domingo, 14 de agosto de 2016

O belo, o feio, Deus e o preconceito

Lucius transformado em burro, o que
é analisado na obra de Von Franz.
     Em sua obra “O asno de ouro”, Von Franz (2014, p. 180 a 184) traz diversas reflexões e fatos importantes, dentre eles, a relação entre o preconceito, a estética e a religião. A conexão é interessante porque nos ajuda a perceber como um aparente preconceito religioso na verdade encobre um profundo ensinamento psicológico que pode nos ajudar a desconsiderar ainda mais determinadas intolerâncias.
     Infelizmente, o homem tem identificado os valores mais sublimes à beleza, o que ocasionou um esteticismo que não se adapta à vida, uma vez que esta abarca sempre a soma de tudo o que existe, que se nos apresenta. A beleza eterna não existe na natureza. Sempre encontramos pinceladas de estranheza e horror, do mesmo modo que em nossas vidas. A vida é bela, mas também igualmente ordinária e desagradável; abrange aspectos totalmente opostos. No entanto, a perseguição exclusiva da beleza, ainda que na sua forma mais elevada, produz uma inflação, uma atitude irrealista que seduz o indivíduo a consegui-la a qualquer preço, em detrimento do seu oposto. Inflação é um fenômeno psicológico que ocorre quando um indivíduo se identifica com algo que não corresponde à sua própria realidade e dimensão. Então ele se acha muito maior ou muito diminuído em relação às outras pessoas. O termo advém do fato que certas pessoas sentem necessidade de se incharem, de se inflar, como que de ar, para parecerem maiores que a noção diminuída que possuem de sua própria imagem.
Os chineses, devido a sua alta cultura e gosto refinado, sempre estiveram ameaçados pelo esteticismo. Entretanto, eles desenvolveram um comportamento compensatório, um verdadeiro truque que é, contudo, bastante significativo. Nas áureas épocas Han, Soung e Ming, quando os majestosos trabalhos de arte foram executados, sempre que um artesão produzia um vasilhame de cerâmica ou um vaso de bronze, ele propositadamente, deixava um pequeno defeito. Poderia ser uma leve indentação ou mesmo a inclusão de um colorimento inadequado, apenas para evitar que a peça ficasse perfeita. Qualquer coisa que seja perfeita é imperfeita, num sentido mais profundo do termo, uma vez que os opostos não são incluídos. Mas os próprios chineses também veneravam bastante a beleza. Nós ainda identificamos nossos valores mais sublimes com os nossos valores estéticos. Uma mudança se mostra evidente, contudo, na arte moderna. Hoje, a arte quer destruir um falso esteticismo e mostrar a verdade nua e crua do ser humano como ele é. (Ibid., p. 183 a 184)
     Essa prevenção chinesa, porém, não é mera superstição. Constitui a realização de uma prática para que se lembrem que a beleza não pertence de modo algum ao homem ou a qualquer indivíduo. Ela é divina, e assim deve permanecer. O homem deve reconhecer que a simples ideia de que pode permanecer sempre belo é morte estar morto em vida. Isso ficou bem explícito nesta análise de filme: “Dorian Grey e a sombra na atualidade”. Para maior compreensão, vamos analisar a seguinte passagem bíblica:
Ovelha pronta a ser sacrificada a Deus.
21 Se ele tiver algum defeito — se for manco ou cego, ou tiver algum outro defeito grave —, não o sacrificarás a Iahweh teu Deus. (BÍBLIA, Deuteronômio, 15)
     O presente versículo descreve como deve ser o animal prestes a ser sacrificado a Jeová. Não pode ser manco ou cego ou ter algum outro defeito grave. É óbvio que, se não fosse por essa observação, o devoto sacrificaria os animais defeituosos ou mais feios para ficar com os mais bonitos e saudáveis. 
     Algo semelhante ocorreu com Zeus, quando Prometeu, desejando beneficiar os homens, dividiu um boi em duas porções: uma com carnes e entranhas, coberta com o couro do animal, e outra, apenas com ossos, coberta pela sua gordura, levando-as para que o deus escolhesse a que melhor o servisse. Zeus escolheu a segunda e, vendo que havia sido enganado, tirou o fogo dos homens, em sua ira.
     Nesses casos, percebe-se que não haveria sacrifício algum. Ocorreria tão somente uma autopromoção do ego do suposto devoto, no primeiro caso, e, coletivamente, do homem, no segundo. Porém, para os desavisados isso pode parecer que as divindades possuem preferência pelo belo. Nada mais longe da verdade. Trata-se de uma prevenção, um aviso de que a perfeição e a beleza pertencem ao transcendente, ao divino, como quer que ele se expresse, e não ao homem. Assim, este deve sacrificá-las, desfazer-se e livrar-se do que mais o atrai, e ficar com o imperfeito e defeituoso. Assim ele poderá aceitar-se como humano que é, com suas limitações, sem maiores pretensões. E, fazendo isso, pode desenvolver-se e alcançar maior plenitude. Um conto do ciclo do Rei Arthur ilustra muito bem o que aqui é expresso. 
     O rei Arthur se encontrava com jovens cavaleiros caçando na floresta, quando abateu um cervo. Ao preparar a presa, um cavaleiro desconhecido, armado e poderoso o confrontou, dizendo que o rei o afrontava há muito tempo e por isso o ameaçou de morte imediata. O monarca alegou se encontrar desarmado e a honra cavalheiresca obrigou o estranho a propor outro compromisso. No mesmo dia do ano seguinte o rei compareceria novamente desarmado com a resposta ao seguinte enigma: “O que uma mulher mais deseja no mundo?”. Sir Gawain se inteirou do ocorrido e propôs que ambos saíssem em direções diferentes perguntando  a todos os homens e mulheres sobre o enigma, anotando as respostas. O total das respostas totalizou um livro. Mas o rei, não satisfeito, ainda queria mais, apesar de faltar apenas um mês. Se aventurou na floresta, onde encontrou a bruxa mais feia já vista por olhos humanos: rosto vermelho, nariz destilando muco, grande boca, dentes amarelos pendendo-lhe sobre o lábio, pescoço comprido e grosso e pesados seios dependurados (ZIMMER, 2005).
O casamento de Sir Gawaine. 
Não obstante, o horror de sua aparência não está apenas na fealdade de seus traços, em seus olhos grandes, estrábicos e avermelhados vê-se uma sombra aterrorizante de medo sofrimento. Ela se oferece para dar a Arthur a resposta certa que salvará sua vida, sob a condição de um cavaleiro de sua corte tornar-se seu marido naquele dia. Transpassado pelo terror, Arthur se recusa, mas Gawaine se oferece para o medonho sacrifício. De volta à presença do cavaleiro demoníaco que está prestes a cortar-lhe a cabeça e levá-la para Morgan Le Fay, Arthur redime-se dando a resposta certa: o que as mulheres mais querem é sua soberania diante dos homens. Depois, é celebrado o casamento entre Gawaine e o hediondo ser. Toda a corte está compadecida de sua terrível sina. Quando os noivos ficam a sós na câmara nupcial, a noiva exige ser beijada. Apesar de sua repugnância, Gawaine consegue cumprir a exigência. Nesse momento, a aparência da noiva se transforma e então Gawaine tem nos braços a mais linda virgem que já se viu na vida. Ela lhe revela que, com seu ato de nobreza, ele a havia libertado de um encantamento, mas não inteiramente, pois, durante metade do tempo, ela ainda precisa revestir-se daquela forma terrível. Ele pode escolher a parte do dia em que ela deve ser feia e estúpida; se prefere tolerar a vergonha diante da corte ou a repugnância à noite, em seus momentos de intimidade. Gawaine prefere não fazer esta escolha e deixa que ela decida, desejoso de consentir com a preferência da esposa. Ao entregar-lhe desse modo sua soberania, o feitiço é quebrado por completo, e daí em diante ela aparece como a linda donzela que é, dia e noite. (WHITMONT, 1991, p. 189) [Clique aqui para acessar um álbum com fotos no Facebook que descreve o conto]. 
     Ora, é aceitando-se como é que o homem pode crescer. É a partir do que é, de sua natureza mais autêntica, que forma a base e os degraus da ascensão, que o indivíduo pode progredir para um nível mais alto de ser. Se ele nega quem é, nega também a matéria-prima do seu trabalho pessoal. Como poderá o oleiro moldar seus vasos negando a argila com que suja suas mãos? Mal sabe o homem moderno que, para alcançar a perfeição, é preciso aceitar-se inteiro, sem rejeição. E só isso já constitui obra de uma vida inteira. O preconceito, infelizmente, é o maior sinal de que o homem está muito longe de si mesmo, quanto mais da perfeição.


REFERÊNCIAS

VON FRANZ, Marie-Louise. O asno de ouro: o romance de Lúcio Apuleio na perspectiva da psicologia analítica junguiana.  1. ed. Petrópolis: Vozes, 2014.
WHITMONT, Edward C. O retorno da deusa. 1. ed. São Paulo: Summus, 1991.
ZIMMER, Heinrich. A conquista psicológica do mal. 2. ed. São Paulo: Palas Athena, 2005.

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