sábado, 18 de abril de 2015

O casamento na atualidade

    Há milênios o casamento era um negócio onde as mulheres eram compradas e vendidas. Na realeza e nas famílias muito ricas chegava a ser quase uma transação semelhante à do gado. Portanto, não era importante a psicologia do indivíduo: seus interesses, desejos, ideias, crenças, etc. Representava uma instituição coletiva, e assim também era o relacionamento conjugal. Formava a interação entre dois papéis sociais - o marido e a esposa, e o casal era valorizado na medida em que podia e sabia como sustentar essas personas ou máscaras (JUNG, 2014).
    Entretanto, com a evolução do pensamento e a aquisição de certa cultura, o indivíduo foi enfatizado: agora seus desejos e direitos são levados em consideração. A psicologia surgiu para entender o sujeito e, por extensão, a sociedade. Ela se tornou necessária para possibilitar a adaptação e o ajuste, muitas vezes fino, entre dois ou mais indivíduos, e destes consigo mesmos. Não tínhamos um relacionamento individual, mas coletivo, o que só mudou com o surgimento do amor romântico ou paixão (Ibidem).
    O grande problema atual é o embate sobre o que se espera que o casamento seja, enquanto instituição coletiva, adequada à sociedade, e o que desejamos dele: um relacionamento individual, muito difícil de se criar dentro do casamento. A convivência apenas ao nível da persona, dos papéis, não é suficiente. Deve haver uma relação individual, sem a qual não existe o ajuste ou adaptação individual. O marido e a esposa apenas cumprem seu papel respeitável e esperado, por meio de princípios muitas vezes estreitamente associados à religião. A direção do casamento, como instituição coletiva, e a de uma empresa, não difere muito, já que ambos são geridos por contratos, com papéis bem definidos. Porém, cada um dos cônjuges é uma pessoa particular, com o qual se deve ter um relacionamento particular (Ibidem).
    Na relação conjugal coletiva costuma imperar a identificação projetiva (ou participation mystique), isto é, cada um dos parceiros projeta no outro uma parte da sua personalidade e o vivencia como se fosse o conteúdo da projeção. Desse modo, cada um dispõe de um meio inconsciente para controlar o outro de acordo com o ponto de vista interno. Assim, um cria a condição do outro e conclui as decisões do outro, dependendo deste para se tornar o que é (SAMUELS, 2003). Após algum tempo de convivência, as pessoas se influenciam reciprocamente, um assimila o outro e ambos se tornam semelhantes. Ocorre que esta identidade e fusão é um grande obstáculo ao relacionamento individual. Pois, se são idênticos, não existe relacionamento, já que este só ocorre entre pessoas diferentes, isto é, separadas psiquicamente. Uma vez que essa identificação projetiva é a situação habitual no casamento, principalmente quando os cônjuges são jovens, uma relação individual é impossível (JUNG, 2014).
    Se ambos escondem segredos um do outro, admiti-los pode ajudar a estabelecer um relacionamento individual. Se não existem segredos, então nada pode protegê-los da participation mystique. Neste caso, nada demais ocorre no casamento, que fica sem tempero, sem emoção (Ibidem). 
    Portanto, ao que tudo indica, o relacionamento individual dentro do casamento depende da sinceridade de ambos os cônjuges. Sinceridade no sentido da revelação explícita, de um para o outro, de quem se é realmente, sem máscaras, sem segredos. O caso alegado acima, onde em um casamento não existe segredo parece partir do pressuposto de que o marido e a mulher não têm consciência de seus seres genuínos, autênticos. Por isso eles acabam por concluir que não possuem nenhuma confidência a fazer. No entanto, até a sinceridade extrema pode trabalhar para a ausência de diferenças, uma vez que não haveria qualquer reserva, podendo isso ocasionar um controle de um dos cônjuges sobre o outro. O confidente pode se ofender com a franqueza ingênua, usando a revelação contra o outro, criticando-o ou reclamando, se esforçando para que ele se encaixe dentro dos moldes da persona conjugal. Isso levaria o casamento ao patamar coletivo, da mesma forma como este pode entediar e levar à confissão individual. Por isso, a posição ideal é o trabalho da consciência individual, que procurará a adaptação ao momento vivido, com atenção, sem se desbancar para um dos extremos, pois estes se tornam hábitos e, por conseguinte, inconsciência do próprio comportamento.
    Parece-me que a insistência e a resistência ao casamento homossexual decorre desse mesmo embate entre casamento como instituição individual versus coletiva. Este serve à sociedade, à tradição, à persona; aquele, aos sujeitos tais quais são, com suas características e objetivos pessoais em primeiro plano. No âmbito da sociedade, podemos considerar essa oposição como um sintoma do que acontece ao nível da psique do indivíduo: o que era encoberto vem à tona, como ocorre a um segredo. Se esse segredo não é compartilhado e difundido, sem aberraçoes extremas, é claro, a convivência se torna monótona. O ser espontâneo, a verdade e o novo são reprimidos para que uma máscara possa encobri-los. Não existe vida nisso, mas sim uma dramatização, um fingimento - a morte em vida. A existência não se renova, mas definha no choro contido. Então os mesmos sintomas que assediam o indivíduo nessas mesmas condições, tomam conta da sociedade como um todo: homicídios (repressão), falta de educaçao (inconsciência), violência (depressão), insegurança, miséria (falta de criatividade), protestos (ansiedade), etc. Um projeta no outro e na massa a carência, o buraco interno. A coletividade em geral só estará em harmonia na medida em que seus indivíduos estejam mais ou menos centrados.
A psicologia do indivíduo corresponde à psicologia das nações. As nações fazem exatamente o que cada um faz individualmente; e do modo como o indivíduo age, a nação também agirá. Somente com a transformação da atitude do indivíduo é que começará a transformar-se a psicologia da nação. Até hoje, os grandes problemas da humanidade nunca foram resolvidos por decretos coletivos, mas somente pela renovação da atitude do indivíduo. (JUNG, 1987b, prefácio)




REFERÊNCIAS


JUNG, Carl G. Psicologia do inconsciente. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 1987b. v. VII/1.
JUNG, Carl G. Seminários sobre análise de sonhos. Petrópolis: Vozes, 2014, p. 78-80.
SAMUELS, Andrew. Dicionário crítico de análise junguiana. Edição Eletrônica, 2003 Andrew Samuels/Rubedo. Disponível em: <http://www.rubedo.psc.br/dicjung/listaver.htm> Acesso em: 14 out. 2010, 22:49:00.

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