domingo, 26 de janeiro de 2014

A raiz do preconceito

     Um livro1 me chamou a atenção para o que seria, segundo o autor, a base do preconceito. Ele cita Hillman, o qual afirma que a supremacia da cor branca, chamada por ele de "supremacia branca", tem origem no fanatismo étnico, que é difícil de mudar, pois a "superioridade" da brancura é arquetípica. Algo é arquetípico quando está ligado aos fundamentos psicológicos da espécie humana como um todo, da mesma forma como o estão as religiões e suas concepções, os mitos e os instintos humanos. Os arquétipos são a base, o princípio da psique humana. Hillman demonstrou, por meio de estudos etnográficos sobre a África, que não só os brancos, mas também os negros possuem uma tendência a considerar as cores branca e negra como superior (boa) e inferior (ruim), respectivamente. O crítico cultural Todorov, também citado, liga o racismo ao simbolismo universal: "pares como preto/branco, luz/trevas, dia/noite parecem existir e funcionar em todas as culturas, sendo o primeiro termo de cada par geralmente o preferido".
     Na minha prática clínica, assim como na vida pessoal, já observei que os sonhos que trazem pessoas, animais e objetos negros geralmente diziam respeito a conteúdos que eram obscuros e inconscientes. É fato, por exemplo, que sonhos cuja trama se passa à noite, normalmente são mais difíceis de entender e trabalhar, pois remetem a uma condição mais confusa, vaga e "escura" para o sonhador. Realmente, não há como escapar do sentido simbólico dessas cores. A escuridão é negra, e um ser humano imerso na noite escura se sente completamente desorientado e passível de tropeçar e se ferir. O branco está relacionado, em geral, à pureza, à paz, à claridade, à luz, etc. A literatura universal e as obras poéticas são ricas de alusões, associações e valores em relação às duas cores.
     Então, os autores citados se perguntam porque o racismo resiste obstinadamente aos esforços políticos para sua erradicação. Sua resposta é que existe, neste caso, uma projeção dos valores arquetípicos da cor sobre as respectivas pessoas. Os racistas seriam pessoas literalistas que confundem a realidade física com a simbologia da cor, aplicando a oposição das cores preta/branca para fins preconceituosos. A solução de Hillman para amenizar o racismo é desliteralizá-lo ou perceber as cores como símbolos não aplicáveis às pessoas.
     Erich Fromm2 afirmou que a linguagem simbólica expressa experiências íntimas, pensamentos e sentimentos como se fossem fatos do mundo exterior. "A linguagem simbólica é uma língua onde o mundo exterior é um símbolo do mundo interior, um símbolo de nossas almas e de nossas mentes." Por isso os poetas, dentre os maiores usuários da linguagem simbólica, usam metáforas, isto é, transformam uma árvore, um clima, um membro do corpo, ou qualquer outra coisa, em símbolos de conteúdos interiores. Os povos do passado tinham os mitos e os sonhos entre as mais significativas expressões do espírito humano: não entendê-los tocava as raias do analfabetismo. Entretanto, o analfabetismo simbólico hoje em dia é muito mais comum do que imaginamos. Logo, aqueles que percebem a vida e o mundo de forma literal, tendem a perceber a pessoa negra da mesma forma como o faz com a noite, a escuridão, o abismo, e tantos outros fenômenos associados à cor negra. Seguindo esse raciocínio, aqueles que exercitam a linguagem simbólica mais frequentemente, pelo menos de maneira geral, seriam menos propícios a atitudes preconceituosas ou literalistas, pois podem mais perfeitamente diferenciar a pessoa do símbolo, o homem da cor.
     O livro mencionado no início deste texto trata brevemente sobre essa questão. Penso que o primeiro passo para amenização do preconceito em geral, e do racismo em particular, seja, como ocorre atualmente no Brasil e em outros países, provocar um repúdio generalizado com a divulgação de casos verídicos e a punição correspondente e o tratamento do assunto em novelas, filmes e outras mídias. Mas o aspecto educativo, levando-se em conta o ponto de vista simbólico do racismo, vai mais fundo.
     O homem moderno desaprendeu a linguagem simbólica e, tal como as pessoas que sofrem transtornos psicóticos, percebe a realidade de forma por demais literal, o que prejudica a interpretação mais acertada dos fatos. Atualmente, a decadência dos valores interiores aponta para a doença coletiva do homem contemporâneo: a fragmentação, o individualismo, a corrosão do coração que poderia uni-lo ao outro. O homem estaria vivendo um momento psicótico que percebe os símbolos como coisas, e não as coisas como símbolos, vê o que está lá fora como outro e não como símbolo de si mesmo. O simbolismo é uma linguagem natural, e enquanto o homem não se voltar à sua natureza interna, permanecerá sem raízes e se sentirá desagregado, seja internamente, seja socialmente.
1 - YOUNG-EISENDRATH, Polly. DAWSON, Terence. (Org.) Compêndio da Cambridge sobre Jung. São Paulo: Madras, 2011, p. 186.
2 - FROMM, Erich. A linguagem esquecida. Rio de Janeiro: Zahar, 1966, p. 14.

Um comentário:

  1. Para dirimir algumas dúvidas sobre o texto acima, vou postar aqui algumas mensagens acerca dele, trocadas no Facebook:

    "Milson Santos: Cara achei essa alusão ao arquétipo e a superioridade / tendência do branco /superior algo questionável... Fiquei apreensivo com o sentido do texto, pois, deixa uma brecha para se "naturalizar " o preconceito...
    há 19 minutos · Curtir

    Milson Santos: Sei que a intenção foi justamente pensar o racismo, porém, a alusão à noite com a cor negra e as conexões arquétipicas não podem estar contaminadas com um preconceito, disfarçado de teoria para entende-lo? (me refiro a Hilmman)
    há 14 minutos · Curtir

    Charles Alberto Resende: Rapaz, entendo sua posição e você está certo em abordar assim. Gostei do seu questionamento. Porém, a questão é justamente que aquilo que não é raciocinado, não é analisado e questionado, que é inconsciente, é que é o verdadeiro problema. Assim, pode-se dizer que o preconceito é algo "naturalizado" mesmo, não no sentido de ser natural. Mas o ser humano é algo construído e não "natural", apesar de, para isso, não poder descartar a linguagem simbólica. Na medida em que o homem não se questiona, muitas coisas se tornam "naturais", normais e até mesmo banalizadas. E o preconceito é assim, não é o texto que o banaliza."

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