Há milênios o casamento era um negócio onde as mulheres eram compradas e vendidas. Na realeza e nas famílias muito ricas chegava a ser quase uma transação semelhante à do gado. Portanto, não era importante a psicologia do indivíduo: seus interesses, desejos, ideias, crenças, etc. Representava uma instituição coletiva, e assim também era o relacionamento conjugal. Formava a interação entre dois papéis sociais - o marido e a esposa, e o casal era valorizado na medida em que podia e sabia como sustentar essas personas ou máscaras (JUNG, 2014).
Entretanto, com a evolução do pensamento e a aquisição de certa cultura, o indivíduo foi enfatizado: agora seus desejos e direitos são levados em consideração. A psicologia surgiu para entender o sujeito e, por extensão, a sociedade. Ela se tornou necessária para possibilitar a adaptação e o ajuste, muitas vezes fino, entre dois ou mais indivíduos, e destes consigo mesmos. Não tínhamos um relacionamento individual, mas coletivo, o que só mudou com o surgimento do amor romântico ou paixão (Ibidem).
O grande problema atual é o embate sobre o que se espera que o casamento seja, enquanto instituição coletiva, adequada à sociedade, e o que desejamos dele: um relacionamento individual, muito difícil de se criar dentro do casamento. A convivência apenas ao nível da persona, dos papéis, não é suficiente. Deve haver uma relação individual, sem a qual não existe o ajuste ou adaptação individual. O marido e a esposa apenas cumprem seu papel respeitável e esperado, por meio de princípios muitas vezes estreitamente associados à religião. A direção do casamento, como instituição coletiva, e a de uma empresa, não difere muito, já que ambos são geridos por contratos, com papéis bem definidos. Porém, cada um dos cônjuges é uma pessoa particular, com o qual se deve ter um relacionamento particular (Ibidem).
Na relação conjugal coletiva costuma imperar a identificação projetiva (ou participation mystique), isto é, cada um dos parceiros projeta no outro uma parte da sua personalidade e o vivencia como se fosse o conteúdo da projeção. Desse modo, cada um dispõe de um meio inconsciente para controlar o outro de acordo com o ponto de vista interno. Assim, um cria a condição do outro e conclui as decisões do outro, dependendo deste para se tornar o que é (SAMUELS, 2003). Após algum tempo de convivência, as pessoas se influenciam reciprocamente, um assimila o outro e ambos se tornam semelhantes. Ocorre que esta identidade e fusão é um grande obstáculo ao relacionamento individual. Pois, se são idênticos, não existe relacionamento, já que este só ocorre entre pessoas diferentes, isto é, separadas psiquicamente. Uma vez que essa identificação projetiva é a situação habitual no casamento, principalmente quando os cônjuges são jovens, uma relação individual é impossível (JUNG, 2014).
Se ambos escondem segredos um do outro, admiti-los pode ajudar a estabelecer um relacionamento individual. Se não existem segredos, então nada pode protegê-los da participation mystique. Neste caso, nada demais ocorre no casamento, que fica sem tempero, sem emoção (Ibidem).
Portanto, ao que tudo indica, o relacionamento individual dentro do casamento depende da sinceridade de ambos os cônjuges. Sinceridade no sentido da revelação explícita, de um para o outro, de quem se é realmente, sem máscaras, sem segredos. O caso alegado acima, onde em um casamento não existe segredo parece partir do pressuposto de que o marido e a mulher não têm consciência de seus seres genuínos, autênticos. Por isso eles acabam por concluir que não possuem nenhuma confidência a fazer. No entanto, até a sinceridade extrema pode trabalhar para a ausência de diferenças, uma vez que não haveria qualquer reserva, podendo isso ocasionar um controle de um dos cônjuges sobre o outro. O confidente pode se ofender com a franqueza ingênua, usando a revelação contra o outro, criticando-o ou reclamando, se esforçando para que ele se encaixe dentro dos moldes da persona conjugal. Isso levaria o casamento ao patamar coletivo, da mesma forma como este pode entediar e levar à confissão individual. Por isso, a posição ideal é o trabalho da consciência individual, que procurará a adaptação ao momento vivido, com atenção, sem se desbancar para um dos extremos, pois estes se tornam hábitos e, por conseguinte, inconsciência do próprio comportamento.
Parece-me que a insistência e a resistência ao casamento homossexual decorre desse mesmo embate entre casamento como instituição individual versus coletiva. Este serve à sociedade, à tradição, à persona; aquele, aos sujeitos tais quais são, com suas características e objetivos pessoais em primeiro plano. No âmbito da sociedade, podemos considerar essa oposição como um sintoma do que acontece ao nível da psique do indivíduo: o que era encoberto vem à tona, como ocorre a um segredo. Se esse segredo não é compartilhado e difundido, sem aberraçoes extremas, é claro, a convivência se torna monótona. O ser espontâneo, a verdade e o novo são reprimidos para que uma máscara possa encobri-los. Não existe vida nisso, mas sim uma dramatização, um fingimento - a morte em vida. A existência não se renova, mas definha no choro contido. Então os mesmos sintomas que assediam o indivíduo nessas mesmas condições, tomam conta da sociedade como um todo: homicídios (repressão), falta de educaçao (inconsciência), violência (depressão), insegurança, miséria (falta de criatividade), protestos (ansiedade), etc. Um projeta no outro e na massa a carência, o buraco interno. A coletividade em geral só estará em harmonia na medida em que seus indivíduos estejam mais ou menos centrados.
A psicologia do indivíduo corresponde à psicologia das nações. As nações fazem exatamente o que cada um faz individualmente; e do modo como o indivíduo age, a nação também agirá. Somente com a transformação da atitude do indivíduo é que começará a transformar-se a psicologia da nação. Até hoje, os grandes problemas da humanidade nunca foram resolvidos por decretos coletivos, mas somente pela renovação da atitude do indivíduo. (JUNG, 1987b, prefácio)
(Leia mais a respeito: "Ser sincero, falar tudo, união e relacionamento",
"Extinção ou renovação de valores?", "Malévola - a amargura do feminino")
"Extinção ou renovação de valores?", "Malévola - a amargura do feminino")
REFERÊNCIAS
JUNG, Carl G. Psicologia do inconsciente. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 1987b. v. VII/1.
JUNG, Carl G. Seminários sobre análise de sonhos. Petrópolis: Vozes, 2014, p. 78-80.
SAMUELS, Andrew. Dicionário crítico de análise junguiana. Edição Eletrônica, 2003 Andrew Samuels/Rubedo. Disponível em: <http://www.rubedo.psc.br/dicjung/listaver.htm> Acesso em: 14 out. 2010, 22:49:00.
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