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domingo, 14 de agosto de 2016

O belo, o feio, Deus e o preconceito

Lucius transformado em burro, o que
é analisado na obra de Von Franz.
     Em sua obra “O asno de ouro”, Von Franz (2014, p. 180 a 184) traz diversas reflexões e fatos importantes, dentre eles, a relação entre o preconceito, a estética e a religião. A conexão é interessante porque nos ajuda a perceber como um aparente preconceito religioso na verdade encobre um profundo ensinamento psicológico que pode nos ajudar a desconsiderar ainda mais determinadas intolerâncias.
     Infelizmente, o homem tem identificado os valores mais sublimes à beleza, o que ocasionou um esteticismo que não se adapta à vida, uma vez que esta abarca sempre a soma de tudo o que existe, que se nos apresenta. A beleza eterna não existe na natureza. Sempre encontramos pinceladas de estranheza e horror, do mesmo modo que em nossas vidas. A vida é bela, mas também igualmente ordinária e desagradável; abrange aspectos totalmente opostos. No entanto, a perseguição exclusiva da beleza, ainda que na sua forma mais elevada, produz uma inflação, uma atitude irrealista que seduz o indivíduo a consegui-la a qualquer preço, em detrimento do seu oposto. Inflação é um fenômeno psicológico que ocorre quando um indivíduo se identifica com algo que não corresponde à sua própria realidade e dimensão. Então ele se acha muito maior ou muito diminuído em relação às outras pessoas. O termo advém do fato que certas pessoas sentem necessidade de se incharem, de se inflar, como que de ar, para parecerem maiores que a noção diminuída que possuem de sua própria imagem.
Os chineses, devido a sua alta cultura e gosto refinado, sempre estiveram ameaçados pelo esteticismo. Entretanto, eles desenvolveram um comportamento compensatório, um verdadeiro truque que é, contudo, bastante significativo. Nas áureas épocas Han, Soung e Ming, quando os majestosos trabalhos de arte foram executados, sempre que um artesão produzia um vasilhame de cerâmica ou um vaso de bronze, ele propositadamente, deixava um pequeno defeito. Poderia ser uma leve indentação ou mesmo a inclusão de um colorimento inadequado, apenas para evitar que a peça ficasse perfeita. Qualquer coisa que seja perfeita é imperfeita, num sentido mais profundo do termo, uma vez que os opostos não são incluídos. Mas os próprios chineses também veneravam bastante a beleza. Nós ainda identificamos nossos valores mais sublimes com os nossos valores estéticos. Uma mudança se mostra evidente, contudo, na arte moderna. Hoje, a arte quer destruir um falso esteticismo e mostrar a verdade nua e crua do ser humano como ele é. (Ibid., p. 183 a 184)
     Essa prevenção chinesa, porém, não é mera superstição. Constitui a realização de uma prática para que se lembrem que a beleza não pertence de modo algum ao homem ou a qualquer indivíduo. Ela é divina, e assim deve permanecer. O homem deve reconhecer que a simples ideia de que pode permanecer sempre belo é morte estar morto em vida. Isso ficou bem explícito nesta análise de filme: “Dorian Grey e a sombra na atualidade”. Para maior compreensão, vamos analisar a seguinte passagem bíblica:
Ovelha pronta a ser sacrificada a Deus.
21 Se ele tiver algum defeito — se for manco ou cego, ou tiver algum outro defeito grave —, não o sacrificarás a Iahweh teu Deus. (BÍBLIA, Deuteronômio, 15)
     O presente versículo descreve como deve ser o animal prestes a ser sacrificado a Jeová. Não pode ser manco ou cego ou ter algum outro defeito grave. É óbvio que, se não fosse por essa observação, o devoto sacrificaria os animais defeituosos ou mais feios para ficar com os mais bonitos e saudáveis. 
     Algo semelhante ocorreu com Zeus, quando Prometeu, desejando beneficiar os homens, dividiu um boi em duas porções: uma com carnes e entranhas, coberta com o couro do animal, e outra, apenas com ossos, coberta pela sua gordura, levando-as para que o deus escolhesse a que melhor o servisse. Zeus escolheu a segunda e, vendo que havia sido enganado, tirou o fogo dos homens, em sua ira.
     Nesses casos, percebe-se que não haveria sacrifício algum. Ocorreria tão somente uma autopromoção do ego do suposto devoto, no primeiro caso, e, coletivamente, do homem, no segundo. Porém, para os desavisados isso pode parecer que as divindades possuem preferência pelo belo. Nada mais longe da verdade. Trata-se de uma prevenção, um aviso de que a perfeição e a beleza pertencem ao transcendente, ao divino, como quer que ele se expresse, e não ao homem. Assim, este deve sacrificá-las, desfazer-se e livrar-se do que mais o atrai, e ficar com o imperfeito e defeituoso. Assim ele poderá aceitar-se como humano que é, com suas limitações, sem maiores pretensões. E, fazendo isso, pode desenvolver-se e alcançar maior plenitude. Um conto do ciclo do Rei Arthur ilustra muito bem o que aqui é expresso. 
     O rei Arthur se encontrava com jovens cavaleiros caçando na floresta, quando abateu um cervo. Ao preparar a presa, um cavaleiro desconhecido, armado e poderoso o confrontou, dizendo que o rei o afrontava há muito tempo e por isso o ameaçou de morte imediata. O monarca alegou se encontrar desarmado e a honra cavalheiresca obrigou o estranho a propor outro compromisso. No mesmo dia do ano seguinte o rei compareceria novamente desarmado com a resposta ao seguinte enigma: “O que uma mulher mais deseja no mundo?”. Sir Gawain se inteirou do ocorrido e propôs que ambos saíssem em direções diferentes perguntando  a todos os homens e mulheres sobre o enigma, anotando as respostas. O total das respostas totalizou um livro. Mas o rei, não satisfeito, ainda queria mais, apesar de faltar apenas um mês. Se aventurou na floresta, onde encontrou a bruxa mais feia já vista por olhos humanos: rosto vermelho, nariz destilando muco, grande boca, dentes amarelos pendendo-lhe sobre o lábio, pescoço comprido e grosso e pesados seios dependurados (ZIMMER, 2005).
O casamento de Sir Gawaine. 
Não obstante, o horror de sua aparência não está apenas na fealdade de seus traços, em seus olhos grandes, estrábicos e avermelhados vê-se uma sombra aterrorizante de medo sofrimento. Ela se oferece para dar a Arthur a resposta certa que salvará sua vida, sob a condição de um cavaleiro de sua corte tornar-se seu marido naquele dia. Transpassado pelo terror, Arthur se recusa, mas Gawaine se oferece para o medonho sacrifício. De volta à presença do cavaleiro demoníaco que está prestes a cortar-lhe a cabeça e levá-la para Morgan Le Fay, Arthur redime-se dando a resposta certa: o que as mulheres mais querem é sua soberania diante dos homens. Depois, é celebrado o casamento entre Gawaine e o hediondo ser. Toda a corte está compadecida de sua terrível sina. Quando os noivos ficam a sós na câmara nupcial, a noiva exige ser beijada. Apesar de sua repugnância, Gawaine consegue cumprir a exigência. Nesse momento, a aparência da noiva se transforma e então Gawaine tem nos braços a mais linda virgem que já se viu na vida. Ela lhe revela que, com seu ato de nobreza, ele a havia libertado de um encantamento, mas não inteiramente, pois, durante metade do tempo, ela ainda precisa revestir-se daquela forma terrível. Ele pode escolher a parte do dia em que ela deve ser feia e estúpida; se prefere tolerar a vergonha diante da corte ou a repugnância à noite, em seus momentos de intimidade. Gawaine prefere não fazer esta escolha e deixa que ela decida, desejoso de consentir com a preferência da esposa. Ao entregar-lhe desse modo sua soberania, o feitiço é quebrado por completo, e daí em diante ela aparece como a linda donzela que é, dia e noite. (WHITMONT, 1991, p. 189) [Clique aqui para acessar um álbum com fotos no Facebook que descreve o conto]. 
     Ora, é aceitando-se como é que o homem pode crescer. É a partir do que é, de sua natureza mais autêntica, que forma a base e os degraus da ascensão, que o indivíduo pode progredir para um nível mais alto de ser. Se ele nega quem é, nega também a matéria-prima do seu trabalho pessoal. Como poderá o oleiro moldar seus vasos negando a argila com que suja suas mãos? Mal sabe o homem moderno que, para alcançar a perfeição, é preciso aceitar-se inteiro, sem rejeição. E só isso já constitui obra de uma vida inteira. O preconceito, infelizmente, é o maior sinal de que o homem está muito longe de si mesmo, quanto mais da perfeição.


REFERÊNCIAS

VON FRANZ, Marie-Louise. O asno de ouro: o romance de Lúcio Apuleio na perspectiva da psicologia analítica junguiana.  1. ed. Petrópolis: Vozes, 2014.
WHITMONT, Edward C. O retorno da deusa. 1. ed. São Paulo: Summus, 1991.
ZIMMER, Heinrich. A conquista psicológica do mal. 2. ed. São Paulo: Palas Athena, 2005.

segunda-feira, 25 de abril de 2016

Os três níveis de consciência

Diagrama do Tai-Chi chinês, representando a integração das polaridades Yin/Yang.
Créditos: facebook.com/vozesdobrasilmpbOficial/
     Os dois primeiros círculos apontam para um primitivo estágio de consciência, onde a realidade está dividida em simples opostos: o lado do bem e o lado do mal. Não existe nenhum movimento dos pontos, indicando que o indivíduo tem uma estrutura praticamente estática, inerte, empedrada. Nessa fase, a percepção da realidade só comporta dualidades - "ou estão do meu lado ou são meus inimigos", "se isso não é mau, é bom", "gosto do mocinho e odeio o bandido", etc. A personalidade é inflexível e as pessoas desse nível, difíceis de lidar. Estão identificadas com uma parte ou com a outra. "Sou assim!", e ponto final. Não há consideração pelo ponto de vista do outro. Dependendo do lado, são consideradas superficialmente bons cidadãos ou malfeitores pela sociedade.
     O par de desenhos seguinte retrata um nível intermediário de consciência, em que há a percepção de que, dependendo da perspectiva, algo considerado em geral mal, possui também aspectos bons. Ou que nada é puramente prejudicial, nem tão somente virtuoso. Aqui existe movimento nas duas "gotas", que aparentam um girino, isto é, um ser vivo, com dinamismo orgânico. A perspectiva estática dualista é lançada por terra. O indivíduo percebe que é uma mistura de defeitos e virtudes, e que é incapaz de determinar, em um certo momento, em dada condição, qual parte irá prevalecer. Existe mais flexibilidade com relação ao que se pode ser, de acordo com o que a situação exigir. Admite-se amar também os defeitos alheios. Mas a atividade dos "pingos" ainda é separada. Ora percebe-se o mal em si, ora no outro; se se nota que tem um lado positivo, não é possível a mesma observação, no mesmo instante, no outro. Estabelece-se o conflito: para que eu seja considerado bom, o outro tem que ser mal. Por isso, em uma discussão é quase impossível se sair da defensiva - ou me considero justo e o outro culpado ou vice-versa, sentindo-me confortável ou não.
     O desenho unificado configura um dinamismo e a ausência de conteúdos estagnados e separados. É um estágio avançado de consciência porque engloba todos os outros e vai além. Se existe conflito, este se configura apenas com o(s) outro(s), que não possui(em) a perspectiva total. Vivencia-se a dualidade em si e no outro, simultânea e ativamente. Existe aqui a flexibilidade e a inflexibilidade, assim como vários outros pares de opostos, conjugados de maneira temperada, de acordo com a vontade do sujeito. Mas "vontade" aqui é mais que um mero anseio do Eu, pois engloba que o indivíduo faça também aquilo que não é ou seria sua escolha no momento devido à compreensão de que também percebe a verdade oposta dentro de si.
     É preciso pontuar que nenhum desses estágios ocorre de forma estanque no ser humano. Do mesmo modo que a última figura contém todas as outras, as fases anteriores ocorrem ainda de maneira mais ou menos fortuita e momentânea no terceiro nível, prevalecendo aquele que tiver sido mais desenvolvido. Por vezes, um sujeito no primeiro estágio de consciência pode ter um insight instantâneo do que seja viver no terceiro, e isso pode ser a chave para iniciar uma grande mudança de vida. Do mesmo modo, um indivíduo relativamente realizado pode de repente "surtar", caindo rapidamente no primeiro ou segundo nível, para seu sofrimento.
     Se a figura completa do Tai-Chi for imaginada girando, nota-se que os dois pequenos anéis no interior do Yin e do Yang formarão cada qual um círculo e se manifestará um centro que se aplicará aos dois. Na figura sem movimento esse centro não se revela, apenas na dinâmica da vida, nesta em que há continuamente a alternância de estados, humores e situações. Assim é a totalidade humana, gerenciada a partir do centro imóvel e imutável, que se expressa nas mudanças de estados psíquicos. A psicologia chama a esse centro de Si-mesmo.
     Para a filosofia chinesa as mudanças prevalecem sobre as oposições. Não existe juízo de valor - um lado ser superior ao outro. Yin não é mal, nem Yang o bem. E assim é se se pensar na interação e alternância dessas oposições como vida. O primeiro "evoca a ideia de tempo frio e encoberto, e aplica-se ao que é interior, enquanto o termo Yang sugere a ideia de exposição ao Sol e de calor. Em outros termos, Yang e Yin indicam aspectos concretos e antitéticos do tempo. [...] O mundo representa, pois, 'uma totalidade de ordem cíclica, constituída pela conjugação de duas manifestações alternativas e complementares'" (ELIADE, 2011, p. 26). 
     Em um pequeno tratado está escrito: "Um (aspecto) yin, um (aspecto) yang, eis aí o tao". Ou seja, o tao, traduzido aqui como "vida", comporta dois aspectos opostos que se alternam. Esse vocábulo quer dizer também "caminho", evocando a imagem de uma trilha a seguir, a ideia de direção de conduta, de regra moral, e, por fim, a arte de pôr em comunicação o Céu e a Terra (Ibid. p. 27).
     Portanto, não se deve abrir mão da vida em favor de estados estáticos de prazer, nem de dor, no caso dos masoquistas, por mais difícil que isso possa parecer. Isso não é vida, mas morte em vida. Vida é movimento, é alternância, é mutação. O sofrimento e as doenças mentais advém de querermos impor a permanência de estados inconstantes, enquanto que permanente só pode ser nossa contemplação de sua passagem na nossa caminhada. E é claro que em grande parte não temos consciência dessa autoimposição, pois a incorporamos culturalmente. Se nos acostumarmos a tomar posição no centro, poderemos contemplar a totalidade dos processos vitais sem angústia. Neste caso alcança-se o verdadeiro estado de felicidade, pois nos colocamos no rumo do sentido, sob a direção do centro da personalidade.
     (NOTA: A leitura que faço do Tai-Chi é simbólica e aplica-se à psique humana, não se vinculando a nenhuma pesquisa científica.)

REFERÊNCIAS

ELIADE, Mircea. História das crenças e das ideias religiosas: de Gautama Buda ao triunfo do Cristianismo. Rio de Janeiro: Zahar, 2011. vol. II.

domingo, 18 de janeiro de 2015

Radicalismo, terrorismo e Charlie Hebdo

     O que é "liberdade de expressão"? É a primeira pergunta a se fazer frente aos eventos terroristas ocorridos em 7 de janeiro na França. Segundo a  Wikipedia (em 18 de janeiro de 2015):
Liberdade de expressão é o direito de manifestar livremente opiniões, ideias e pensamentos, sem a prática de qualquer crime que possa pôr em causa o direito de outrem, sob pena de difundir crime em massa através da comunicação social como poder criminoso sob a capa de fé-pública, designadamente a injúria e a difamação em abuso de um poder. A liberdade de expressão privada é uma relação natural entre as partes e por isso não necessita de prevenção ou censura. Já a liberdade de expressão pública necessita de censura como único meio de garantir a liberdade dos cidadãos e a igualdade de tratamento, responsabilizando-se o Estado em representar a parte a atingir pois não existe outra possibilidade prática. É um conceito fundamental nas democracias modernas nas quais a censura não tem respaldo moral. [destaques do editor do blog]
Fig. 1 - Retratação do "Pai", do "Filho"
e do "Espírito Santo".
     O teor das publicações do jornal Charlie Hebdo pode ser acompanhado nas figuras que ladeiam este texto, juntamente com uma foto do atentado. Percebe-se claramente que os editores do jornal são ateus e não hesitam em recorrer até ao preconceito para conseguir valer suas próprias opiniões. A expressão na Fig. 1 é, obviamente, de porte totalmente oposto à atitude fanática para com símbolos sagrados. Sim, digo fanática porque não é necessário recorrer a uma sátira tão impetuosa para expressar repúdio a figuras sagradas. Se o fanatismo religioso choca, o fanatismo ateu que se opõe, também o faz.
     Como o próprio Papa disse, "matar em nome de Deus é uma aberração". Mas vamos tentar entender essa aberração. A Bíblia preconiza, assim como o Alcorão, que se deve amar a Deus sobre todas as coisas. Com "coisas" a escritura quer englobar também as pessoas, como o pai, a mãe, os irmãos, etc. Jung chama à imagem de Deus de "supremo valor", um "fator psíquico cheio de energia", e entende a religião como um fator de relação com esse "valor supremo". Ele também afirma que, se alguém não coloca Deus como supremo valor de sua vida, fatalmente colocará outro elemento no lugar. E pode-se dizer que os editores do citado jornal possuem como valor supremo algo bem diferente do que fazem as religiões em geral. Para se opor a uma força fanática religiosa, apenas outra força igual ou de maior intensidade, de valor oposto, obviamente. Como na representação da trindade na Fig. 1 ocorre uma relação sexual, percebe-se que o conteúdo é material. A matéria e o instinto parecem se postar como supremos agentes de oposição ao sagrado e - por que não? - aos valores familiares (pai e filho).
     Na Fig. 2, o profeta Maomé é retratado como ator de um filme pornô. De novo a associaçao de figuras sagradas com o sexo, dois elementos diametralmente opostos. A figura parece significar, para o jornal, o desejo do profeta de ser apreciado em aspectos instintivos, no afã de ridicularizar a admiração e/ou o respeito que o islamismo lhe presta.
     É necessário entender que, se no Brasil alguém fizer uma charge pública apresentando a mãe de alguém como atriz de um filme pornô, estará correndo o risco, no mínimo, de ser processado, se não ocorrer um gesto violento, o que não dizer de uma figura ou de um ser que está acima de todas as coisas? O jornal francês ridicularizou não uma imagem qualquer, mas um dos supremos valores do mundo muçulmano... E o Estado, ao invés de fazer o seu papel de recorrer à censura para garantir a "liberdade e a igualdade de tratamento" de grupos minoritários para evitar confrontos, não o fez. Pelo contrário, entendendo-se "laico" [Aurélio: "2. Que vive no, ou é próprio do mundo, do século; secular (por oposição a eclesiástico)"], entende o mundo como excludente de religião. Se o Estado não pode incluir a religião, então que não seja laico, mas abrangente, continente, totalizante, uma vez que pretende abarcar e proteger o direito de todos os cidadãos. Nesse sentido, o Estado está mais avançado no Brasil do que na França...
Fig. 2: "O filme que abarca o mundo
muçulmano". Retrata Maomé dizen-
do: "E minha bunda? Ama minha
bunda?".
    Pode-se reportar à tipologia psicológica para se compreender ainda mais a posição de Charlie Hebdo. Sua crítica possui forte nuance de repressão do sentimento, função essencial para se diferenciar a adequação das próprias palavras e ações em relação a si mesmo e ao mundo. Apresentar ideias ou colocá-las em prática sem consultar os próprios sentimentos, sem perguntar "como me sinto a respeito?", dá ensejo a situações irresponsáveis, inadequadas e impróprias para si e para os outros. A liberdade sem sentimento, sem a devida delimitação da empatia, do se colocar no lugar do outro, é a liberdade que não leva em conta o mundo. É libertinagem.
     O objetivo das considerações anteriores foi equilibrar a atitude que se tomou comumente, no âmbito mundial, a favor do jornal francês. Os radicalistas muçulmanos atuaram de maneira totalmente criminosa e patológica (do ponto de vista ocidental) na resposta que forneceu ao Charlie Hebdo: nisso não há dúvida.
     O maior problema de radicalistas religiosos, e aqui pode-se incluir membros de todas as religiões, é a literalidade com que percebem as sagradas escrituras. Os psicólogos estudiosos dos sonhos sabem como os conteúdos destes, das visões e das fantasias da imaginação podem ser interpretados simbolicamente, com grande ganho para a saúde psicológica do cliente. Em geral, os sonhos falam da vida interior do sonhador, assim como também existem sonhos que dizem respeito à humanidade como um todo, e ao que se passa em seu interior, isto é, no seu inconsciente, chamado de inconsciente coletivo, e aos eventos exteriores. Comumente, é possível se interpretar simbolicamente a maioria dos eventos bíblicos revelados por meio de sonhos e visões, e existem vários livros a respeito. Essa possibilidade não quer dizer que esses acontecimentos se reduzem a simples contos ou mentiras. Não: querem dizer que sua verdade diz respeito ao lado espiritual e interior de cada um, que Deus não está somente fora de nós, e que ele pode ser experimentado direta e simbolicamente pelo fiel. A experiência espiritual interna evita qualquer tipo de fanatismos, pois se compara a um tom de voz moderado, ao passo que o radicalismo equivale ao grito. Acho que foi Jung que disse que só a dúvida grita, isso porque na certeza jaz a completa segurança sobre seu conteúdo.
Fig. 3 - Os terroristas em ação.
     Portanto, o fanatismo que fere, mata e destrói possui pelo menos dois aspectos negativos: quer materializar o que é espiritual, concretizar o imponderável e intocável, tornando-o suscetível a quaisquer ameaças externas; e parece basear-se em uma dúvida reclamada erroneamente como fé, esta que, por definição, constitui a certeza de coisas imponderáveis, daí a forte afirmação desenfreada e violenta do seu objeto contra tudo o que o negue.
     É muito difícil para muitas pessoas postar-se no meio de dois lados, tomar uma atitude considerada normalmente "ambivalente". Mas isso é típico do humano: ou um lado ou o outro, senão se é amigo ou inimigo. Os que são capazes de atitudes ambivalentes assim são mais aptos a gerenciar mais conflitos dentro de si e, por isso mesmo, tomarem decisões mais coerentes e conscientes, além de tolerantes. Deus e Maomé, existindo além do nosso pequeno mundo, mesmo que literalmente, permanecerão incorruptíveis, como sempre foram, muito além de atitudes deploráveis como as que ocorreram, seja para negá-los ou asseverá-los.

(Leia mais a respeito: "A verdadeira atitude científica")

domingo, 10 de agosto de 2014

Planeta dos Macacos: os animais!

Malcolm e Cesar
     Várias apreciações do filme “Planeta dos Macacos: o Confronto” apontam que o filme aborda várias questões, desde o preconceito até considerações políticas. Penso que o principal tema do filme é de cunho ecológico em associação ao preconceito.
     Existem dois ou três momentos no filme em que Dreyfus, o líder dos humanos, justifica a matança dos macacos como forma de privilegiar a sobrevivência da raça humana. Mais de uma vez ele afirma: “Eles são animais!”. Sim, mas este um argumento suficiente? O desenrolar do filme demonstra que não. O preconceito aí já está bem explícito, não necessitando de maiores comentários. No entanto, o que dizer do preconceito que valoriza os animais porque estes falam? No filme, o espanto maior, inclusive de toda a população de humanos, é com relação à capacidade de articular palavras. Isso não seria mais admirável do que um papagaio fazê-lo, se os macacos também não raciocinassem, contextualizassem sua fala e demonstrassem, além de tudo, consciência de si. Um animal consciente  continua sendo um animal? Ora, o homem é um “animal racional”, e como tal se isola de todos os outros, rotulados como irracionais. Estranho, porém, é a expressão atribuída aos homens, que destaca, excepcionalmente, a razão. Por que não chamá-lo de “animal consciente”? Afinal, ele é o único que possui um intelecto plenamente desenvolvido: ele pensa. E é esse pensar que torna possível ao homem, segundo Descartes, tomar conhecimento de sua existência. O intelecto, permite definir e conceituar objetos e pessoas, tornando possível definir-se, agregando muito mais consciência, ou autoconsciência. Já no sentimento, por exemplo, talvez o homem não se diferencie muito mais de certas espécies de animais...
Dreyfus
     Marcante também é o momento em que o macaco Koba lembra a Cesar o que este alegou quando brigaram anteriormente: “macaco não mata macaco”, com o fito de perdoá-lo. O líder dos macacos então afirma que Koba não é macaco, e solta-o para a morte. Cesar se refere à crueldade do ex-amigo, que o trai e comete vários crimes contra os companheiros, e não é mais digno de ser considerado um “macaco”, no sentido de não ser um símio íntegro. Os homens também costumam usar a mesma expressão para com os semelhantes genocidas, por exemplo. Na verdade, quando se usa expressões como “fulano é um monstro” ou “ele não é um ser humano” se está querendo dizer que a pessoa em questão entra em choque com os outros seres. É como se ela se opusesse à existência e à expressão de outros sujeitos. Logo, é lógico que estes queiram excluir a pessoa em foco da categoria que designa todos os seres abarcados. Assim, o psicopata cruel, que objetiva apenas o poder em detrimento da existência e da liberdade dos outros, seria um ser à parte, e não mereceria uma segunda chance, o mérito da confiança. É claro que essa atitude não corresponde a uma postura íntegra, abrangente e compreensiva em relação a todos os aspectos da existência. Esse pensamento é a base da pena de morte. Basta, então, assegurar que macacos ou humanos como Koba tenham sua liberdade restringida para que não possam mais agir em detrimento dos demais. Mas Cesar não tinha alternativa, pois a qualquer momento o ex-amigo poderia montar outra armadilha fatal para si, sua família ou sua tribo. Prendê-lo seria se comportar como os humanos que os aprisionavam em jaulas, e esse procedimento os macacos aparentemente rejeitavam. Cesar agiu bem, como líder sábio, bom avaliador dos prós e dos contras, a balança do sentimento.
Koba
     Um aspecto estranho no filme, assim como nas primeiras versões, é ver os seres humanos aprisionados pelos macacos. É uma inversão impressionante! Aí os humanos tomaram o lugar dos animais. Suponho que compartilho essa sensação de estranheza com muitos outros espectadores. Seria ela causada pelo costume de ver os animais presos? Ou de vê-los suscetíveis de maus tratos? Ou será que ver o nosso lado animal simbolizado no filme nos causa um certo desconforto em perceber como podemos ter nosso lado “racional”, ou quem sabe “humano”, submetido a fatores psíquicos mantidos fortemente “sob rédea”. Pode ser que cada um desses argumentos tenha seu papel nesse assombro.
     O segundo filme do Planeta dos Macacos consegue prender a atenção do começo ao fim. Desde o primeiro, nos acostumamos a ser conduzidos paulatinamente à conclusão. Tudo fica muito bem explicado e explícito. Não precisamos deduzir ou imaginar muita coisa, mas ele nos faz questionar o estabelecido, o instituído, assim como nossos hábitos científicos, ecológicos, familiares e sociais. Não conseguimos deixar de perguntar, mais uma vez: quem somos nós? E talvez indaguemos, com maior correção: “quem mais somos nós?”, deixando espaço extra para outras possibilidades, algumas apontadas pelo filme.

domingo, 16 de março de 2014

A verdadeira atitude científica

     A psicologia pode ajudar muito na construção de uma atitude mais científica frente às pesquisas. Isso porque ela é a ciência que estuda o comportamento humano, assim como o que está por trás deste, isto é, sua subjetividade, sua psique.
Esquema das funções da consciência
     Segundo Jung (1991a), possuímos quatro funções que orientam nossa consciência: a sensação, a intuição, o pensamento e o sentimento. A sensação nos transmite a existência do objeto pelos cinco sentidos, assim como as impressões corporais que temos como reação a eles, de maneira detalhada, objetiva e atual. A intuição, oposta à sensação, combina todas as sensações, ideias e sentimentos para nos passar as possibilidades de conexão do objeto, combinando-os em um produto criativo, imaginativo e/ou fantasioso que servirá à resolução de problemas e à criatividade humana, abrindo perspectivas futuras e passadas, atendo-se ao sentido de totalidade, de perspectiva geral. A função pensamento, conhecida como intelecto, fornece um conceito para o objeto, através de ideias associativas conhecidas em relação a outros objetos, para que se possa conhecê-lo intelectualmente. Para isso o pensamento procura se distanciar emocionalmente do objeto, caso contrário esse processo conceitual não será isento, objetivo, mas parcial, relacionado com o sujeito. A função sentimento faz justamente isso: conecta o indivíduo ao objeto, envolve-os de forma a transmitir o  valor deste àquele, isto é, se o objeto é agradável ou desagradável, bom ou mau, belo ou feio, etc., assumindo uma escala de valores do negativo ao positivo e vice-versa, que guiará o indivíduo na sua relação com o objeto. Essas quatro funções podem operar ao nível do mundo exterior ao indivíduo, de forma extrovertida, ou ao nível interno e subjetivo, introvertidamente. A tendência ao emprego constante de apenas uma função da consciência leva à classificação dos indivíduos em tipos psicológicos, de acordo com a função empregada e com a respectiva atitude. Surgem aí os oito tipos: pensamento, sentimento, intuição e sensação introvertidos e extrovertidos.
A oposição entre sentimento e pensamento
em detrimento de uma ciência mais ética
     Percebe-se claramente quais as funções mais utilizadas pela ciência. Primordialmente, o pensamento, com sua exaltação da isenção e distanciamento intelectual do objeto, juntamente com a sensação, que exacerba ainda mais o sentido de objetividade e atualidade do objeto. Ocorre que a especialização e a ênfase apenas nessas duas funções provoca uma parcialidade de perspectiva, ainda não percebida, ainda atualmente, pela maioria dos pesquisadores e cientistas. É claro que seu desenvolvimento provocou um salto tecnológico jamais visto antes na história da humanidade. Entretanto, esse “salto” não acompanhou uma evolução semelhante das funções sentimento e intuição, que se tornaram primitivas e inferiores, comparadas às primeiras, não se sabe em que extensão mundial. Logo, o homem perdeu sua fonte de valores, que poderia guiá-lo no enquadramento dessa tecnologia e seu consumo na dimensão ética, isto é, no “como” e no “para que” inserir certos produtos tecnológicos na sociedade; e perdeu também a perspectiva de futuro em relação ao seu uso, assim como a dimensão de totalidade social e abrangência do consumo tecnológico. Assim, percebe-se aqui uma alternativa de explicação, e por que não um entendimento a mais, à perspectiva marxista em relação à desigualdade social.
Albert Einstein tinha a vantagem de ter desenvolvido,
ao lado do pensamento, também a intuição. Por isso,
revolucionou o pensamento científico.
     As funções da consciência servem ao homem na orientação de sua vida. Porém, infelizmente, ele está longe de saber equilibrá-las, de aplicá-las conjuntamente ou nas situações adequadas. Agindo assim, torna-se menos humano. Aquele que se especializa no intelecto, por exemplo, tenderá a utilizá-lo sempre, em toda parte e em toda situação, indiscriminadamente, agindo como um típico intelectual (ou, como se diz em psicologia, um tipo pensamento) inclusive nas festas, nos velórios, no casamento, na vida espiritual e no relacionamento com os filhos. Ele não consegue sentir determinado sentimento no momento adequado, pois sua função sentimento é subdesenvolvida. Aprendeu que ela é uma ameaça para si, e que pode desenvolver relacionamentos baseado simplesmente em explicações e ideias, pois isso é mais “racional”. Mal sabe que o sentimento também tem sua racionalidade e motivos igualmente válidos, e que, por isso, não sabe como rebater seu cônjuge, pois enbaraça-se, e este não consegue se colocar na sua posição, uma vez que tende a se utilizar da função oposta, o que configurou a atração do casal. Existem fartos exemplos de gênios científicos que eram verdadeiros fracassos como pais e mães, e que se orgulhavam de ter um guarda-roupa uniforme para não terem que perder tempo ao sair... Pois é, guarda-roupa uniforme é um clássico exemplo de reprimir o exercício com os sentimentos.
Ora, o verdadeiro cientista não deveria reprimir a função sentimento ao trabalhar em seu projeto ou laboratório. Bastaria deixá-la de lado naquele momento, para voltar a utilizá-la em reuniões com colegas de trabalho, com amigos e em casa. Mas nada mais fácil e simples que usar-se de uma panaceia, isto é, o emprego de sua função intelectual em todos os momentos e lugares, algo nada científico... 
A exclusão de funções da consciência corresponde
à exclusão social e acadêmica dos
tipos psicológicos correspondentes.
     A operação consciente apenas na função pensamento também pode provocar a exclusão de fenômenos “irracionais”, justamente aqueles que não podem ser explicados pela ótica das formulações teóricas vigentes. Com a contribuição da função sentimento, a função da formação de valores, essa exclusão dificilmente ocorreria, uma vez que haveria o reconhecimento do sentimento de repulsa pelo objeto excluído, o que equilibraria a atitude unilateral. Entretanto, percebe-se, há muito tempo, que os meios científicos são dominados por atitudes intelectuais unilaterais e redutivas. Manter o sentimento e a intuição trancafiados internamente é um comportamento tão fanático quanto o religioso que foge do ensino superior por medo de render-se à racionalidade e ao “rebanho do diabo”.
     A verdadeira atitude científica deveria procurar agregar todas as quatro funções da consciência. Individualmente, é muito difícil desenvolvê-las, pois corresponde a um trabalho de uma vida inteira. No entanto, pode ser feito um esforço para se conscientizar as pessoas da importância de sua variedade, o que, pelo menos, evitaria o emprego “fanático”, preconcebido e estereotipado de apenas uma função. Além disso, a composição de equipes de diferentes tipos psicológicos tende a abordar qualquer objeto de investigação científica de maneira mais plural, contribuindo para o estudo sob diferentes perspectivas e com reduzido preconceito. Assim, poder-se-ia atestar uma ciência verdadeiramente imparcial e ética, que contribui não apenas para o conforto e para a saúde, mas também para o campo social e espiritual da humanidade.

domingo, 26 de janeiro de 2014

A raiz do preconceito

     Um livro1 me chamou a atenção para o que seria, segundo o autor, a base do preconceito. Ele cita Hillman, o qual afirma que a supremacia da cor branca, chamada por ele de "supremacia branca", tem origem no fanatismo étnico, que é difícil de mudar, pois a "superioridade" da brancura é arquetípica. Algo é arquetípico quando está ligado aos fundamentos psicológicos da espécie humana como um todo, da mesma forma como o estão as religiões e suas concepções, os mitos e os instintos humanos. Os arquétipos são a base, o princípio da psique humana. Hillman demonstrou, por meio de estudos etnográficos sobre a África, que não só os brancos, mas também os negros possuem uma tendência a considerar as cores branca e negra como superior (boa) e inferior (ruim), respectivamente. O crítico cultural Todorov, também citado, liga o racismo ao simbolismo universal: "pares como preto/branco, luz/trevas, dia/noite parecem existir e funcionar em todas as culturas, sendo o primeiro termo de cada par geralmente o preferido".
     Na minha prática clínica, assim como na vida pessoal, já observei que os sonhos que trazem pessoas, animais e objetos negros geralmente diziam respeito a conteúdos que eram obscuros e inconscientes. É fato, por exemplo, que sonhos cuja trama se passa à noite, normalmente são mais difíceis de entender e trabalhar, pois remetem a uma condição mais confusa, vaga e "escura" para o sonhador. Realmente, não há como escapar do sentido simbólico dessas cores. A escuridão é negra, e um ser humano imerso na noite escura se sente completamente desorientado e passível de tropeçar e se ferir. O branco está relacionado, em geral, à pureza, à paz, à claridade, à luz, etc. A literatura universal e as obras poéticas são ricas de alusões, associações e valores em relação às duas cores.
     Então, os autores citados se perguntam porque o racismo resiste obstinadamente aos esforços políticos para sua erradicação. Sua resposta é que existe, neste caso, uma projeção dos valores arquetípicos da cor sobre as respectivas pessoas. Os racistas seriam pessoas literalistas que confundem a realidade física com a simbologia da cor, aplicando a oposição das cores preta/branca para fins preconceituosos. A solução de Hillman para amenizar o racismo é desliteralizá-lo ou perceber as cores como símbolos não aplicáveis às pessoas.
     Erich Fromm2 afirmou que a linguagem simbólica expressa experiências íntimas, pensamentos e sentimentos como se fossem fatos do mundo exterior. "A linguagem simbólica é uma língua onde o mundo exterior é um símbolo do mundo interior, um símbolo de nossas almas e de nossas mentes." Por isso os poetas, dentre os maiores usuários da linguagem simbólica, usam metáforas, isto é, transformam uma árvore, um clima, um membro do corpo, ou qualquer outra coisa, em símbolos de conteúdos interiores. Os povos do passado tinham os mitos e os sonhos entre as mais significativas expressões do espírito humano: não entendê-los tocava as raias do analfabetismo. Entretanto, o analfabetismo simbólico hoje em dia é muito mais comum do que imaginamos. Logo, aqueles que percebem a vida e o mundo de forma literal, tendem a perceber a pessoa negra da mesma forma como o faz com a noite, a escuridão, o abismo, e tantos outros fenômenos associados à cor negra. Seguindo esse raciocínio, aqueles que exercitam a linguagem simbólica mais frequentemente, pelo menos de maneira geral, seriam menos propícios a atitudes preconceituosas ou literalistas, pois podem mais perfeitamente diferenciar a pessoa do símbolo, o homem da cor.
     O livro mencionado no início deste texto trata brevemente sobre essa questão. Penso que o primeiro passo para amenização do preconceito em geral, e do racismo em particular, seja, como ocorre atualmente no Brasil e em outros países, provocar um repúdio generalizado com a divulgação de casos verídicos e a punição correspondente e o tratamento do assunto em novelas, filmes e outras mídias. Mas o aspecto educativo, levando-se em conta o ponto de vista simbólico do racismo, vai mais fundo.
     O homem moderno desaprendeu a linguagem simbólica e, tal como as pessoas que sofrem transtornos psicóticos, percebe a realidade de forma por demais literal, o que prejudica a interpretação mais acertada dos fatos. Atualmente, a decadência dos valores interiores aponta para a doença coletiva do homem contemporâneo: a fragmentação, o individualismo, a corrosão do coração que poderia uni-lo ao outro. O homem estaria vivendo um momento psicótico que percebe os símbolos como coisas, e não as coisas como símbolos, vê o que está lá fora como outro e não como símbolo de si mesmo. O simbolismo é uma linguagem natural, e enquanto o homem não se voltar à sua natureza interna, permanecerá sem raízes e se sentirá desagregado, seja internamente, seja socialmente.
1 - YOUNG-EISENDRATH, Polly. DAWSON, Terence. (Org.) Compêndio da Cambridge sobre Jung. São Paulo: Madras, 2011, p. 186.
2 - FROMM, Erich. A linguagem esquecida. Rio de Janeiro: Zahar, 1966, p. 14.