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sexta-feira, 13 de outubro de 2017

Atenção plena (mindfullness), o eu e o inconsciente

     Já há algum tempo passei a praticar o que se popularizou como mindfullness, ou atenção plena, em português. Essa espécie de meditação é milenar, mas só recentemente foi muito mais divulgada, apesar de ser conhecida em nosso meio, em certos círculos, desde o tempo de divulgação do budismo e da yoga no Ocidente. Sidarta Gautama, o Buda, a divulgou como maneira de se alcançar o Nirvana, a iluminação. Esta é a disposição em que se consegue o livramento dos opostos psíquicos, das qualidades antagônicas que leva o homem cair nos extremos, a nunca se equilibrar, a libertação do desejo. No estado de atenção plena o indivíduo consegue trilhar o "caminho do meio".
     Segundo Williams e Penman (2015), a atenção plena é tão eficaz quanto os antidepressivos no combate à depressão, sem o prejuízo dos efeitos colaterais destes. Também reduz em 50% a probabilidade da recaída das depressões mais severas. Por que essa meditação tem efeito tão poderoso sobre a psique?
     Como estudioso da psique a partir da psicologia junguiana, formei algumas hipóteses interessantes que conectam a psicologia oriental à ocidental. Entendo que aqueles que praticam a atenção plena (mindfullness) adquirem a capacidade de ficar atentos a tudo o que, potencialmente, faria parte do inconsciente pessoal. Logo, ao invés de sonhar com fatores reprimidos ou que não receberam atenção devida, como ocorre normalmente, o meditante considera atentamente os conteúdos que teria rejeitado ou desprezado. Isso teria o efeito de não alimentar o inconsciente pessoal. Na psicologia analítica aprende-se que o complexo é formado de uma "casca" pessoal, formada a partir das vivências individuais de temas arquetípicos, e de um núcleo impessoal, que constitui esse tema arquetípico já citado. De modo geral, pode-se afirmar, assim, que o inconsciente pessoal (Ics P), da mesma maneira que ocorre com seus constituintes (os complexos), forma uma "camada" pessoal, subjetiva, sobre o inconsciente coletivo (Ics C) ou impessoal. À medida que a psicoterapia avança e o Ics P é tratado, ele se torna energeticamente mínimo ou fraco, deixando "descoberto" o Ics C. Por isso os pacientes começam a sonhar com conteúdos arquetípicos, característicos do Ics C. Assim, o Oriente e sua prática de atenção plena tende a não formar um Ics P muito robusto, deixando praticamente "descoberto" o Ics C. Daí suas produções serem quase 100% expressões do Ics C.
     O que o Oriente percebe como "morte do ego", no processo de crescimento espiritual, a Psicologia Analítica pode entender como extinção do complexo do ego. Para uma discussão mais pormenorizada desse assunto, remeto o leitor ao texto "A origem e a natureza do Eu". Nele, proponho que a formação do complexo do ego serve à formação do foco de atenção consciente, outro aspecto do ego que advém diretamente do Si-mesmo. Na medida em que o complexo do ego serviu de "fôrma", de molde, para que a atenção consciente se focasse, ele se torna apenas relativamente necessário, pois acaba se constituindo um bloqueio à desidentificação com os conteúdos pessoais (individuação e atenção plena), que poderia levar à formação da função transcendente ou a um reforço do eixo ego–Si-mesmo. Talvez apenas uma delimitação mínima (complexo) fosse necessária para a continuidade da demarcação do foco de atenção egoica. Nesse ponto haveria ocorrido aquela espécie de morte do ego que o Oriente prega.
     Uma pista de que o ego possa se "destacar" de seu complexo, é o fenômeno de identificação com outro complexo, fenômeno bastante conhecido nos consultórios de psicologia. Quando se identifica com outro complexo ou até com um arquétipo, o ego parece exprimir uma outra personalidade por meio de comportamento inabitual e característico. Como isso se torna possível sem que o ego se tenha separado de seu complexo origem?
Conjunção de Kama (deus do amor hindu) e 
Rati (deusa dos prazeres eróticos).
     Um sinal característico de como o Oriente culturalmente trata seu Ics P milenarmente, muito antes do Ocidente, é o fato de considerar os temas sexuais tão sagrados quanto os demais, a ponto de serem retratadas divindades em pleno coito sexual. Sabiamente, aquele povo entende que a força dos instintos em geral, e do sexual em particular, é personificada pelos diversos deuses e demônios de seu panteão. Que o "mal" constitui mais uma aplicação "tortuosa" de forças humanas, animais e/ou espirituais, e uma identificação com estas, e não o "mal" em si mesmas.
     Por volta de 25 anos atrás eu fazia psicoterapia com análise de sonhos, praticava imaginação ativa e também mindfullness. Certo dia tive que ir à banca de revistas da rodoviária da cidade. Sentei-me num banco e passei à prática da atenção plena. Basicamente, esta consiste em prestar atenção a tudo o que ocorre interior e exteriormente. Subjetivamente, procura-se observar o fluxo de pensamentos, sentimentos, lembranças, etc., sem que nossa vontade interfira nesse tráfego de conteúdos psíquicos. Acontece que isso é muito difícil de se conseguir: observar sem interferir, focar a atenção sem usar da vontade para deter o fluxo. Geralmente foca-se o processo da respiração e, quando um pensamento, imagem, sensação ou sentimento perturba essa concentração, a primeira providência é lembrar-se de que se foi conduzido automaticamente até esse conteúdo, então se reconhece e se identifica esses elementos durante algum tempo, e volta-se à respiração. Exercita-se esse processo durante todo o tempo da meditação. Entretanto, essa prática não é restrita a uma certa posição, momento, postura ou lugar. Pode-se exercê-la em diferentes contextos: no trabalho, em viagem, na escola, etc., de olhos abertos ou fechados. De repente, observei, num clarão de insight, minha intenção de meditar, assim como o esforço que fazia para alcançar esse intento. Percebi que não era necessário esforço algum. Então ocorreu um estado alterado de consciência. Senti uma felicidade e uma exaltação libertadora. Passei a caminhar. Enquanto andava pela rua, percebia como se eu não estivesse caminhando, mas a rua passasse sob os meus pés, sem que eu andasse. Durante toda a semana que se seguiu, essa sensação de libertação perdurou. Lembro-me ainda hoje de estar observando alguém dar alguns avisos a um grupo e achar graça da seriedade e solenidade do momento. Não conseguia mesmo me conter de vontade de rir. Só depois de alguns dias a antiga condição de consciência voltou.
Baseada em Von Franz (1990, p. 91),
confeccionada por Charles A. Resende
     Penso que esse estado alterado de consciência ocorreu facilitado também pela psicoterapia, que naturalmente induz a uma condição de atenção à subjetividade e análise interior. Mas, de alguma forma, também foi facilitado pela prática da imaginação ativa. Como descrevo no texto do link, na imaginação ativa acontece um fluxo conjunto da consciência e do inconsciente. * Von Franz (1990, p. 103) afirma que, à medida em que as três primeiras funções psíquicas (a superior e as duas auxiliares) são assimiladas, durante o processo de individuação, forma-se uma tensão entre a consciência e o inconsciente. A quarta função (inferior) não pode ascender à consciência, pois se encontra intrinsecamente associada ao inconsciente. Por isso, a consciência se rebaixa e o inconsciente ascende, ambos até certo nível médio, criando uma região intermediária, a função transcendente. Transcendente porque o sujeito funciona além do modo comum de consciência. Ele está aberto ao inconsciente, sem se identificar com este. Nessa condição, não há identificação com o nível "superior" da consciência, nem com o "inferior", do inconsciente. O indivíduo, vive em imaginação ativa, um estado de consciência em estreito contato com o Si-mesmo, atento ao mundo exterior, interior e às sincronicidades que ocorrem devido a essa conexão psicofísica. A similaridade da imaginação ativa com a meditação da atenção plena é flagrante. Ambas consistem em criar um ponto médio onde a Cs se faz presente sem interferir nos conteúdos do Ics, embora acolhendo-os, levando-os em consideração.
     Penso ser esta a chave para se compreender a psicologia do budismo, da yoga e várias outras práticas orientais, assim como do sufismo, sem negar seus aspectos mais importantes, mas unindo-os num todo coerente, fazendo justiça tanto ao Ocidente quanto ao Oriente. A verdade, como ensinou Jung, consiste em conjugar diferentes pontos de vista para se obter uma visão mais completa possível do objeto, seja ele qual for. Assim, as perspectivas inclusivas, que explicam até mesmo as contradições mais resistentes, principalmente na ciência, formam modelos teóricos que tendem a prevalecer. Questionamentos e apontamentos são bem-vindos.

OBSERVAÇÃO: para maior conhecimento das 4 funções, expostas aqui, vide os textos referenciados a seguir.




REFERÊNCIAS


VON FRANZ, Marie Louise. HILLMAN, James. A tipologia de Jung. São Paulo: Cultrix, 1990.
WILLIAMS, Mark. PENMAN, Danny. Atenção plena - Mindfullness: como encontrar a paz em um mundo frenético (inclui CD de meditação). Rio de Janeiro: Sextante, 2015.

sexta-feira, 21 de abril de 2017

Resignificando o jogo Baleia Azul


     A título de introdução, remeto o leitor ao texto "A importância do rito de passagem na adolescência". Nele há o entendimento de que a adolescência é um período de vida em que ocorre um processo de transformação da criança em adulto. Por esse motivo, a duração da adolescência é muito móvel, a faixa de idade varia conforme a cultura e depende da época histórica do país também. Esse processo, em suma, envolve a morte psíquica da criança e seu renascimento, semelhante ao simbolismo do batismo religioso, uma vez que este abarca o mesmo motivo. 
     É isso que os ritos de passagem encenam, dramatizam: a morte do ego infantil, com o qual há o fechamento dos tempos de garoto, o seu sepultamento, para que o homem nasça justamente desse "túmulo". E essa morte é simbolizada nas iniciações, envolvendo, por exemplo, a colocação do corpo do jovem em um caixão em local escuro por um período, e o seu velório. Por vezes, os próprios sonhos podem induzir uma morte simbólica: vide o sonho repetido do adolescente, no qual ele era sempre velado pela família, no texto citado acima. Tudo indica que o sonho insistia em que ele fizesse a passagem, o processo de transformação, que não envolvia a morte literal, mas simbólica. Essa é a chave para o entendimento da indução ao suicídio no jogo Baleia Azul. Existem muitas indicações de que os 50 desafios do jogo promovem a morte literal do ego e do indivíduo, por meio da identificação deste com a figura da tal baleia. Por isso ele é macabro e letal. Mas não precisava ser assim...
     Tratemos o jogo um símbolo, uma cena de sonho. No jogo existe a figura do "curador". O dicionário dá algumas definições de curador, mas as que são mais próximas do nosso objetivo são: 1. pessoa com incumbência legal de zelar pelos bens e interesses daqueles que não o possam fazer (função de curadoria); 2. Feiticeiro/rezador que, supostamente, cura as mordidas de serpentes venenosas, ou que as torna respeitadas por estes (AURÉLIO, 2009). Nesta segunda definição poderíamos acrescentar simplesmente aquelas pessoas que, supostamente, curam doenças das pessoas com sua arte espiritual. Lembro-me que uma dessas benzedeiras, Dona Aurora, minha vizinha, certa vez curou várias verrugas que eu tinha na ponta dos meus dedos de ambas as mãos quando era adolescente. Após a "benzição" com galhos de arruda, monitorei cuidadosamente o acontecimento. Ao final do primeiro dia parecia que elas estavam diminuindo de tamanho; qual não foi minha surpresa ao ver meus dedos totalmente limpos no segundo dia! Hipnose? Se for, mesmo hoje, com todos os cursos de especializações que existem, deve ser muito raro achar um que tenha essa competência... De todo modo, tudo indica que esse curador do jogo queira remediar algum inconveniente desses jogadores adolescentes. Não faria ele o papel de iniciador à morte física nesse macabro rito de passagem? No entanto, não poderia ele fazer simplesmente um papel mais psicológico, levando nossos jovens a "morrerem" psiquicamente, enquanto crianças? Esta é a proposta deste texto: resignificar o jogo e chamar a atenção para a grande necessidade de ritos que subjaz no comportamento dos nossos jovens.
     Assim, toda a série de mutilações e cortes no corpo possuem um sentido iniciático. De acordo com Stephenson (2009, p. 57), muitos ritos de passagem, nas culturas antigas, envolviam o derramamento de sangue de alguma maneira. E havia uma dupla razão para isso: os garotos precisavam se acostumar a ver sangue, pois ser homem implicava correr riscos, ser resistente e corajoso, mesmo quando ferido; derramar sangue lembrava o ciclo menstrual da mulher, ligado à conclusão do parto (nascimento). Hoje essas práticas parecem cruéis e arcaicas, mas cumpriam seu objetivo de fazer uma transição relativamente rápida da criança em adulto, e podemos aprender muito do sucesso de sua dinâmica.
     Para Brandão (1990, p. 337), para se penetrar no símbolo da mutilação
é bom relembrar que a ordem da "cidade" é par: o homem se põe de pé, apoiando-se em suas duas pernas, trabalha com seus dois braços, olha a realidade com seus dois olhos. Ao contrário da ordem humana ou diurna, que é par, a ordem oculta, noturna, transcendental é UM, é ímpar. O disforme e o mutilado têm em comum o fato de estarem à margem da sociedade humana ou diurna, uma vez que neles a paridade foi prejudicada. Numero deus impari gaudet, o número ímpar agrada ao deus, diz o provérbio, mas an odd number significa também em inglês um "tipo estranho, um tipo incomum", e a expressão francesa il a commis un impair significa que alguém "cometeu uma inconveniência", "fez asneira", transgredindo, por leve que seja, a ordem humana. O criminoso "comete uma terrível inconveniência", transgredindo gravemente a ordem social; o herói se "singulariza perigosamente". Ambos realçam o sagrado e só se distinguem pela orientação vetorial do herói: sagrado-esquerdo e sagrado-direito. O vidente, como Tirésias, é cego; o gênio da eloquência é gago... a mutilação tem pois dois lados, revestindo-se também da complexio oppositorum, possuindo, assim, valor iniciático e contra-iniciático.
     Dizer ou escrever "Eu sou uma baleia" é afirmar a identidade com esse animal. Estar em comunhão ou se identificar com algo ou alguém pode envolver comer algo relacionado a isso, como ocorre no rito cristão da comunhão. Assim, ser uma baleia indica ser devorado por ela. Jacobi (1991, p. 135) diz que ser comido ou devorado é um motivo arquetípico amplamente propagado em várias lendas, contos e mitos. O exemplo mais conhecido é o de Jonas engolido pela baleia. A baleia é parente do dragão, simboliza com frequência a água, o mar que devora o sol e o devolve de novo à vida. A bruxa, o lobo e o ogro devorador possuem sentido similar. No simbolismo da alquimia encontra-se o leão que come o sol e o cabrito que entra no ventre de sua irmã Beia. Ser engolido é descer aos infernos, reafundar no ventre da mãe, extinguir a consciência, matar o eu que se afoga no inconsciente, na goela voraz da morte. "A viagem para o Hades, a Nekyia, o engolimento pela besta do caos, embora sejam as penúrias do inferno e da morte, são, no entanto, a condição prévia para a salvação e o renascimento." E no jogo da Baleia Azul os desafios de subir em um telhado alto, sentar-se na borda de uma ponte, ir a uma estrada de ferro, assistir a filmes de terror têm estreita relação com preparar-se para ir ao encontro da morte, do monstro, do dragão (o trem), da terra, da água, todos símbolos femininos, do útero do qual todos surgiram.
     O jogo da Baleia Azul não passa de um equívoco que literaliza uma necessidade simbólica de morrer. Na verdade, ele se torna tão polêmico e perigoso porque hoje em dia não fazemos mais a leitura simbólica, não observamos mais a realidade e o humano como são. Estamos muito ocupados e desligados do presente e de nosso interior, nossos instintos, emoções e sentimentos. Quanto mais das pessoas que nos são próximas... Ele está aí para dizer que precisamos morrer, nos transformar, mudar. "O paradoxo curioso é que quando eu me aceito como eu sou, então eu mudo." - Carl Rogers.


AGRADECIMENTOS

A Hugo Guimarães pelo texto ENTRE O VENTRE E O TÚMULO – UM OLHAR ARQUETÍPICO SOBRE A BALEIA AZUL, de onde tirei o link para os 50 desafios do jogo Baleia Azul.

REFERÊNCIAS

BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 1990. v. 1.

Novo Dicionário Aurélio versão 6.0 - Dicionário Eletrônico - Conforme a Nova Ortografia [CD-ROM], Positivo Informática, 2009.

STEPHENSON, Bret. From boys to men: spiritual rites of passage in an indulgent age. Rochester: Park Street, 2004.

domingo, 12 de março de 2017

Orgulho - o desprezo de mim mesmo

     Um dos maiores erros que o ser humano pode cometer, principalmente porque dele decorrem vários outros erros e complicações que podem levar, inclusive, ao fim da espécie, é não se aceitar como é. Não se aceitar, não se amar, promove uma cisão na personalidade. Se rejeito quem sou, logo existem duas personalidades em mim: quem despreza e quem é desprezado. E geralmente utilizamos de um artifício ainda mais ardiloso para não nos encontrarmos interiormente com aquela "persona non grata", pessoa indesejável. Nos recusamos a percebê-la, a escondemos de nós mesmos, fingimos que nunca a conhecemos.
     Ao mesmo tempo que repelimos essa parte sombria, idealizamos quem gostaríamos de ser, almejamos ser quem não somos. Isso se encontra bem expresso na trama da queda de Lúcifer. Este desejava ser como Deus, almejava substituí-lo. Deus percebeu o que ocorria e o expulsou do céu. O mesmo tema se desenrola de novo no Jardim do Éden, com a expulsão do casal primordial por ter caído (isso mesmo!) na tentação de querer ser como Deus, que sabe diferenciar o bem do mal. Este é o conhecido "pecado original". Entretanto, a religião reconhece apenas o aspecto mais superficial, de o homem, inicialmente, querer se igualar ao divino. Psicologicamente, porém, um dos pontos de vista menos explorados é o fato de haver uma recusa do homem e do anjo da luz em se aceitar como são - o início da divisão interna do homem. Assim, de um lado permanece a unidade original, Deus; do outro lado, a parte que é expulsa do paraíso - o homem e Satanás. A unidade, assim, representa o estado inconsciente primitivo e potencial; já a dualidade significa a consciência, o conhecimento do caráter duplo de tudo o que existe: o bem e o mal, o negativo e o positivo, o agradável e o desagradável, etc. A duplicidade aponta para o jogo de luz/sombra, por meio do qual os elementos se tornam perceptíveis. Luz sem sombra ofusca; sombra sem luz, torna tudo obscuro.
     O Diabo é conhecido no meio cristão como o "pai da mentira". Do grego, DIA- (através) + BALLEIN (jogar, lançar, atirar), diaballein ou diabo significaria "jogar através", "lançar através", isto é, dividir, separar, guerrear, conflitar. Logo, essa figura rejeita a unidade, que é divina, considerada "verdade" e de posse do paraíso. Já a palavra "símbolo" deriva de SYN- (junto) + BALLEIN (lançar, jogar, atirar), indicando "o que se lança junto", "jogar junto", com o sentido de comportar, no mínimo, dois elementos diferentes em união. O símbolo possui uma parte clara, conhecida, que é a figura pela qual o percebemos; ao mesmo tempo, contém outra parte, desconhecida, o seu sentido, da qual somos inconscientes. A poesia, os textos religiosos, os mitos, os contos de fada, os sonhos, as visões e as fantasias são repletos de símbolos. Portanto, se o símbolo, pelo menos etimologicamente, se opõe ao Diabo, indicaria este tudo o que é literal, claro e plenamente expresso? Penso que sim.
     O sentido do Diabo seria a tendência que todos temos em nos identificar com apenas um dos extremos, ser parcial, um polo apenas. Não é possível a identificação com os dois aspectos opostos de um mesmo elemento, pois se dou o mesmo valor aos dois lados, é sinal de que me distancio de ambos. Desse modo, não sou possuído pelo vício ou pelo anseio do prazer do objeto ou pessoa. É interessante, nesse sentido, o fato de que os dependentes químicos tendem a perder, com o tempo, a noção da linguagem simbólica, e que, na medida que a recuperam ou a desenvolvem, conseguem se distanciar das drogas. O mesmo é válido para os psicóticos, uma vez que se encontram muito prejudicados em perceber seus conteúdos internos de forma simbólica, o que os leva a tratá-los como literais, isto é, reais, projetando-os no mundo exterior. Esta explanação sobre o símbolo explica porque o desenvolvimento do pensamento científico isoladamente, tal qual é amplamente divulgado hoje em dia, é nocivo psicologicamente. A ciência pode transformar o indivíduo em demônio de si mesmo e de seus semelhantes.
     Com a tentação e a queda do homem veio o trabalho, a dor e a morte. Isso ocorreu porque, para haver trabalho a condição necessária é a oposição de dois polos, uma diferença de potencial: positivo e negativo (corrente elétrica), baixo e alto (caixa d'água), expansão e contração (motor), etc. A dor e a morte acompanham porque, com a identificação a um dos opostos, de tempos em tempos somos levados, involuntariamente, ao polo oposto, pois este aflora assim que a identificação afrouxa. Isto ocorre principalmente quando estamos cansados, estressados ou de alguma maneira incomodados. A força do nosso eu para deixar os conteúdos indesejados à distância diminui. Esses aspectos, então, vêm à tona. Com isso, dolorosa, apesar de temporariamente, mudamos, "morremos" para quem éramos. Assim que nos recuperamos, voltamos novamente à posição anterior, tradicional, segura. Esse processo ocorre continuamente até que aprendamos a nos distanciar dos extremos, alcançando e trilhando o caminho do meio. O Budismo aborda essa questão pela via do desejo: precisamos parar de desejar, uma vez que isso só leva ao sofrimento.
     É curioso que, em geral, associa-se a atitude do Diabo ao orgulho próprio. Seria, portanto, o orgulho uma forma de atitude extrema? Sim, porque o indivíduo prioriza, na imagem de si mesmo, o ideal coletivo ou particular, sem levar em conta sua personalidade total, que comporta também os aspectos opostos. Isso fere a unidade original, a totalidade psíquica, representada por Deus, uma das imagens do arquétipo do Si-mesmo. Ele tenta tomar o todo pela parte, generalizar para si o que é somente uma pequena porção. Isso desequilibra o estado de harmonia psíquica, que pode levar a sérias patologias. A própria Bíblia exemplifica esses casos em um episódio do livro de Daniel (clique aqui para acessar o relato completo), quando Nabucodonosor se ensoberbece, sonha com o prenúncio do próprio episódio psicótico temporário, tem seu sonho corretamente interpretado pelo profeta e depois de um ano volta a se autoengrandecer. Anuncia-se a doença e seu afastamento temporário do reinado, o rei passa a ter comportamentos próprios de animais e, depois de um tempo, volta à razão, atribuindo à grandiosidade antes imputada a si a Deus.
     Diabo, Deus, paraíso, Adão e Eva... mais do que personagens de antigas histórias, verídicas ou não, fazem parte de uma trama que encenamos diariamente. Importa menos se são mitos, ou se, admirados pela origem sagrada, sejam sempre lembrados como imagens perenes do que nos aguarda após a morte. Mais importante é lembrarmo-nos deles como realidades vivas em nós, a quem devemos atentar para não cairmos presas de sofrimentos inconscientes, para não sermos lançados no fogo do inferno de nossas paixões e podermos gozar um pouquinho do céu para, quem sabe um dia, conseguirmos permanecer por mais tempo no paraíso.


REFERÊNCIAS E BIBLIOGRAFIA

BÍBLIA. Português. A Bíblia de Jerusalém. Tradução de Domingos Zamagna. São Paulo: Paulinas, 1985.
EDINGER, Edward F. Ego e arquétipo. 2. ed. São Paulo: Cultrix, 1992.
______. O encontro com o Self. 1. ed. São Paulo: Cultrix, 1991.
JUNG, Carl G. Psicologia e religião. Petrópolis: Vozes, 1978. v. 11/1.

segunda-feira, 25 de abril de 2016

Os três níveis de consciência

Diagrama do Tai-Chi chinês, representando a integração das polaridades Yin/Yang.
Créditos: facebook.com/vozesdobrasilmpbOficial/
     Os dois primeiros círculos apontam para um primitivo estágio de consciência, onde a realidade está dividida em simples opostos: o lado do bem e o lado do mal. Não existe nenhum movimento dos pontos, indicando que o indivíduo tem uma estrutura praticamente estática, inerte, empedrada. Nessa fase, a percepção da realidade só comporta dualidades - "ou estão do meu lado ou são meus inimigos", "se isso não é mau, é bom", "gosto do mocinho e odeio o bandido", etc. A personalidade é inflexível e as pessoas desse nível, difíceis de lidar. Estão identificadas com uma parte ou com a outra. "Sou assim!", e ponto final. Não há consideração pelo ponto de vista do outro. Dependendo do lado, são consideradas superficialmente bons cidadãos ou malfeitores pela sociedade.
     O par de desenhos seguinte retrata um nível intermediário de consciência, em que há a percepção de que, dependendo da perspectiva, algo considerado em geral mal, possui também aspectos bons. Ou que nada é puramente prejudicial, nem tão somente virtuoso. Aqui existe movimento nas duas "gotas", que aparentam um girino, isto é, um ser vivo, com dinamismo orgânico. A perspectiva estática dualista é lançada por terra. O indivíduo percebe que é uma mistura de defeitos e virtudes, e que é incapaz de determinar, em um certo momento, em dada condição, qual parte irá prevalecer. Existe mais flexibilidade com relação ao que se pode ser, de acordo com o que a situação exigir. Admite-se amar também os defeitos alheios. Mas a atividade dos "pingos" ainda é separada. Ora percebe-se o mal em si, ora no outro; se se nota que tem um lado positivo, não é possível a mesma observação, no mesmo instante, no outro. Estabelece-se o conflito: para que eu seja considerado bom, o outro tem que ser mal. Por isso, em uma discussão é quase impossível se sair da defensiva - ou me considero justo e o outro culpado ou vice-versa, sentindo-me confortável ou não.
     O desenho unificado configura um dinamismo e a ausência de conteúdos estagnados e separados. É um estágio avançado de consciência porque engloba todos os outros e vai além. Se existe conflito, este se configura apenas com o(s) outro(s), que não possui(em) a perspectiva total. Vivencia-se a dualidade em si e no outro, simultânea e ativamente. Existe aqui a flexibilidade e a inflexibilidade, assim como vários outros pares de opostos, conjugados de maneira temperada, de acordo com a vontade do sujeito. Mas "vontade" aqui é mais que um mero anseio do Eu, pois engloba que o indivíduo faça também aquilo que não é ou seria sua escolha no momento devido à compreensão de que também percebe a verdade oposta dentro de si.
     É preciso pontuar que nenhum desses estágios ocorre de forma estanque no ser humano. Do mesmo modo que a última figura contém todas as outras, as fases anteriores ocorrem ainda de maneira mais ou menos fortuita e momentânea no terceiro nível, prevalecendo aquele que tiver sido mais desenvolvido. Por vezes, um sujeito no primeiro estágio de consciência pode ter um insight instantâneo do que seja viver no terceiro, e isso pode ser a chave para iniciar uma grande mudança de vida. Do mesmo modo, um indivíduo relativamente realizado pode de repente "surtar", caindo rapidamente no primeiro ou segundo nível, para seu sofrimento.
     Se a figura completa do Tai-Chi for imaginada girando, nota-se que os dois pequenos anéis no interior do Yin e do Yang formarão cada qual um círculo e se manifestará um centro que se aplicará aos dois. Na figura sem movimento esse centro não se revela, apenas na dinâmica da vida, nesta em que há continuamente a alternância de estados, humores e situações. Assim é a totalidade humana, gerenciada a partir do centro imóvel e imutável, que se expressa nas mudanças de estados psíquicos. A psicologia chama a esse centro de Si-mesmo.
     Para a filosofia chinesa as mudanças prevalecem sobre as oposições. Não existe juízo de valor - um lado ser superior ao outro. Yin não é mal, nem Yang o bem. E assim é se se pensar na interação e alternância dessas oposições como vida. O primeiro "evoca a ideia de tempo frio e encoberto, e aplica-se ao que é interior, enquanto o termo Yang sugere a ideia de exposição ao Sol e de calor. Em outros termos, Yang e Yin indicam aspectos concretos e antitéticos do tempo. [...] O mundo representa, pois, 'uma totalidade de ordem cíclica, constituída pela conjugação de duas manifestações alternativas e complementares'" (ELIADE, 2011, p. 26). 
     Em um pequeno tratado está escrito: "Um (aspecto) yin, um (aspecto) yang, eis aí o tao". Ou seja, o tao, traduzido aqui como "vida", comporta dois aspectos opostos que se alternam. Esse vocábulo quer dizer também "caminho", evocando a imagem de uma trilha a seguir, a ideia de direção de conduta, de regra moral, e, por fim, a arte de pôr em comunicação o Céu e a Terra (Ibid. p. 27).
     Portanto, não se deve abrir mão da vida em favor de estados estáticos de prazer, nem de dor, no caso dos masoquistas, por mais difícil que isso possa parecer. Isso não é vida, mas morte em vida. Vida é movimento, é alternância, é mutação. O sofrimento e as doenças mentais advém de querermos impor a permanência de estados inconstantes, enquanto que permanente só pode ser nossa contemplação de sua passagem na nossa caminhada. E é claro que em grande parte não temos consciência dessa autoimposição, pois a incorporamos culturalmente. Se nos acostumarmos a tomar posição no centro, poderemos contemplar a totalidade dos processos vitais sem angústia. Neste caso alcança-se o verdadeiro estado de felicidade, pois nos colocamos no rumo do sentido, sob a direção do centro da personalidade.
     (NOTA: A leitura que faço do Tai-Chi é simbólica e aplica-se à psique humana, não se vinculando a nenhuma pesquisa científica.)

REFERÊNCIAS

ELIADE, Mircea. História das crenças e das ideias religiosas: de Gautama Buda ao triunfo do Cristianismo. Rio de Janeiro: Zahar, 2011. vol. II.

sábado, 18 de abril de 2015

O casamento na atualidade

    Há milênios o casamento era um negócio onde as mulheres eram compradas e vendidas. Na realeza e nas famílias muito ricas chegava a ser quase uma transação semelhante à do gado. Portanto, não era importante a psicologia do indivíduo: seus interesses, desejos, ideias, crenças, etc. Representava uma instituição coletiva, e assim também era o relacionamento conjugal. Formava a interação entre dois papéis sociais - o marido e a esposa, e o casal era valorizado na medida em que podia e sabia como sustentar essas personas ou máscaras (JUNG, 2014).
    Entretanto, com a evolução do pensamento e a aquisição de certa cultura, o indivíduo foi enfatizado: agora seus desejos e direitos são levados em consideração. A psicologia surgiu para entender o sujeito e, por extensão, a sociedade. Ela se tornou necessária para possibilitar a adaptação e o ajuste, muitas vezes fino, entre dois ou mais indivíduos, e destes consigo mesmos. Não tínhamos um relacionamento individual, mas coletivo, o que só mudou com o surgimento do amor romântico ou paixão (Ibidem).
    O grande problema atual é o embate sobre o que se espera que o casamento seja, enquanto instituição coletiva, adequada à sociedade, e o que desejamos dele: um relacionamento individual, muito difícil de se criar dentro do casamento. A convivência apenas ao nível da persona, dos papéis, não é suficiente. Deve haver uma relação individual, sem a qual não existe o ajuste ou adaptação individual. O marido e a esposa apenas cumprem seu papel respeitável e esperado, por meio de princípios muitas vezes estreitamente associados à religião. A direção do casamento, como instituição coletiva, e a de uma empresa, não difere muito, já que ambos são geridos por contratos, com papéis bem definidos. Porém, cada um dos cônjuges é uma pessoa particular, com o qual se deve ter um relacionamento particular (Ibidem).
    Na relação conjugal coletiva costuma imperar a identificação projetiva (ou participation mystique), isto é, cada um dos parceiros projeta no outro uma parte da sua personalidade e o vivencia como se fosse o conteúdo da projeção. Desse modo, cada um dispõe de um meio inconsciente para controlar o outro de acordo com o ponto de vista interno. Assim, um cria a condição do outro e conclui as decisões do outro, dependendo deste para se tornar o que é (SAMUELS, 2003). Após algum tempo de convivência, as pessoas se influenciam reciprocamente, um assimila o outro e ambos se tornam semelhantes. Ocorre que esta identidade e fusão é um grande obstáculo ao relacionamento individual. Pois, se são idênticos, não existe relacionamento, já que este só ocorre entre pessoas diferentes, isto é, separadas psiquicamente. Uma vez que essa identificação projetiva é a situação habitual no casamento, principalmente quando os cônjuges são jovens, uma relação individual é impossível (JUNG, 2014).
    Se ambos escondem segredos um do outro, admiti-los pode ajudar a estabelecer um relacionamento individual. Se não existem segredos, então nada pode protegê-los da participation mystique. Neste caso, nada demais ocorre no casamento, que fica sem tempero, sem emoção (Ibidem). 
    Portanto, ao que tudo indica, o relacionamento individual dentro do casamento depende da sinceridade de ambos os cônjuges. Sinceridade no sentido da revelação explícita, de um para o outro, de quem se é realmente, sem máscaras, sem segredos. O caso alegado acima, onde em um casamento não existe segredo parece partir do pressuposto de que o marido e a mulher não têm consciência de seus seres genuínos, autênticos. Por isso eles acabam por concluir que não possuem nenhuma confidência a fazer. No entanto, até a sinceridade extrema pode trabalhar para a ausência de diferenças, uma vez que não haveria qualquer reserva, podendo isso ocasionar um controle de um dos cônjuges sobre o outro. O confidente pode se ofender com a franqueza ingênua, usando a revelação contra o outro, criticando-o ou reclamando, se esforçando para que ele se encaixe dentro dos moldes da persona conjugal. Isso levaria o casamento ao patamar coletivo, da mesma forma como este pode entediar e levar à confissão individual. Por isso, a posição ideal é o trabalho da consciência individual, que procurará a adaptação ao momento vivido, com atenção, sem se desbancar para um dos extremos, pois estes se tornam hábitos e, por conseguinte, inconsciência do próprio comportamento.
    Parece-me que a insistência e a resistência ao casamento homossexual decorre desse mesmo embate entre casamento como instituição individual versus coletiva. Este serve à sociedade, à tradição, à persona; aquele, aos sujeitos tais quais são, com suas características e objetivos pessoais em primeiro plano. No âmbito da sociedade, podemos considerar essa oposição como um sintoma do que acontece ao nível da psique do indivíduo: o que era encoberto vem à tona, como ocorre a um segredo. Se esse segredo não é compartilhado e difundido, sem aberraçoes extremas, é claro, a convivência se torna monótona. O ser espontâneo, a verdade e o novo são reprimidos para que uma máscara possa encobri-los. Não existe vida nisso, mas sim uma dramatização, um fingimento - a morte em vida. A existência não se renova, mas definha no choro contido. Então os mesmos sintomas que assediam o indivíduo nessas mesmas condições, tomam conta da sociedade como um todo: homicídios (repressão), falta de educaçao (inconsciência), violência (depressão), insegurança, miséria (falta de criatividade), protestos (ansiedade), etc. Um projeta no outro e na massa a carência, o buraco interno. A coletividade em geral só estará em harmonia na medida em que seus indivíduos estejam mais ou menos centrados.
A psicologia do indivíduo corresponde à psicologia das nações. As nações fazem exatamente o que cada um faz individualmente; e do modo como o indivíduo age, a nação também agirá. Somente com a transformação da atitude do indivíduo é que começará a transformar-se a psicologia da nação. Até hoje, os grandes problemas da humanidade nunca foram resolvidos por decretos coletivos, mas somente pela renovação da atitude do indivíduo. (JUNG, 1987b, prefácio)




REFERÊNCIAS


JUNG, Carl G. Psicologia do inconsciente. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 1987b. v. VII/1.
JUNG, Carl G. Seminários sobre análise de sonhos. Petrópolis: Vozes, 2014, p. 78-80.
SAMUELS, Andrew. Dicionário crítico de análise junguiana. Edição Eletrônica, 2003 Andrew Samuels/Rubedo. Disponível em: <http://www.rubedo.psc.br/dicjung/listaver.htm> Acesso em: 14 out. 2010, 22:49:00.

segunda-feira, 6 de abril de 2015

A fascinação pela tecnologia

O que leva o homem a se fascinar pela tecnologia? Por que ele se permite viciar por aparelhos como o smartphone ou players de jogos? O que há por trás desses produtos tecnológicos? São perguntas que compelem à reflexão, tendo em vista que qualquer um de nós pode ser assaltado lenta e silenciosamente por uma compulsão viciante sem se aperceber do fato.
Hórus, Osíris e Ísis, deuses egípcios.
Jung (2014, p. 510) diz que aqueles que adoram ídolos sabem que estes foram feitos pelo homem. No entanto, ainda assim são escolhidos como morada de Deus ou tornados sagrados, vasos da santidade. O mesmo ocorreria na construção de um aparelho, de uma máquina, pois ao fazê-lo se está conferindo um poder criativo e divino a ela. Pode parecer uma atividade mecânica, mas ela pode nos invadir de forma invisível. Agora, que poder divino é esse?
Os aparelhos e máquinas são instrumentos que nos possibilitam alcançar o inalcançável, estender nossos membros ao que antes era não atingível. Podemos fazer coisas que não faríamos só com nosso corpo. Por isso os aparelhos nos fascinam. O que antes era prerrogativa dos deuses, agora é nossa possibilidade. A tecnologia nos tornou deuses. Nos deu poderes que antes não tínhamos. Antes só deuses e pássaros podiam voar. Apenas os deuses deixavam a terra para habitar os confins dos céus. As invenções permitem que nós cheguemos aonde nenhum homem jamais foi. Nos permite atingir o infinitamente pequeno, assim como abarcar o imensamente grande, por enquanto apenas conseguindo dados… Só Deus sabe o que poderemos conseguir depois... Esse poder criativo confere poderes realmente celestiais às máquinas, sem os quais o homem ainda estaria confinado às cavernas, sua morada original. O centro da existência agora é o homem. Os deuses estão deixando de habitar ídolos para se encarnar nas invenções.
O homem não quer saber se está desvalorizando as próprias relações humanas. Permanece horas e horas contemplando e manipulando uma pequena “tabuinha” de metal e plástico, com a qual pode acessar outros humanos em qualquer outro lugar da Terra. O conhecimento se tornou disponível com um pequeno gesto. Um pequeno movimento pode comandar aparelhos, embora já haja estudos para possibilitar serem estes comandados por nossos próprios pensamentos. O sobrenatural está dando lugar à tecnologia, e esta a várias novas doenças psíquicas, como o vício em jogos, em smartphones, à Internet, por exemplo, sem falar nas psicossomaticas, ou nas doenças derivadas diretamente da debilitação do sistema imunológico.
No momento em que escrevo este texto, ele pode, a qualquer hora, ficar disponível para milhões de pessoas que quiserem ou puderem acessá-lo, bastando que digitem algumas palavras em um buscador. Compras podem ser feitas em outros países sem que saiamos do lugar. O banco pode ser acessado até mesmo à noite, fora do expediente, tornando possível que transfiramos valores ao outro lado do mundo! Podemos transmitir nossa imagem e voz instantaneamente ao outro, o que era obra de ficção científica há algum tempo.
Estamos nos tornando cada vez mais nossos próprios deuses, transferindo o sagrado para a tecnologia. Mas… a serviço de que? Qual a finalidade disso? O que fazemos com isso? São questões que não podemos deixar de tentar responder, pois corremos o risco de oprimir o outro, como já ocorreu por tantas vezes na humanidade. Tragédias ocorreram por conta desse poder criativo do homem, pela não atenção aos valores sentimentais. Não conseguimos pensar em mais nada a não ser no que nos compele a fazer, fazer e fazer, sem animação, sem senso crítico. Não usemos nossos sentimentos e nos tornaremos máquinas. 






REFERÊNCIAS

JUNG, Carl Gustav. Seminários sobre análise de sonhos. Petrópolis: Vozes, 2014.

domingo, 18 de janeiro de 2015

Radicalismo, terrorismo e Charlie Hebdo

     O que é "liberdade de expressão"? É a primeira pergunta a se fazer frente aos eventos terroristas ocorridos em 7 de janeiro na França. Segundo a  Wikipedia (em 18 de janeiro de 2015):
Liberdade de expressão é o direito de manifestar livremente opiniões, ideias e pensamentos, sem a prática de qualquer crime que possa pôr em causa o direito de outrem, sob pena de difundir crime em massa através da comunicação social como poder criminoso sob a capa de fé-pública, designadamente a injúria e a difamação em abuso de um poder. A liberdade de expressão privada é uma relação natural entre as partes e por isso não necessita de prevenção ou censura. Já a liberdade de expressão pública necessita de censura como único meio de garantir a liberdade dos cidadãos e a igualdade de tratamento, responsabilizando-se o Estado em representar a parte a atingir pois não existe outra possibilidade prática. É um conceito fundamental nas democracias modernas nas quais a censura não tem respaldo moral. [destaques do editor do blog]
Fig. 1 - Retratação do "Pai", do "Filho"
e do "Espírito Santo".
     O teor das publicações do jornal Charlie Hebdo pode ser acompanhado nas figuras que ladeiam este texto, juntamente com uma foto do atentado. Percebe-se claramente que os editores do jornal são ateus e não hesitam em recorrer até ao preconceito para conseguir valer suas próprias opiniões. A expressão na Fig. 1 é, obviamente, de porte totalmente oposto à atitude fanática para com símbolos sagrados. Sim, digo fanática porque não é necessário recorrer a uma sátira tão impetuosa para expressar repúdio a figuras sagradas. Se o fanatismo religioso choca, o fanatismo ateu que se opõe, também o faz.
     Como o próprio Papa disse, "matar em nome de Deus é uma aberração". Mas vamos tentar entender essa aberração. A Bíblia preconiza, assim como o Alcorão, que se deve amar a Deus sobre todas as coisas. Com "coisas" a escritura quer englobar também as pessoas, como o pai, a mãe, os irmãos, etc. Jung chama à imagem de Deus de "supremo valor", um "fator psíquico cheio de energia", e entende a religião como um fator de relação com esse "valor supremo". Ele também afirma que, se alguém não coloca Deus como supremo valor de sua vida, fatalmente colocará outro elemento no lugar. E pode-se dizer que os editores do citado jornal possuem como valor supremo algo bem diferente do que fazem as religiões em geral. Para se opor a uma força fanática religiosa, apenas outra força igual ou de maior intensidade, de valor oposto, obviamente. Como na representação da trindade na Fig. 1 ocorre uma relação sexual, percebe-se que o conteúdo é material. A matéria e o instinto parecem se postar como supremos agentes de oposição ao sagrado e - por que não? - aos valores familiares (pai e filho).
     Na Fig. 2, o profeta Maomé é retratado como ator de um filme pornô. De novo a associaçao de figuras sagradas com o sexo, dois elementos diametralmente opostos. A figura parece significar, para o jornal, o desejo do profeta de ser apreciado em aspectos instintivos, no afã de ridicularizar a admiração e/ou o respeito que o islamismo lhe presta.
     É necessário entender que, se no Brasil alguém fizer uma charge pública apresentando a mãe de alguém como atriz de um filme pornô, estará correndo o risco, no mínimo, de ser processado, se não ocorrer um gesto violento, o que não dizer de uma figura ou de um ser que está acima de todas as coisas? O jornal francês ridicularizou não uma imagem qualquer, mas um dos supremos valores do mundo muçulmano... E o Estado, ao invés de fazer o seu papel de recorrer à censura para garantir a "liberdade e a igualdade de tratamento" de grupos minoritários para evitar confrontos, não o fez. Pelo contrário, entendendo-se "laico" [Aurélio: "2. Que vive no, ou é próprio do mundo, do século; secular (por oposição a eclesiástico)"], entende o mundo como excludente de religião. Se o Estado não pode incluir a religião, então que não seja laico, mas abrangente, continente, totalizante, uma vez que pretende abarcar e proteger o direito de todos os cidadãos. Nesse sentido, o Estado está mais avançado no Brasil do que na França...
Fig. 2: "O filme que abarca o mundo
muçulmano". Retrata Maomé dizen-
do: "E minha bunda? Ama minha
bunda?".
    Pode-se reportar à tipologia psicológica para se compreender ainda mais a posição de Charlie Hebdo. Sua crítica possui forte nuance de repressão do sentimento, função essencial para se diferenciar a adequação das próprias palavras e ações em relação a si mesmo e ao mundo. Apresentar ideias ou colocá-las em prática sem consultar os próprios sentimentos, sem perguntar "como me sinto a respeito?", dá ensejo a situações irresponsáveis, inadequadas e impróprias para si e para os outros. A liberdade sem sentimento, sem a devida delimitação da empatia, do se colocar no lugar do outro, é a liberdade que não leva em conta o mundo. É libertinagem.
     O objetivo das considerações anteriores foi equilibrar a atitude que se tomou comumente, no âmbito mundial, a favor do jornal francês. Os radicalistas muçulmanos atuaram de maneira totalmente criminosa e patológica (do ponto de vista ocidental) na resposta que forneceu ao Charlie Hebdo: nisso não há dúvida.
     O maior problema de radicalistas religiosos, e aqui pode-se incluir membros de todas as religiões, é a literalidade com que percebem as sagradas escrituras. Os psicólogos estudiosos dos sonhos sabem como os conteúdos destes, das visões e das fantasias da imaginação podem ser interpretados simbolicamente, com grande ganho para a saúde psicológica do cliente. Em geral, os sonhos falam da vida interior do sonhador, assim como também existem sonhos que dizem respeito à humanidade como um todo, e ao que se passa em seu interior, isto é, no seu inconsciente, chamado de inconsciente coletivo, e aos eventos exteriores. Comumente, é possível se interpretar simbolicamente a maioria dos eventos bíblicos revelados por meio de sonhos e visões, e existem vários livros a respeito. Essa possibilidade não quer dizer que esses acontecimentos se reduzem a simples contos ou mentiras. Não: querem dizer que sua verdade diz respeito ao lado espiritual e interior de cada um, que Deus não está somente fora de nós, e que ele pode ser experimentado direta e simbolicamente pelo fiel. A experiência espiritual interna evita qualquer tipo de fanatismos, pois se compara a um tom de voz moderado, ao passo que o radicalismo equivale ao grito. Acho que foi Jung que disse que só a dúvida grita, isso porque na certeza jaz a completa segurança sobre seu conteúdo.
Fig. 3 - Os terroristas em ação.
     Portanto, o fanatismo que fere, mata e destrói possui pelo menos dois aspectos negativos: quer materializar o que é espiritual, concretizar o imponderável e intocável, tornando-o suscetível a quaisquer ameaças externas; e parece basear-se em uma dúvida reclamada erroneamente como fé, esta que, por definição, constitui a certeza de coisas imponderáveis, daí a forte afirmação desenfreada e violenta do seu objeto contra tudo o que o negue.
     É muito difícil para muitas pessoas postar-se no meio de dois lados, tomar uma atitude considerada normalmente "ambivalente". Mas isso é típico do humano: ou um lado ou o outro, senão se é amigo ou inimigo. Os que são capazes de atitudes ambivalentes assim são mais aptos a gerenciar mais conflitos dentro de si e, por isso mesmo, tomarem decisões mais coerentes e conscientes, além de tolerantes. Deus e Maomé, existindo além do nosso pequeno mundo, mesmo que literalmente, permanecerão incorruptíveis, como sempre foram, muito além de atitudes deploráveis como as que ocorreram, seja para negá-los ou asseverá-los.

(Leia mais a respeito: "A verdadeira atitude científica")

quarta-feira, 11 de junho de 2014

Malévola - a amargura do feminino


     De forma geral, o filme trata da iniciação feminina frustrada da protagonista. Débutant, em francês, quer dizer iniciante, e corresponde à tradicional festa de comemoração de quinze anos de uma jovem. Em países europeus, essa festa, uma espécie de rito de iniciação, caracterizava o momento em que a adolescente era, pela primeira vez, apresentada como mulher à sociedade, e onde possíveis pretendentes também compareciam. Apesar do filme referir-se à idade de 16 anos, o conto original da Bela Adormecida indica a idade de 15 anos, que é a do Début.
     No entanto, o processo de tornar-se mulher, para Malévola, foi frustrado: seus sonhos, expressos na sua vitalidade e na exuberância do reino dos Moors, dão lugar a uma profunda depressão, que torna tudo escuro e pesado. Essa fase negra de Malévola corresponde aos cem anos de sono que ela impõe a Aurora, que personifica, para a fada má, o despertar de sua consciência feminina, mesmo que sem a participação de seu contraponto masculino, que antes era figurado por Stephan.
A iniciação feminina e o baile de debutante.
     Os chifres de Malévola possivelmente fazem referência ao aspecto masculino da fada, que não só é potencial, mas que chega a confrontar figuras masculinas exteriores, na forma do rei humano e de Stephan, que representam um lado masculino extremo, exacerbado, sem nenhum equilíbrio compensatório.
     Algo que me chamou muito a atenção foi o fato de o pai de Aurora mandar a filha para longe de si com a finalidade de protegê-la. Parece ser uma atitude típica de homens que, querendo proteger o aspecto feminino, associado à figura da esposa e da filha, acaba isolando-o e isentando-o de qualquer relacionamento. É o que se observa em homens que, principalmente nos séculos passados, mantiveram relacionamentos sexuais com prostitutas, deixando a esposa para interações mais “puras” ou “santificadas”. Nota-se que Stephan, além da crueldade de vender o coração de uma mulher, isolou-se da filha e da esposa, a quem não atenta nem na hora da morte. Ele parece se preocupar inteiramente com a disputa de poder com Malévola, o que denuncia um forte complexo materno negativo. O homem projeta a mãe supercontroladora em todas as mulheres e procura dominá-las ou isolá-las. A fada má constitui sua própria alma (representada também pela esposa e pela filha), a quem impõe a clausura de uma grande cerca de espinhos. Nesse aspecto, a leitura do conto do ponto de vista da psicologia masculina é totalmente válida.
Malévola se envolve de novo
com seu lado criança.
     Entretanto, o contato de Malévola com seu lado criança (Aurora), sepultado pela presunção e pela ambição do novo rei, acaba por descongelar seu coração endurecido. Se esta não pôde despertar seu lado feminino pelo amor a outro homem, devido à decepção, ela se redimirá tornando-se mãe. Aurora é como se fosse mesmo filha da fada e do rei, ainda que por adoção. Uma filha que herda a maldição da mãe, mas que prenuncia seu despertar. O filme parece retratar um fato muito comum hoje em dia: quantas mulheres não acabam se iniciando na vida adulta tornando-se primeiramente mães solteiras, devido à frustração de um amor, ou por não conseguir confiar em um, pela falta de um modelo masculino. Observe-se que nem Malévola, nem o rei Stephan, quando meninos, tinham pais vivos.
     O único relacionamento que a fada tem com o masculino é através do corvo Diaval. Esta interação não evolui para algo mais profundo, mas pelo menos o faz até o ponto de ele ganhar certa autonomia, quando insiste para que a fada prepare o príncipe para que beije Aurora e a desafia a transformá-lo em verme ou pombo, pois não mais se importa. Por outro lado, é típica a superficialidade das personalidades das fadas madrinhas, boazinhas, santinhas, mas totalmente inexperientes, sem nenhum dote para a lida diária do lar, ao contrário de Malévola, que praticamente cria Aurora. O mesmo desenvolvimento ocorre com Nina, personagem do filme "Cisne Negro", que precisa conscientizar seu lado sombrio para representar com brilhantismo a peça do mesmo nome. Isso denuncia um aspecto importante para o desenvolvimento da personalidade: ninguém se torna grande da noite para o dia, ou por simples magia. As maiores personalidades sofreram muito e foram forjadas no embate interno de qualidades e defeitos, de aspectos luminosos e tenebrosos. Parafraseando Jung, as grandes alturas só são atingidas a custa da mesma proporção de enraizamento em lugares mais profundos no solo.
     Malévola, inicialmente, se identifica com seu lado sombrio, pois rejeita a sua identidade de moça bela e boa, a qual foi vilmente desprezada por Stephan. Mas percebe a necessidade de relativizar também sua sombra, e assim passa a ter disponíveis os dois modos de ser: a boa e a má, para usar de acordo com as circunstâncias, sem se identificar inteiramente com uma ou com a outra.
As três fadas madrinhas e Aurora.
     O final do filme é trágico para Stephan. O embate com uma pessoa que alcança maior integridade e maturidade só pode finalizar com a vitória desta, ainda mais quando chega ao ponto de recuperar as próprias asas, antes presas do antigo captor. Quando a rigidez pessoal alcança um nível extremo, só a morte pode compensar esse tipo de existência, que, aliás, equivale em vários aspectos às qualidades daquela. Aurora une então os reinos humano e sobrenatural, consciente e inconsciente. E ainda aponta para um promissor relacionamento com o aspecto masculino, representado pelo príncipe Philip.