente estática, inerte, empedrada. Nessa fase, a percepção da realidade só comporta dualidades - "ou estão do meu lado ou são meus inimigos", "se isso não é mau, é bom", "gosto do mocinho e odeio o bandido", etc. A personalidade é inflexível e as pessoas desse nível, difíceis de lidar. Estão identificadas com uma parte ou com a outra. "Sou assim!", e ponto final. Não há consideração pelo ponto de vista do outro. Dependendo do lado, são consideradas superficialmente bons cidadãos ou malfeitores pela sociedade.
     O par de desenhos seguinte retrata um nível intermediário de consciência, em que há a percepção de que, dependendo da perspectiva, algo considerado em geral mal, possui também aspectos bons. Ou que nada é puramente prejudicial, nem tão somente virtuoso. Aqui existe movimento nas duas "gotas", que aparentam um girino, isto é, um ser vivo, com dinamismo orgânico. A perspectiva estática dualista é lançada por terra. O indivíduo percebe que é uma mistura de defeitos e virtudes, e que é incapaz de determinar, em um certo momento, em dada condição, qual parte irá prevalecer. Existe mais flexibilidade com relação ao que se pode ser, de acordo com o que a situação exigir. Admite-se amar também os defeitos alheios. Mas a atividade dos "pingos" ainda é separada. Ora percebe-se o mal em si, ora no outro; se se nota que tem um lado positivo, não é possível a mesma observação, no mesmo instante, no outro. Estabelece-se o conflito: para que eu seja considerado bom, o outro tem que ser mal. Por isso, em uma discussão é quase impossível se sair da defensiva - ou me considero justo e o outro culpado ou vice-versa, sentindo-me confortável ou não.
     O desenho unificado configura um dinamismo e a ausência de conteúdos estagnados e separados. É um estágio avançado de consciência porque engloba todos os outros e vai além. Se existe conflito, este se configura apenas com o(s) outro(s), que não possui(em) a perspectiva total. Vivencia-se a dualidade em si e no outro, simultânea e ativamente. Existe aqui a flexibilidade e a inflexibilidade, assim como vários outros pares de opostos, conjugados de maneira temperada, de acordo com a vontade do sujeito. Mas "vontade" aqui é mais que um mero anseio do Eu, pois engloba que o indivíduo faça também aquilo que não é ou seria sua escolha no momento devido à compreensão de que também percebe a verdade oposta dentro de si.
     É preciso pontuar que nenhum desses estágios ocorre de forma estanque no ser humano. Do mesmo modo que a última figura contém todas as outras, as fases anteriores ocorrem ainda de maneira mais ou menos fortuita e momentânea no terceiro nível, prevalecendo aquele que tiver sido mais desenvolvido. Por vezes, um sujeito no primeiro estágio de consciência pode ter um insight instantâneo do que seja viver no terceiro, e isso pode ser a chave para iniciar uma grande mudança de vida. Do mesmo modo, um indivíduo relativamente realizado pode de repente "surtar", caindo rapidamente no primeiro ou segundo nível, para seu sofrimento.
     Se a figura completa do Tai-Chi for imaginada girando, nota-se que os dois pequenos anéis no interior do Yin e do Yang formarão cada qual um círculo e se manifestará um centro que se aplicará aos dois. Na figura sem movimento esse centro não se revela, apenas na dinâmica da vida, nesta em que há continuamente a alternância de estados, humores e situações. Assim é a totalidade humana, gerenciada a partir do centro imóvel e imutável, que se expressa nas mudanças de estados psíquicos. A psicologia chama a esse centro de Si-mesmo.
     Para a filosofia chinesa as mudanças prevalecem sobre as oposições. Não existe juízo de valor - um lado ser superior ao outro. Yin não é mal, nem Yang o bem. E assim é se se pensar na interação e alternância dessas oposições como vida. O primeiro "evoca a ideia de tempo frio e encoberto, e aplica-se ao que é interior, enquanto o termo Yang sugere a ideia de exposição ao Sol e de calor. Em outros termos, Yang e Yin indicam aspectos concretos e antitéticos do tempo. [...] O mundo representa, pois, 'uma totalidade de ordem cíclica, constituída pela conjugação de duas manifestações alternativas e complementares'" (ELIADE, 2011, p. 26). 
     Em um pequeno tratado está escrito: "Um (aspecto) yin, um (aspecto) yang, eis aí o tao". Ou seja, o tao, traduzido aqui como "vida", comporta dois aspectos opostos que se alternam. Esse vocábulo quer dizer também "caminho", evocando a imagem de uma trilha a seguir, a ideia de direção de conduta, de regra moral, e, por fim, a arte de pôr em comunicação o Céu e a Terra (Ibid. p. 27).
     Portanto, não se deve abrir mão da vida em favor de estados estáticos de prazer, nem de dor, no caso dos masoquistas, por mais difícil que isso possa parecer. Isso não é vida, mas morte em vida. Vida é movimento, é alternância, é mutação. O sofrimento e as doenças mentais advém de querermos impor a permanência de estados inconstantes, enquanto que permanente só pode ser nossa contemplação de sua passagem na nossa caminhada. E é claro que em grande parte não temos consciência dessa autoimposição, pois a incorporamos culturalmente. Se nos acostumarmos a tomar posição no centro, poderemos contemplar a totalidade dos processos vitais sem angústia. Neste caso alcança-se o verdadeiro estado de felicidade, pois nos colocamos no rumo do sentido, sob a direção do centro da personalidade.
     (NOTA: A leitura que faço do Tai-Chi é simbólica e aplica-se à psique humana, não se vinculando a nenhuma pesquisa científica.)

REFERÊNCIAS

ELIADE, Mircea. História das crenças e das ideias religiosas: de Gautama Buda ao triunfo do Cristianismo. Rio de Janeiro: Zahar, 2011. vol. II.

quarta-feira, 11 de junho de 2014

Malévola - a amargura do feminino


     De forma geral, o filme trata da iniciação feminina frustrada da protagonista. Débutant, em francês, quer dizer iniciante, e corresponde à tradicional festa de comemoração de quinze anos de uma jovem. Em países europeus, essa festa, uma espécie de rito de iniciação, caracterizava o momento em que a adolescente era, pela primeira vez, apresentada como mulher à sociedade, e onde possíveis pretendentes também compareciam. Apesar do filme referir-se à idade de 16 anos, o conto original da Bela Adormecida indica a idade de 15 anos, que é a do Début.
     No entanto, o processo de tornar-se mulher, para Malévola, foi frustrado: seus sonhos, expressos na sua vitalidade e na exuberância do reino dos Moors, dão lugar a uma profunda depressão, que torna tudo escuro e pesado. Essa fase negra de Malévola corresponde aos cem anos de sono que ela impõe a Aurora, que personifica, para a fada má, o despertar de sua consciência feminina, mesmo que sem a participação de seu contraponto masculino, que antes era figurado por Stephan.
A iniciação feminina e o baile de debutante.
     Os chifres de Malévola possivelmente fazem referência ao aspecto masculino da fada, que não só é potencial, mas que chega a confrontar figuras masculinas exteriores, na forma do rei humano e de Stephan, que representam um lado masculino extremo, exacerbado, sem nenhum equilíbrio compensatório.
     Algo que me chamou muito a atenção foi o fato de o pai de Aurora mandar a filha para longe de si com a finalidade de protegê-la. Parece ser uma atitude típica de homens que, querendo proteger o aspecto feminino, associado à figura da esposa e da filha, acaba isolando-o e isentando-o de qualquer relacionamento. É o que se observa em homens que, principalmente nos séculos passados, mantiveram relacionamentos sexuais com prostitutas, deixando a esposa para interações mais “puras” ou “santificadas”. Nota-se que Stephan, além da crueldade de vender o coração de uma mulher, isolou-se da filha e da esposa, a quem não atenta nem na hora da morte. Ele parece se preocupar inteiramente com a disputa de poder com Malévola, o que denuncia um forte complexo materno negativo. O homem projeta a mãe supercontroladora em todas as mulheres e procura dominá-las ou isolá-las. A fada má constitui sua própria alma (representada também pela esposa e pela filha), a quem impõe a clausura de uma grande cerca de espinhos. Nesse aspecto, a leitura do conto do ponto de vista da psicologia masculina é totalmente válida.
Malévola se envolve de novo
com seu lado criança.
     Entretanto, o contato de Malévola com seu lado criança (Aurora), sepultado pela presunção e pela ambição do novo rei, acaba por descongelar seu coração endurecido. Se esta não pôde despertar seu lado feminino pelo amor a outro homem, devido à decepção, ela se redimirá tornando-se mãe. Aurora é como se fosse mesmo filha da fada e do rei, ainda que por adoção. Uma filha que herda a maldição da mãe, mas que prenuncia seu despertar. O filme parece retratar um fato muito comum hoje em dia: quantas mulheres não acabam se iniciando na vida adulta tornando-se primeiramente mães solteiras, devido à frustração de um amor, ou por não conseguir confiar em um, pela falta de um modelo masculino. Observe-se que nem Malévola, nem o rei Stephan, quando meninos, tinham pais vivos.
     O único relacionamento que a fada tem com o masculino é através do corvo Diaval. Esta interação não evolui para algo mais profundo, mas pelo menos o faz até o ponto de ele ganhar certa autonomia, quando insiste para que a fada prepare o príncipe para que beije Aurora e a desafia a transformá-lo em verme ou pombo, pois não mais se importa. Por outro lado, é típica a superficialidade das personalidades das fadas madrinhas, boazinhas, santinhas, mas totalmente inexperientes, sem nenhum dote para a lida diária do lar, ao contrário de Malévola, que praticamente cria Aurora. O mesmo desenvolvimento ocorre com Nina, personagem do filme "Cisne Negro", que precisa conscientizar seu lado sombrio para representar com brilhantismo a peça do mesmo nome. Isso denuncia um aspecto importante para o desenvolvimento da personalidade: ninguém se torna grande da noite para o dia, ou por simples magia. As maiores personalidades sofreram muito e foram forjadas no embate interno de qualidades e defeitos, de aspectos luminosos e tenebrosos. Parafraseando Jung, as grandes alturas só são atingidas a custa da mesma proporção de enraizamento em lugares mais profundos no solo.
     Malévola, inicialmente, se identifica com seu lado sombrio, pois rejeita a sua identidade de moça bela e boa, a qual foi vilmente desprezada por Stephan. Mas percebe a necessidade de relativizar também sua sombra, e assim passa a ter disponíveis os dois modos de ser: a boa e a má, para usar de acordo com as circunstâncias, sem se identificar inteiramente com uma ou com a outra.
As três fadas madrinhas e Aurora.
     O final do filme é trágico para Stephan. O embate com uma pessoa que alcança maior integridade e maturidade só pode finalizar com a vitória desta, ainda mais quando chega ao ponto de recuperar as próprias asas, antes presas do antigo captor. Quando a rigidez pessoal alcança um nível extremo, só a morte pode compensar esse tipo de existência, que, aliás, equivale em vários aspectos às qualidades daquela. Aurora une então os reinos humano e sobrenatural, consciente e inconsciente. E ainda aponta para um promissor relacionamento com o aspecto masculino, representado pelo príncipe Philip.

quarta-feira, 7 de maio de 2014

Casamento: separação e união

 

- Como entender-me com ela?
- Acima de tudo não a rejeite. Se você o fizer, o estará fazendo consigo mesmo. Com quem casou-se para o resto da vida? Quem é a companheira que te acompanhou em todos os problemas?
- Mas como eu faço? Onde encontrar forças para lidar com ela e não rejeitá-la como aconselhas?
- Pense em si mesmo. Você não pretende aceitar-se como um todo para evoluir seu espírito e integrar sua personalidade? Se certas qualidades/defeitos que ela possui o incomodam tanto, estas não o incomodarão dentro de ti mesmo?
- Mas ela faz o que já combinamos não fazer...
- E quantas vezes você também já não concordou, em seu íntimo, não se comportar de certa maneira, sem sucesso? E quer exigir isso do outro? Trate-a com amabilidade! Diga com carinho que ficou chateado, que ficou triste com a atitude que ela tomou, mas diga olhando nos olhos, com carinho. Ela antes se arrependerá de te fazer sofrer, do que por ter te contrariado... Para contrariar o outro basta existir, pois é inerente à diferença, à individualidade, contrariar o outro. Mas não fazê-lo sofrer. Perceba: o outro é contrário a eu.
- Mas não será essa contrariedade um sofrimento?
- Pode até ser, mas o é de uma forma diferente, pois é um sofrimento passivo e não ativo.
- Entendo... Bem, já me imagino chegando e a abraçando...
- Você acha que ela não está sofrendo por você?
Em casa, ao reconciliarem, ela diz:
- Como você ainda me suporta?


sábado, 15 de março de 2014

A origem do Eu

     A estrutura psíquica pode ser comparada a um grande conjunto de esferas de diferentes tamanhos. Estas esferas seriam o agrupamento de pensamentos, lembranças, imagens e diversas outras impressões atraídas mutuamente e para seu núcleo pelo grau de força das emoções correspondentes. Todas essas esferas se encontram em um meio escuro e indefinido, e o constituem ao mesmo tempo, de modo a deixar suas superfícies vagas e indefinidas. Esse estado das esferas chama-se “inconsciente”.  O núcleo dessas esferas atrai seus elementos de acordo com o seu tema específico: a mãe, o pai, a criança, o herói, etc. Entretanto, todas as esferas, por sua vez, seriam atraídas para um núcleo maior e formariam uma esfera maior em seu conjunto. O tema desse centro abrange todos os outros temas, pois todos eles formam uma referência, enquanto centros menores, ao centro do conjunto de esferas, que tem maior poder de atração e regulação de toda a estrutura psíquica. Esse centro magno virtual constitui o maior e mais abrangente arquétipo (como são designados todos os centros esféricos). Como centro magno, esse arquétipo abarca também a superfície total, pois acaba sendo autorreferente. O entorno das esferas forma um entrelaçado de fatores chamado complexo. 
     Na estrutura psíquica global, chamada simplesmente de psique, pode-se diferenciar a maior ou menor proximidade de todos os complexos em relação ao Si-mesmo. A superfície da grande esfera psíquica constitui o limite em relação ao mundo exterior e, devido a isso, acaba desenvolvendo uma certa consistência, ou tensão superficial, à medida em que a criança se desenvolve, que consiste na troca de impressões, na adaptação e na proteção do sistema psíquico em relação ao meio externo. Essa estrutura chama-se persona
     Ocorre que certos temas fazem referência à identidade e a características pessoais do sistema psíquico, e são atraídos principalmente pela força de gravidade do corpo físico individual. Pode-se dizer que esses conteúdos são como pequenas esferas que, como bolhas de sabão, com o tempo se juntam e formam uma bola maior, que mais tarde será chamada de “Eu”. Pode-se afirmar que, quanto mais próximas à esfera egoica, mais definidas se tornam as outras esferas, que se tornam suscetíveis de serem conhecidas pelo Eu e, a partir disso, serem também manipuladas por ele, se transformando e se redefinindo. 
     À medida que o bebê interage com o meio circundante, ele vai memorizando as diversas imagens obtidas do mundo exterior. Apesar do nome “imagem” se referir às impressões obtidas a partir dos olhos, aqui o termo é usado de forma mais ampla, e engloba todas as impressões de todos os sentidos sobre certo objeto. Muitas dessas imagens são percebidas de novo e de novo, formando uma rotina de impressões. Muitas necessidades do bebê começam então a se vincular a essas imagens internalizadas que se referem às respectivas pessoas e objetos do mundo exterior. Internamente, aos poucos, elas vão se agrupando ao redor dos diversos temas, ou arquétipos, formando complexos, que serão maiores ou menores, ganhando mais ou menos energia, na medida em que vinculam emoções fracas ou intensas, impressões mais ou menos veementes.
     Existe um complexo, em particular, que é formado a partir das impressões relativas ao próprio indivíduo que percebe. Ele reúne elementos relacionados à identidade do indivíduo, que integrarão a sua personalidade consciente, tais como o nome, seu endereço, seus pais, seu grau de estudo, seu próprio comportamento e habilidades, etc., enfim, as lembranças de tudo o que faz o indivíduo ser quem é. Esse complexo é chamado de “complexo do ego”. 
     A percepção inicial e simples dos sentidos do sujeito acaba se diferenciando e adquirindo sutilidades. Uma dessas consiste na discriminação entre meio interno e meio externo. Devido, sobretudo, à resistência do mundo exterior às demandas do bebê (seus movimentos, suas necessidades, etc.), este aprende a notar que tudo o que se encontra aquém do limite do seu corpo é distinto do que se encontra além, pois o desejo de se movimentar vem de si mesmo. A percepção em si é auto e extra-referente: existe alguém que percebe e algo que é percebido. Por extensão, aquele que percebe é interno, em oposição ao externo. À medida em que essa percepção também se dirige ao mundo interno, ela se identifica com seus próprios aspectos internos que têm a ver, principalmente, com a identidade do indivíduo (o complexo do ego), pois estes fazem parte do sistema psíquico que percebe. 
     Enquanto o sujeito é tão somente aceito, ele não percebe nenhuma diferença entre si e o meio externo, já que existe aí uma continuidade entre aquele que deseja e aquele que satisfaz o desejo, entre o solicitante e o objeto solicitado. A negação desse objeto é que separa essa continuidade entre o eu que quer, mas cuja satisfação é negada, e aquele que nega essa satisfação. Ocorre a consciência, então, do eu e do outro que nega, do eu e do objeto por hora inalcançável, desejável. O sujeito percebe que, apesar de continuar mirando o que é desejado, não pode se satisfazer devido à negação. Isso forma uma tensão polar tipo sujeito/objeto desejado. Aquele pode tentar alcançar o objeto de várias outras formas, inclusive sem a presença daquele que o negou. Então o sujeito percebe as consequências do seu feito, que pode ser uma punição – da cara feia até um tapinha, ou mesmo nenhuma reação daquele que se interpôs. Nesse ínterim, e com base também nas expressões das pessoas que nem sempre demonstram ser o que são, o pequeno sujeito elabora uma espécie de “película” psíquica ao redor da sua psique consciente que forma diferentes expressões, na maioria das vezes incongruentes com a totalidade do seu ser. Essa “película” é a persona, que tem o papel também de “filtrar” as impressões recebidas, de forma que se adaptem ao sujeito, mas que acaba filtrando também sua personalidade genuína em relação ao mundo exterior, para que não acabe sempre se frustrando com o que deseja. 
     Entretanto, é preciso diferenciar a estrutura egoica para fazer justiça, por exemplo, à filosofia oriental, que prega a negação ou morte do ego para que os indivíduos alcancem um estado duradouro de beatitude, ou iluminação. Para isso, pode-se imaginar o ego como uma espécie de foco de luz, que parte do Si-mesmo, e que ilumina a superfície da psique. Essa luz tem a função de gerenciar a troca de impressões do meio interno com o meio externo e vice-versa, de forma consciente, adaptada, para integração do indivíduo e do mundo reciprocamente. Fugindo um pouco da teoria junguiana, que percebe esse ponto focal de consciência simultaneamente como ego, pode-se pensá-lo, de início, como um feixe de luz totalmente atrelado ao processo de construção do complexo do ego, este teria um papel importantíssimo de delimitar esse foco. Entretanto, como o complexo do ego contém características de identidade, que é relativa à percepção a partir do indivíduo para o mundo externo, o feixe de consciência acaba se apegando e se confundindo com o complexo do ego, transformando-se em “foco” de luz consciente. Então o ponto focal, uma vez mais ou menos delimitado, pode se chamar de “eu”. 
     Esse modo de explicar a construção complexo do ego/foco da consciência acaba por integrar a psicologia junguiana à filosofia budista e oriental como um todo, que prega a “morte” do ego como objetivo da realização do sujeito. Jung discordava desse pensamento porque via o ego como aquela entidade necessária à percepção e à autonomia frente ao mundo. Quem iria “matar” o ego, seria o próprio ego, o que seria impossível. Entretanto, as duas correntes de pensamento podem ser integradas se se diferenciar o ego – ponto focal da consciência, do complexo do ego. O que morreria para os orientais seria o complexo do ego e não o ponto focal de consciência, a partir do qual o indivíduo se torna um sujeito no mundo.
     Com a maturidade, a diferenciação ego/complexo do ego, hipoteticamente, evitaria uma identificação total e constante do foco de luz consciente com o complexo egoico. Isso estabilizaria de tal forma o Eu que poderia impedi-lo de ser engolfado pelo inconsciente em situações muito difíceis da vida, pois isso só poderia ocorrer em relação ao complexo do ego. É claro que essa seria uma situação ideal, cujo alcance dificultaria ao homem ficar psicopatologicamente enfermo. Mas daria ao ego uma extrema autonomia, e ao mesmo tempo o subordinaria inteiramente ao Si-mesmo, como instrumento da consciência, de adaptação ao mundo. Seria a “iluminação”, nirvana ou samadhi oriental. O homem teria alcançado o estado paradisíaco infantil inicial sem, no entanto, inflar-se pela identificação com o arquétipo do Si-mesmo.

(Leia mais a respeito: "A origem e a natureza do Eu")